Tudo o que você sempre quis saber sobre Reforma Administrativa (Mas tinha medo de perguntar) [1]
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-MARCIA SEMER-
Reforma Administrativa é tema que exerce algum fascínio sobre a sociedade brasileira, afinal, vira e mexe ressurge com destaque na mídia e isso, obviamente, atrai a atenção das pessoas. