Conversando com o Professor Levitsky sobre a escalada fascista nos EUA e no mundo
- Revista Pub

- 19 de set.
- 7 min de leitura
-MARCIA SEMER-
Talvez eu devesse escrever sobre o momento histórico sem paralelo que vivemos no Brasil com o julgamento pelo STF da chamada Trama Golpista e a condenação do seu núcleo principal, representado pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, militares de alta patente e servidores civis. Este é mesmo o acontecimento do século ou dos séculos em nosso país e merece um relato capaz de registrar mais que o conteúdo jurídico da decisão, o ambiente político, a montanha-russa emocional e a satisfação com a justiça contida na decisão final. Tem sido muito interessante observar como essa decisão afetou e vem afetando parcela da população que nem mesmo imaginava que se sentiria tocada pelo tema, como tem acontecido com aqueles que perderam entes e amigos queridos na pandemia de Covid, além daqueles presos, torturados, interrompidos de várias maneiras em suas trajetórias durante a ditadura militar. Ainda vou falar sobre isso, mas quem sabe no próximo artigo. Por ora deixo anotado meu reconhecimento e agradecimento ao trabalho realizado pela Polícia Federal, Ministério Público Federal e Supremo Tribunal Federal, que envolveu e envolve inclusive risco pessoal de vários desses servidores na condução desse processo.
Talvez ainda devesse comentar a iniciativa oportunista e abusada dos deputados federais na apresentação e votação da PEC da Blindagem, proposta de alteração constitucional que impede a responsabilização dos parlamentares pelo cometimento de crimes no curso do mandato, sejam lá quais forem esses crimes, embora todos saibamos que no momento o objetivo é evitar as consequências do manejo criminoso das emendas impositivas, estas uma construção politicamente criminosa de per si.
Ou ainda a desfaçatez parlamentar de votar urgência pra uma espúria proposta de anistia destinada a livrar das respectivas penas os criminosos condenados há menos de uma semana pela tentativa de golpe de Estado empreendida entre o final de 2022 e o fatídico 08 de janeiro de 2023.
Mas desde que ouvi a palestra do professor Steven Levitsky proferida em agosto último no Seminário Democracia em Perspectiva na América Latina e no Brasil, atividade esta organizado pelo Senado (essa palestra está disponível do youtube- 1.06.30- [01]), fiquei perturbada com o elemento que o professor Levitsky escolheu revelar como uma das possíveis causas da resposta débil da institucionalidade norte-americana à tentativa de golpe de Trump em 2021, em contraponto com a resposta brasileira à tentativa de golpe de 08.01.2022, ou as respostas argentina e chilena às barbaridades vividas durante as respectivas ditaduras militares no passado não tão distante, todas sancionadas pelos respectivos Poderes Judiciários.
Ao expor que está desenvolvendo um novo estudo para entender exatamente por que a resposta norte-americana à tentativa de golpe engendrada por Trump em 2021 foi tão fraca, Levitsky elegeu a “memória coletiva” como elemento explicativo. Foram suas palavras: “a sociedade americana não tem memória coletiva de autoritarismo. A gente nunca perdeu a nossa democracia. A gente não tem experiência com autoritarismo.” E prossegue, “a maioria dos americanos, até pessoas educadas, a nossa elite, não entende a ameaça que estamos enfrentando agora. Eles ainda acreditam que autoritarismo não pode acontecer nos Estados Unidos.”
Steven Levitsky é um renomado intelectual norte americano que juntamente com Daniel Ziblatt escreveu os best sellers Como as Democracias Morrem e Como Salvar a Democracia.
As duas obras são robustas, fruto de amplas pesquisas e conexões com os fatos da história política dos EUA, fatos por sinal reveladores de ataques frontais à democracia e aos valores que ela carrega, engendrados a partir do reavivamento de conteúdos e modus operandi tipicamente fascistas.
Li ambos os livros, aprendi com eles, encantei-me com a riqueza e clareza dos elementos relatados, lembrando na forma simples de expor reflexões profundas o modo igualmente acessível adotado pelo grande Robert Dahl em seus trabalhos sobre democracia, traço marcante da escola americana do pensamento.
Talvez por tudo isso, conhecedora da excelência do pensamento crítico do professor Levitsky, ouvir a escolha desse elemento digamos assim elogioso de “memória coletiva” me surpreendeu, me impactou tão fortemente que por vários dias uma quase indignação não me saía da cabeça.

Afinal, ouvir que “a sociedade americana não tem memória coletiva de autoritarismo” parece afirmação bastante questionável. Ainda que o ilustre professor tivesse mirando a ideia de golpe como os muitos ocorridos na América Latina, o fato é que a democracia norte-americana não tem uma trajetória exatamente pacífica. Mesmo que golpes militares não integrem o seu cardápio de interrupções da normalidade democrática, não são poucos os presidentes norte-americanos mortos, a tiros, no exercício do cargo. Para ser mais precisa foram quatro, entre os quais Abraham Lincoln e John Kennedy, dois atentados dramáticos e públicos, que não só impactaram o curso da história daquele país como romperam a regularidade democrática. O assassinato de qualquer presidente é sempre um elemento de ruptura democrática, ainda que seu vice assuma na sequência, o fato em si constitui sinal inequívoco da violência presente no espaço de disputa política.
Mas os episódios reveladores do autoritarismo que marca a sociedade norte-americana estão longe de se circunscreverem aos atentados sofridos por seus presidentes, nem todos mortais, diga-se. Houve presidente que sobreviveu.
A sociedade norte-americana viveu e hoje vive experiências autoritárias muito fortes, nada veladas, sempre explícitas e pungentes.
O genocídio dos povos originários e a escravidão dos negros de origem africana, abolida esta última apenas na segunda metade do século XIX, são os exemplos mais dramáticos de vivência autoritária, verdadeiros flagelos humanos de que a sociedade brasileira também foi vítima, é sempre bom lembrar.
Ainda no século XIX e ato contínuo à chamada Reconstrução- que foi o período subsequente à Guerra da Secessão entre 1865 e 1877, em que aos negros foi reconhecido o direito ao voto e ampla participação na vida política- o retrocesso autoritário que vedou a participação democrática da população negra na vida política do país é de uma brutalidade indiscutível. A partir daí, aliás, práticas discriminatórias se espraiaram chanceladas por disposições legais que vigoraram por várias décadas do século XX.
A arte norte-americana expôs nas telas e nas músicas inúmeras dessas práticas que o autoritarismo estadunidense abonou: as diversas barreiras para obtenção do direito ao voto, para acesso à educação, para uso do transporte públicos, dos banheiros públicos, até dos restaurantes privados, sempre impondo aos negros a segregação espacial, em exercício diário de humilhação social. Quem não se indignou e se emocionou com as cenas de Estrelas Além do Tempo em que as brilhantes matemáticas da Nasa tinham que cruzar a repartição para ir ao banheiro externo destinado às mulheres negras? Sem esquecer o linchamento e enforcamento indiscriminado dos afro-americanos, especialmente nos estados sulistas onde até hoje tem lugar a temida Klu Klux Klan, prática odiosa retratada na dilacerante Strange Fruit, música eternizada na voz de Billie Holiday, mas gravada também por Nina Simone e outros grandes da musicografia mundial.
Essa política dura, indiscutivelmente autoritária desenvolvida no pós-reconstrução e conhecida como sistema Jim Crow, exatamente por seu caráter de produção de ambiente de discriminação racial estrutural se prestou também à criminalização seletiva da população negra norte-americana e ao grande encarceramento de sua juventude, situação que perdura até nossos dias. Aqui também a arte nos ajuda a visualizar a brutalidade do que essa população experimentou e experimenta, valendo conferir nas telas À Espera de um Milagre e Luta por Justiça ou ouvir em sua mídia preferida Hurricane na voz do laureado Bob Dilan.
Mesmo no curso dos anos 1960, quando emergiu o Movimento por Direitos Civis e a população negra investiu na luta democrática pela igualdade de participação, o autoritarismo chegou pesado ceifando as vidas de suas grandes lideranças – Martin Luther King e Malcom X são os mais proeminentes quadros silenciados- e calando muitas vozes e suspendendo tantos sonhos.
Mas o autoritarismo marcou presença nos EUA em outros flancos e em diferentes momentos do século XX. O fenômeno do Macarthismo, perseguição explicitamente político-ideológica, sediada no pós-guerra, já no período da guerra fria entre a segunda metade dos anos 1940 e anos 1950, põe a nu a relativa facilidade existente naquelas plagas para criação institucional de ambiente político autoritário em tudo assemelhado com o experimentado durante a vigência de ditaduras civis ou militares na América Latina. Como sabido, no Macarthismo, intelectuais, artistas, professores universitários, enfim, não apenas a população negra, mas aqui também cidadãos brancos foram perseguidos, torturados e mortos em razão de seus ideais políticos ou de seus supostos ideais políticos, via de regra acusados de serem agentes soviéticos, cidadãos perigosos, traidores da pátria. A arte, sempre a arte, a fascinante arte mais uma vez nos ajuda a conhecer e ao reproduzir os porões do Macarthismo revela a brutalidade de suas práticas, conforme se pode constatar em obras cinematográficas como Boa Noite Boa Sorte, Trumbo e Oppenheimer.
Todo esse cenário assim encadeado, cenário que certamente o professor Levitsky conhece e domina muito melhor do que eu, só amplifica minha perplexidade diante da afirmação de que “a sociedade americana não tem memória coletiva de autoritarismo”, afirmação inclusive reproduzida por ele em outras entrevistas concedidas durante sua permanência aqui no Brasil, como a que teve lugar no programa Roda Viva, da TV Cultura.
Não professor Levitsky, se de fato existir uma memória coletiva americana ela é necessariamente uma memória coletiva profunda e perenemente marcada pelo autoritarismo. Daí que nesse ambiente estruturalmente autoritário a ascenção do fascismo capitaneado por Trump não representa exatamente uma aberração. Há de fato um expressivo alargamento de escala, derivado do espraiamento de aberrações preexistentes que nesta quadra estão direcionadas a novos grupos como os imigrantes, as comunidades LGBTQIA+, os intelectuais defensores da Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) e qualquer cidadão que questione as posturas, valores e práticas governamentais. O flerte de parte da sociedade americana com o fascismo tampouco constitui novidade, como o próprio Trump expõe ao resgatar brocardos antigos como o “America First” ou o “MAGA -Make America Great Again” para turbinar seu discurso desabridamente fascista..
Essa “memória coletiva” glamourizada da democracia norte-americana intocada pelo autoritarismo talvez funcione no imaginário uma parcela muito reduzida e elitizada da sociedade americana, mas não, definitivamente não corresponde à realidade histórica, sociológica e política dessa sociedade. Trata-se de um auto-engano que talvez Freud explique, mas que o pensamento crítico, com toda a reverência e respeito, não pode abonar.
Tenho lido e refletido um bocado sobre o tema da escalada fascista nesta modernidade tardia e hoje tenho para mim que a escalada fascista nos EUA e no mundo diz mais com nossos pecados do que com nossas virtudes.
Marcia Maria Barreta Fernandes Semer. Advogada. Procuradora do Estado de São Paulo aposentada. Mestre em Direito Administrativo e Doutora em Direito do Estado pela USP. Membro integrante do Conselho Consultivo do IBAP.










Parabéns pelo artigo Marcia. Um abraço, Celia M. Prendes