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Tá na cara. Você não vê?

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    Revista Pub
  • 26 de mai.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 6 de jul.

De volta às inconstitucionais Emendas Parlamentares Impositivas.


“Me dediquei a mudar o mundo e não mudei porcaria

nenhuma, mas estive entretido. E gerei muitos amigos e

muitos aliados nessa loucura de tentar mudar o mundo

para melhorá-lo. E dei um sentido à minha vida.”

Pepe Mujica.



Foto do acervo pessoal da autora - Foto do STF.
Foto do acervo pessoal da autora - Foto do STF.

Notícia deste domingo 18.05.2025 divulgada no site UOL dá conta de que o Ministro Flávio Dino emitiu despacho convocando audiência pública para o próximo 27 de junho a fim ouvir especialistas acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade das chamadas emendas constitucionais impositivas e também emendas pix.


Não deixa de ser uma notícia alvissareira, já que o assunto, inacreditavelmente, deixou de receber por quase dez anos dos diversos legitimados constitucionais para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade a atenção e o questionamento devidos. 


As emendas parlamentares impositivas entraram no ordenamento jurídico pátrio em 2015, por ocasião da promulgação da Emenda Constitucional n. 86/2015, mas somente em 2024 um partido político, o PSOL, ajuizou ADI que questiona a materialidade do enxerto esdrúxulo e espúrio. Trata-se da ADI 7697, exatamente a que ensejou o despacho do Ministro. Outras ações tramitaram na Corte envolvendo as emendas impositivas, notadamente ADPFs ajuizadas pelo Cidadania, PSB, PSOL e Partido Verde, mas todas versando sobre a execução das emendas impositivas, em especial no que concerne às emendas de relator e ao que ficou conhecido como orçamento secreto. Contudo, a ADI 7697 é a iniciativa que questiona a própria pertinência constitucional do instituto das emendas impositivas e isso é um divisor de águas.


Afinal, nem Ministério Público, aquela instituição textualmente responsável pela defesa do regime democrático (CF/88, art. 127, caput), nem presidente da República, nem OAB, nem entidades de abrangência nacional, nem partidos políticos, à exceção dessa iniciativa relativamente recente do PSOL, nenhum desses legitimados se mobilizou para defender a higidez de nosso modelo democrático. 


Aliás, até curioso, e mesmo louvável, que dentre tantos legitimados institucionais o questionamento necessário à constitucionalidade das emendas parlamentares impositivas derive exatamente de um partido político que, até aqui, tem na atuação parlamentar seu maior patrimônio.


Bem distante do que se pode inicialmente imaginar, a ideia de introduzir emendas impositivas no texto constitucional não surgiu em 2015 como resultado da crise política do governo Dilma que àquela altura já se desenhava. Em 2015 a coisa finalmente se concretizou, mas essa história de emenda impositiva começa nos anos 2000, quando o governo Fernando Henrique Cardoso enfrentava período de turbulência marcada por crise econômica, energética, com consequente queda significativa de popularidade. Pois foi nesse momento que o Senador Antônio Carlos Magalhães, o conhecido e temido ACM, encabeçou a pioneira Proposta de Emenda Constitucional 22/2000, depois nomeada PEC 22A/2000. Crise política e emendas impositivas, é fato, desde o início andaram de mãos dadas.


Em 2006, na esteira da crise do mensalão, a PEC 565/2006 revigorou a PEC 22/2000, mas novamente não vingou. 


Nesse diapasão, não surpreende que a investida subsequente tenha ocorrido em agosto/2013, logo depois, portanto, dos protestos de junho/2013. Nessa oportunidade, o Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Henrique Eduardo Alves, parlamentar que como todos sabem era figura muito afinada com o então vice-presidente Michel Temer, ressuscita, sob número 353/2013 a PEC 22A/2000. A proposta é aprovada na Câmara e enviada ao Senado, sob a presidência de Renan Calheiros. No Senado, sob relatoria do Senador Eduardo Braga a PEC é aprovada com modificação ainda em 2013, sendo, via de consequência, remetida de volta para a Câmara dos Deputados para nova apreciação e votação.


