Trump e a caixa d’água
- Revista Pub

- 16 de abr.
- 5 min de leitura
Atualizado: 12 de mai.
-BERNARDO LINS-
Uma daquelas piadas velhas, rançosas, preconceituosas, que hoje estamos proibidos de contar (mas aqui eu conto assim mesmo), trata da lei da compensação. Começa com um rapaz dirigindo seu carrinho velho, comprado a muito custo de segunda mão. Passando na frente do Instituto Pinel, aquele hospital psiquiátrico que fica no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, uma roda se solta e foge pela rua afora.
O rapaz, assustado, freia o carro em meio às faíscas e sai correndo atrás do pneu careca. Pega-o de volta, encosta-o no veículo e contempla desesperançado a cena tragicômica. Nisso, um velhinho olha por cima do muro do Pinel e pergunta o que ocorreu. O jovem relata o episódio que acabara de enfrentar e se confessa perplexo, sem saber o que fazer.
Fácil – explica o velho – tira uma porca de cada roda. Com três porcas você fixa o quarto pneu e dá para chegar num posto e arrumar uns parafusos no borracheiro.
O jovem se espanta. O senhor é doido, exclama, como resolveu o problema? Posso até ser maluco, responde o velho, mas – em compensação – não sou burro como você.
Trump é velho, que nem o doido da anedota, mas burro ele não é. Há uma lógica nessa guerra de tarifas que ele está promovendo. Sua queda de braço com o resto do mundo tem, como pano de fundo, o esforço para reconduzir aos EUA os empregos industriais que as empresas americanas espalharam pelo planeta afora.
É uma narrativa um pouco mítica. Os Estados Unidos possuem hoje uma taxa de desemprego que piorou nos últimos dois anos, mas ainda é relativamente baixa, algo acima dos 4%. São empregos que vêm do setor de serviços, administrativos ou de atendimento, menos sólidos e pior remunerados que os empregos industriais, mas eles estão aí. O eleitor que fez sua aposta em Trump olha não apenas para si, mas para a história familiar. Para o avô que foi metalúrgico e comprou a casa em que mora, para o pai que se viu desempregado anos a fio, para a degradação que seu bairro enfrentou nas últimas décadas. A situação desse eleitor é complicada. Ele precisaria de formação adicional para subir de posição no mercado, mas escolas técnicas e cursos superiores nos EUA são bem caros.
Na sua narrativa, Trump está limpando o terreno para esse parceiro. Colocou um jugo no pescoço das universidades e abriu o caminho para uma redução drástica de salários e despesas do governo, de olho em um futuro corte de impostos. Desse modo, quando os empregos industriais começarem a ressurgir, a renda doméstica para consumo terá aumentado e as pessoas poderão investir em si mesmas. Pelo menos essa é a lógica neoclássica dele. O mundo real, bom, aí é mais complicado.

Trazer de volta esses postos de trabalho que foram terceirizados ao exterior é um passo mais doloroso. Para convencer as corporações a rever suas estratégias e fazer desinvestimentos lá fora, Trump está corroendo os fatores que levam as empresas a se internacionalizar. Os americanos montam computadores e smartphones na China porque as tarifas de importação americanas são baixas, o transporte é barato, a legislação chinesa é menos restritiva, a mão de obra é barata, disciplinada e produtiva. E, de quebra, com as tarifas chinesas mais altas, já estão por lá mesmo e vendem localmente aos consumidores de lá. Como diria o saudoso presidente do Corinthians, Vicente Matheus, aquele que errava todos os ditados populares, matam dois coelhos com uma caixa d’água.
Ao desorganizar o sistema de tarifas vigente e as regras do transporte internacional, o presidente americano esvazia a caixa d’água. Sua expectativa parece ser a de que as empresas estadunidenses não tolerem esse risco e prefiram o porto seguro do mercado doméstico dos EUA. Em tempos de incerteza, não há nada melhor do que dormir em casa, na própria cama. De quebra, fazendo em casa, pesquisam em casa também. Os EUA reforçariam a liderança da corrida tecnológica global. Trump poderia, é claro, fazer essas correções com calma, confiando na força das suas negociações bilaterais. Mas ele tem pressa e a tempestade do desmonte é seu modo de dizer ao seu eleitor e ao mundo a que veio.
É por isso que propostas como o zero a zero de Ursula von der Leyen não o atraem. Ele não quer livre comércio em igualdade de condições. Quer produzir em casa, exportar muito e importar pouco. Não só pelo dinheiro, mas pelos empregos e pelo domínio da tecnologia.
Há um preço a pagar? Sempre há. Ninguém vai ficar de braços cruzados vendo Trump tomar conta da economia mundial de forma atabalhoada. Haverá reações drásticas, de início dentro de um limite que não leve a um conflito aberto, mais adiante na briga de rua mesmo. Com o passar do tempo e a com o alongamento do clima venenoso, o mercado global poderá minguar. E os EUA correm o risco de ver-se isolados.
Serão tempos longos e difíceis, sairemos bastante machucados. Lembremos de outro equívoco de Vicente Mateus, particularmente apropriado ao momento: depois da tempestade, vem a ambulância.
Não vai dar certo. Países fechados tendem a apresentar uma taxa de crescimento declinante. Seria ótimo para o meio ambiente, mas investidores e consumidores não estão preparados para um mundo de crescimento zero. Nos EUA, as pessoas irão perceber na pele que Trump, apesar do barulho, não tinha à mão as três porcas de que precisava e poderá entregar ao eleitor um mercado tumultuado, pior do que o shopping center caro, mas arrumadinho, que ele recebeu. As reações já começaram: nesta segunda semana de abril, o big business americano encostou Trump no canto do ringue e ganhou noventa dias de adiamento para as decisões polêmicas a respeito das tarifas de importação. Haverá, quem sabe, tempo para negociar ajustes.
De nossa parte, aqui no Brasil, temos que procurar um caminho para preservar o núcleo saudável do ambiente internacional, ajudar a corrigir seus problemas e encontrar um modo de nos ajustarmos, sabedores de que a política de Trump irá nos afetar profundamente e, infelizmente, já não tem volta. Os estoques excedentes e os desequilíbrios entre produção e demanda que já se desenham vão afetar os preços no comércio internacional. Haverá dumping de preços de um lado e fechamento de mercados de outro. Serão tempos longos e difíceis, sairemos bastante machucados. Lembremos de outro equívoco de Vicente Mateus, particularmente apropriado ao momento: depois da tempestade, vem a ambulância.
Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP. Escreve todo o dia 16 do mês na Revista PUB.










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