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MAIS UMA VEZ CLAUDE GUEUX

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-SEBASTIÃO VILELA STAUT JUNIOR-



Faz pouco tempo dediquei-me à releitura de um pequeno livro de Victor Hugo, chamado Claude Gueux, estimulado que fui por assistir a mais uma reportagem sobre a situação de descalabro de muitos de nossos estabelecimentos penitenciários.


Claude Gueux, o homem que empresta seu nome ao livro, viveu na França, no século XIX. O destino dessa pobre criatura, objeto da brilhante narrativa feita pelo autor e publicada originalmente em 1834 na Revue de Paris, contempla a trajetória desse personagem fisicamente forte, analfabeto, operário hábil, morador de Paris, onde vivia com sua companheira e pequena filha e que, num certo inverno rigoroso, à falta de trabalho e víveres, cometeu um furto, suficiente para garantir à sua família três dias de aquecimento e pão. Tal acontecimento infausto, por sua vez, renderia a Claude uma acérrima sentença de cinco anos de encarceramento e trabalhos forçados.


Uma vez preso, Claude, ainda que revelasse bom comportamento, acrescido pelo espírito de liderança sobre seus companheiros nas oficinas de trabalho do presídio, viu-se, talvez mesmo por isso, alvo da inveja e da perseguição implacável do diretor do estabelecimento, que não podia suportar a popularidade de Claude dentre os companheiros de infortúnio. Não bastasse, para cúmulo das injustiças, defronta-se com as péssimas condições de encarceramento e a absoluta falta de assistência social e jurídica então reinantes.


Termina por morrer, guilhotinado, ainda jovem, acusado do assassinato do seu perseguidor.


A pena magnífica do autor, ao descrever a transformação do pobre Claude, de operário pai de família a ladrão, de presidiário disciplinado a assassino, aponta:


« Voyez Claude Gueux. Cerveau bien fait, coeur bien fait sans nul doute. Mais le sort le met dans une sociétè si mal faite qu’il finit par voler. La sociétè le met dans une prison si mal faite qu’il finit par tuer. Qui est réelement coupable ? Est ce lui ? Est ce nous ? »


Foi impossível, ao ver a situação de miséria e crueldade de nossos presídios na reportagem, não me sentir teletransportado ao século XIX, a uma masmorra europeia, para constatar a situação de atraso em que nos encontramos. Não bastasse isso, foi chocante constatar que há uma série de movimentos políticos, muitos deles sufragados nas últimas eleições, que não só encaram com indiferença esse estado de coisas, como até defendem esse tratamento, como fosse ele o mais adequado aos “vagabundos”, que seriam pessoas destituídas, não só de direitos fundamentais, mas também de sua própria condição humana.


É fácil constatar que dessa desfaçatez com os mínimos padrões de dignidade humana surgirão consequências inimagináveis, como já ocorrem, ao ponto de nesta semana termos assistido a um jovem paupérrimo, analfabeto e dependente químico, ser torturado por meio de um chicote feito de fios elétricos entrelaçados, pelo furto de umas barras de chocolate em um supermercado da periferia paulistana.


Ao ler o livro sobre o infortúnio de Claude Gueux não posso deixar de estabelecer o paralelo. Se é verdade que talvez soe exagerado comparar destinos, é mais que razoável, quase obrigatório, reconhecer que uma sociedade que convive com tais extremos de ignomínia pode alcançar o mesmo fim do pobre Claude.


 

​​​​SEBASTIÃO VILELA STAUT JÚNIOR é procurador do Estado SP e membro do IBAP


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