Em 2014, ano eleitoral, a PEC 358/2013, número recebido no Senado, não andou, pra usar uma expressão popular, voltando a tramitar em 2015 com a eleição (inesperada? Indesejada?) de Dilma Rousseff, quando finalmente é promulgada a EC 86/2015, primeira da série atentatória à Constituição alusiva ao tema.


A EC 86/2015, por assim dizer, abriu a porteira para outras investidas congressuais que redundaram em normativas mais invasivas, a exemplo das emendas de bancada e as emendas pix, sempre gestadas em situações onde a liderança executiva se mostrava enfraquecida. Assim, à EC 86/2015, sobrevieram as EC 100/2019, 105/2019 e 122/2022 que alargaram a fatia orçamentária posta para direcionamento pelos parlamentares, além de conceberem formas esdrúxulas e pouco auditáveis de distribuição dos recursos orçamentários dessa natureza.


Grosso modo, emendas parlamentares impositivas, fundamental esclarecer, são recursos orçamentários que, em vez de serem direcionados pelo Poder Executivo para a realização de políticas públicas devidamente estruturadas, são encaminhados por parlamentares, individualmente ou por iniciativa da bancada de cada Estado ou do Distrito Federal para, basicamente, a ação estatal que os Parlamentares quiserem, no Estado ou Município que escolherem, observados alguns poucos balizamentos como, por exemplo, a vedação de utilização para custeio de pessoal. Isso, obviamente, transforma o Parlamentar numa nova espécie de Coronel, de benfeitor de seus aliados políticos, em esquema que tende a garantir a reeleição perpétua dos mecenas de ocasião.


Mas enfim, qual a inconstitucionalidade tão implacável que essas emendas encerram? Por que está tudo errado e precisa ser corajosamente corrigido? Sim, porque fazer cumprir a Constituição é sempre um ato de coragem, máxime quando o usurpador é um dos Poderes da República, no caso o hoje poderoso e ameaçador Poder Legislativo.

Várias são as inconstitucionalidades que podem ser levantadas e na ADI ajuizada pelo PSOL estão invocadas muitas delas. 


Porém, tenho pra mim, e já disse isso em artigo que publiquei nesta mesma Revista PUB, que as emendas parlamentares impositivas ferem de morte o presidencialismo e, portanto, o regime democrático modelado na Constituição Cidadã de 1988. Representam uma maneira ilegítima de alterar o sistema de governo adotado pelo Constituinte originário e ratificada soberanamente pelo povo brasileiro. Ao fazê-lo, ademais, altera o equilíbrio entre os poderes próprio do sistema presidencialista, afetando o regime democrático daí derivado por disfunção desse sistema, o que se traduz em inegáveis dificuldades para a governabilidade.


O presidencialismo é desde a proclamação da república o sistema de governo adotado pelos sucessivos Constituintes brasileiros. E mais que isso, o presidencialismo é a escolha soberana e direta do próprio povo brasileiro que, historicamente, manifestou-se por duas vezes, em votações expressivas para chancelar esse particular sistema de governo. Fê-lo na década de 1960, à época do Governo João Goulart, e tornou a fazê-lo no plebiscito de 1993, quando deliberou por larga margem que o Brasil está organizado como uma república presidencialista.


Veja, leitor, isso não é pouca coisa. A Constituição tem duas centenas de artigos e o povo brasileiro deliberou diretamente sobre apenas dois pontos, o republicanismo e o presidencialismo. Obviamente isso tem um significado, um peso que não pode, sob nenhuma hipótese, ser ignorado nem menosprezado. Trata-se do núcleo central sobre o qual está edificada a nação. E que só pode ser alterado com a ruptura da ordem institucional, numa nova ordem, não na ordem derivada da Constituição de 1988. O mesmo se diga, aliás, dessas propostas que volta e meio se apresentam de semipresidencialismo, talvez visando exatamente legitimar o que está completamente fora da ordem como estão essas emendas parlamentares impositivas.


