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O jogo da regulação da IA

Atualizado: 17 de fev.

-BERNARDO LINS-



Marina Ramos/Câmara dos Deputados - Coletiva de Imprensa. Dep. José Guimarães (PT - CE). Ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad. Presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (REPUBLICANOS - PB).
Marina Ramos/Câmara dos Deputados - Coletiva de Imprensa. Dep. José Guimarães (PT - CE). Ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad. Presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (REPUBLICANOS - PB).

Não entendo de passarinhos, mas uma música de Chico Buarque e Francis Hime, do disco Meus Caros Amigos, um ponto alto da MPB, fala deles. É Passaredo, uma canção que avisa nossos pequenos amigos alados: “bico calado, muito cuidado, que o homem vem aí”. Quem avisa, amigo é. Pesquisei, à época, os nomes citados na letra e lembro, vagamente, que o sanhaço-de-encontro azul é uma espécie da Mata Atlântica caracterizado por uma penugem azul que escurece próximo às extremidades das asas. Muito bonito e com um cantar delicado.


E foi com um vistoso casaco azul sanhaço que Fernando Haddad foi ao Congresso no início de fevereiro, para entregar aos novos presidentes das duas casas, o Senador Davi Alcolumbre e o Deputado Hugo Motta, uma lista de 25 propostas que considerava prioritárias. Aliás, esses ternos azuis estão na moda. As sessões parlamentares de Plenário parecem uma ondulação oceânica de vários tons de azul. Até o Lula está usando, fica lindo. Qualquer dia, quando minhas roupas ficarem puídas, compro um desses, talvez já em liquidação.


O cantar delicado de Haddad incluiu, entre esses muitos itens, a regulamentação da inteligência artificial, a IA, que ele considera ecologicamente prioritária, pois estaria casada a incentivos para instalar no Brasil grandes data centers, aqueles enormes centros de processamento de dados, com toneladas de equipamentos, gastando toneladas de eletricidade, para guardar nossos preciosos dados. O argumento é um pouco bizantino: como produzimos eletricidade com menor emissão de carbono, vamos operar esses data centers de forma limpa. Mais limpo seria não ter nada disso, mas... enfim... os data centers vieram para ficar, por assim dizer.


A legislação de IA entra nesse assunto de forma colateral. Trata-se do Projeto de Lei nº 2.338, de 2023, que foi aprovado no Senado em 10 de dezembro de 2024 e remetido à Câmara dos Deputados. É um texto elegante, bem elaborado, que adota uma abordagem parecida com o regulamento europeu sobre o assunto.


A ideia é mais ou menos a de acompanhar os sistemas de IA pelo seu processo de programação, treinamento, teste e fiscalização em uso. Algo como os modelos de “qualidade assegurada” na indústria: quem controla o processo de fabricação sabe a qualidade do produto que está colocando no mercado e pode garantir sua segurança.


Há um motivo técnico para apelar para essa forma oblíqua de regulação. Programas de IA não são apenas codificados e....pronto! Demandam, ainda, um processo longo de calibração, em que bancos com um grande número de exemplos, milhares, milhões deles, são usados para ajustar os parâmetros do programa e fazer com que suas respostas convirjam aos resultados desejados. Se houver erros no uso do programa, uma inspeção dele pode não servir para nada, pois os valores desses parâmetros (e em alguns casos são vários milhares de números) não oferecem pistas diretas para se investigar as causas dos problemas. Inspeção não é uma palavra que combine bem com IA. Desse modo, olhar para o processo produtivo acaba sendo uma tática melhor.


O texto do projeto de lei se estende profusamente sobre o modo como fazer esse acompanhamento, sobre critérios de riscos, sobre a supervisão que a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) fará sobre empresas e produtos. Mas, se algo der errado, se um programa desses prejudicar a saúde, a privacidade, os direitos, a vida de alguém, a atribuição de responsabilidade não é clara. Se todas as empresas da cadeia de valor do sistema, produtores, distribuidores, aplicadores, tiverem feito seu dever de casa, como fica?


O texto não traz muita inovação. A responsabilidade é remetida à Lei de Defesa do Consumidor e ao Código Civil. Em outras palavras, olha-se o que já está escrito. A complexidade desse mercado torna-se uma proteção. Em lugar de orientar e endurecer, a proposta talvez atenue, reclamando a consideração do “nível de autonomia do sistema de IA e o seu grau de risco” e da “natureza dos agentes envolvidos e a consequente existência de regime de responsabilidade civil próprio na legislação”, critérios vagos e cujo sentido é incerto.


Não é de admirar que inexista previsão penal de qualquer tipo. No caso de incidente grave, o agente informará à ANPD sua ocorrência e esta “poderá, caso necessário, determinar ao agente a adoção de providências e medidas para reverter ou mitigar os efeitos do incidente”. Há sanções administrativas. Multas pesadas e vedações comercialmente dolorosas, mas apenas a infrações contra as próprias previsões da proposta. Se o agente rezar pela cartilha, pode cair o mundo e ele estará no jogo. Vale a legislação preexistente. Será por isso que os data centers já gostam dela?


Se o que se busca é aquele clima do que o mercado chama de segurança jurídica, o jogo está ganho. A proposta faz uma conveniente referência à legislação existente e simplesmente cria as bases regulatórias da atividade em um ambiente que converge às práticas de outros países. Se todos se comportarem bem, o mercado será uma beleza. O problema surgirá quando um agente concluir que vale a pena assumir um risco em nome de um ganho e acabe fazendo um estrago. A face benevolente da lei mostrará então seu lado obscuro.


Não é por isso que os deputados receberam Haddad vestidos de preto. Mas bem que poderia ser.



 

Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP.





1 Comment


Guilherme José Purvin de Figueiredo
Guilherme José Purvin de Figueiredo
Feb 23

O texto analisa a proposta de regulação da inteligência artificial no Brasil, destacando sua abordagem inspirada na União Europeia, sua limitação na atribuição de responsabilidade e os interesses do mercado na previsibilidade jurídica da legislação. Com uma escrita sofisticada e ironia afiada, Bernardo Lins desmonta a aparente robustez do projeto de regulação da IA ao evidenciar sua fragilidade na responsabilização e sua sintonia com os interesses de grandes corporações. O autor revela como a lógica do mercado se impõe sobre a precaução social, criando um ambiente jurídico onde os riscos são absorvidos como parte do jogo econômico. O texto transcende a análise técnica ao propor uma reflexão crítica sobre a relação entre inovação, regulação e poder, deixando claro que, e…

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