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Pra quem sabe ler pingo é letra.

Atualizado: 21 de fev.

- Márcia M. B. F. Semer -

 

Desde criança ouço essa frase. Minha mãe sempre a repetia - ainda repete - atribuindo-a à minha avó. Virava e mexia a gente a ouvia falar: Como diz a sua avó, pra quem sabe ler, pingo é letra, referindo-se ao sentido subjacente aos textos, às palavras ou mesmo às atitudes das pessoas.


Esta semana, olhando uma pesquisa publicada no site G1 (a) lembrei-me dessa frase da sabedoria popular que minha mãe tão generosamente sempre atribui à minha avó, mas que desconfio ter uma autoria bem mais remota.


A pesquisa foi encomendada pelo jornal O Globo e foi realizada pela Quaest, uma conhecida empresa de pesquisa sediada em Minas Gerais.


O objetivo da pesquisa foi perscrutar a nova Classe Média brasileira para entender suas aspirações. Como quase toda pesquisa, a margem percentual de erro margeia os 3% para mais ou para menos, sendo que foram ouvidas 2 mil pessoas.


Entre as perguntas realizadas, como o do número de pessoas que moram numa mesma casa, o grau de endividamento e outras, as questões que mais me chamaram a atenção foram as seguintes: (1) Maiores Sonhos, (2) Pró-mercado ou Pró-Estado?, (3) Empresas Públicas como Petrobrás e Correios, (4) Por quem devem ser oferecidos serviços essenciais.


Tabela retirada do site O Globo. Pesquisa da Quaest, com 2 mil entrevistados ao longo de 2024, com margem de erro de 3 pontos percentuais.
Tabela retirada do site O Globo. Pesquisa da Quaest, com 2 mil entrevistados ao longo de 2024, com margem de erro de 3 pontos percentuais.

Na questão número (1) referente aos Maiores Sonhos, depois de ter saúde e ter felicidade, ter casa própria e viver num lugar sem violência são os principais anseios da classe média. Saúde, Habitação e segurança pública, portanto, lideram a demanda do segmento, seguida do anseio por boa educação. Com votação menos expressiva, na verdade na última posição aparece o desejo de ter um negócio próprio. Achei curioso esse dado. Chamou minha atenção. Se alguém me perguntasse antes da pesquisa diria que esse seria um objetivo dos mais relevantes. Afinal, é recorrente, quase um mantra que se ouve nos últimos tempos, que as pessoas não estão mais interessadas em empregos formais, que querem ser donas do próprio nariz, que o empreendedorismo é o conceito do momento, o grande sonho da classe média. Pois é, mas parece que não é bem assim.


Se pra quem sabe ler pingo é letra, esse pingo da pesquisa merece alguma reflexão, pelo menos para que não se tome a parte pelo todo, em metonímia política equivocada que induza algum tipo de negligenciamento da defesa e aprimoramento dos direitos dos trabalhadores empregados, em prol da precarização travestida de empreendedorismo.


A pergunta (2), a seu tempo, também intriga ao pontuar 98% para a demanda por saúde e educação gratuita para todos, 96% para o dever do governo de se responsabilizar pelas boas condições de vida de todos, e 77% para o governo ter mais empresas estatais do que tem hoje, seguida de 71% para a maior cobrança de impostos dos mais ricos. É verdade que essas respostas colidem em parte com as duas últimas dessa lista ao entender que a educação privada é melhor que a pública e que as empresas do Estado deviam ser privatizadas.


Contudo, se pra quem sabe ler pingo é letra, esse é outra pulga, ou pingo atrás da orelha, porque essa Classe Média mapeada na pesquisa Quaest quer um Estado bem presente em suas vidas, um verdadeiro Estado Social, bem diferente do que a ruidosa e vistosa extrema-direita, essa Trumpista, Muskista, Bolsonarista, Melonista. Mieilista e demais têm por norte como política de Estado.


Mais ou menos o mesmo se verifica no item número (3), a respeito de Empresa públicas, como Petrobras, Correios, Caixa, etc. Aqui 54% da classe média entende que essas empresas deveriam continuar sendo administradas pelo governo, contra 37% de que deveriam ser privatizadas. A maioria é expressiva. Nem margem de erro altera a certeza do segmento quanto ao tema.


Aqui, nem precisa de pingo pra entender a letra. A letra tá dada em alto e bom som.


Por fim, a indagação número (4), a respeito de quem deveria oferecer os serviços essenciais, não deixa pedra sobre pedra na preferência da Classe Média brasileira. Percentual de 76% chancela que o governo deve oferecer serviços essenciais para que todos tenham acesso, ante 37%, os mesmos 37% do item precedente, que preferem que esses serviços deveriam ser privatizados e, por conseguinte, oferecidos por empresas.


Pingo e letra aqui se harmonizam para dar forma definida ao anseio por um Estado providência, mais ou menos aquele definido na Constituição que a toda hora tem um golpista querendo afundar.


E por falar em golpismo, outra pesquisa desta última semana, esse realizada pela GPS CNN (b), apontou que 71% dos brasileiros rejeitam a proposta de Semipresidencialismo (PEC 02/2025). Apenas 18% da população a apoia e a maioria dos apoiadores é de eleitores bolsonaristas. Ainda que a PEC 02/2025 fosse juridicamente viável, coisa que não é desde o nascedouro, já que o assunto constitui cláusula pétrea decorrente do exercício da soberania direta do povo em 1993, seria bom que os parlamentares alfabetizados no idioma e na política, bem assim toda a classe política nacional lesse essas pesquisas para melhor direcionar sua atuação.


Elas dão a letra e os pingos dos anseios de boa parte do povo brasileiro. Só não entende quem não quer.


Referências:



 

Márcia Maria Barreta Fernandes Semer. Advogada. Procuradora do Estado de São Paulo aposentada. Mestre em Direito Administrativo e Doutora em Direito do Estado pela USP. Membro integrante do Conselho Consultivo do IBAP.

 


 

1 Comment


Guilherme José Purvin de Figueiredo
Guilherme José Purvin de Figueiredo
Feb 23

O texto analisa uma pesquisa sobre a classe média brasileira, evidenciando seu apoio a um Estado forte, serviços públicos essenciais e regulação econômica, contrariando a narrativa neoliberal de que o setor privado deveria ser o principal provedor desses direitos. Com base em dados concretos, Márcia Semmer desconstrói a ideia de que a classe média brasileira aderiu ao ideário ultraliberal. O texto evidencia como o desejo por um Estado presente, que garanta saúde, educação e segurança, se sobrepõe ao discurso da privatização e da desregulamentação. A análise cuidadosa dos resultados da pesquisa demonstra a necessidade de fortalecer políticas públicas e combater a precarização dos direitos trabalhistas, reafirmando o compromisso com um modelo de desenvolvimento que priorize a equidade e o bem-estar…

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