Mas o que significa presidencialismo? Bem, o presidencialismo é um sistema de governo, adotado pioneiramente nos EUA, em que as chefias de Estado e de governo são exercidas pela mesma pessoa, que é escolhida diretamente pelo povo em eleições periódicas. A chefia de Estado consiste na responsabilidade de tratar de todas as matérias alusivas às relações entre Estados nacionais, ou, em outras palavras, com os diferentes países do mundo, e envolve as relações políticas e diplomáticas entre nações. Já a chefia de governo corresponde à responsabilidade, intransferível, de direção interna do país, de escolha de políticas públicas, de decisão sobre essas políticas, de execução das políticas propostas, de manejo, direcionamento e aplicação dos recursos orçamentários necessários à realização dessas políticas.


Na Constituição de 1988 as incumbências normativas representativas do presidencialismo encontramos precipuamente no artigo 84. Esse dispositivo constitucional dá identidade ao presidencialismo no Brasil, elencando uma série de atribuições privativas do presidente. Entre elas vale destacar o inciso II que expressamente dispõe que “Compete privativamente ao Presidente da República, exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal; o inciso XXII que elenca entre as atribuições privativas do presidente “o envio ao Congresso Nacional do plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e as propostas de orçamento previstas na Constituição”; bem assim o inciso XXIV que impõe ao Presidente “prestar, anualmente, ao Congresso Nacional, dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas referentes ao exercício anterior.”.


Ora, esse elenco exemplificativo de atribuições escancara que no presidencialismo está nas mãos do Poder Executivo governar, dar a direção, dizer o rumo a ser seguido pela Administração Pública, obviamente dentro da legalidade existente, o que significa decidir o destino dos recursos orçamentários e, no mais das vezes, executar diretamente a tarefa. Nisso reside o sentido de direção superior da administração federal.


Assim, no presidencialismo as escolhas derivadas do campo da discricionariedade política e administrativa estão a cargo do Poder Executivo. Não fosse assim não haveria motivo para que, dentro do sistema de freios e contrapesos, competisse ao Executivo submeter ao Congresso Plano Plurianual, lei de diretrizes orçamentárias, leis orçamentárias anuais, e nem mesmo prestar contas da execução orçamentária realizada. Presta-se contas a quem fiscaliza, não a quem tem a decisão sobre o direcionamento e execução da receita. E tanto o Legislativo é o Poder que fiscaliza, e não propriamente o que governa, que o Tribunal de Contas é órgão a ele vinculado.


Obviamente o Poder Legislativo e o Poder Judiciário exercem atividades executivas, mas restritas à sua organização e funcionamento. O comando político-administrativo do Estado é função do governo e governo é aquele responsável por dar o rumo, a direção, o que implica, consequentemente, direcionar e aplicar os recursos orçamentários conforme os planos plurianuais, de diretrizes orçamentárias e orçamentários anuais por ele elaborados, após aprovação do Congresso.


Daí que normativa que subtrai do Poder Executivo e coloca nas mãos do Poder Legislativo, pior, coloca individualmente ou por bancada na mão dos Parlamentares fatia do orçamento para distribuição segundo critérios de sua conveniência é construção teratológica, corpo estranho, verdadeiro carcinoma introduzido no tecido constitucional, normativa ofensiva à Constituição e, portanto, nula de pleno direito. 


Desde o início, como na letra da música de Gil, Está na cara. Você não vê?


Vê sim. Lógico que vê. Pode até fingir costume, andando de lado e olhando pro chão, agora na poética de Chico, mas vê.


O importante, neste momento, é saber, como ensina Gil, “Que o segredo está na cura”, principalmente “O segredo está na cura do medo” de enfrentar esse rojão. E a cura será alcançada com o reconhecimento, pelo STF, da inconstitucionalidade das emendas constitucionais impositivas. Eu acredito! Ou quero acreditar. Sou daquelas que ainda sonham, com os amigos, em mudar o mundo pra melhor. E hoje, por incrível que pareça, defender a Constituição Cidadã, essa de 1988, tem se mostrado um caminho necessário para a garantia de um mundo melhor.




Marcia Maria Barreta Fernandes Semer. Advogada. Procuradora do Estado de São Paulo aposentada. Mestre em Direito Administrativo e Doutora em Direito do Estado pela USP. Membro integrante do Conselho Consultivo do IBAP, escreve regularmente todo dia 19 na Revista PUB.



 


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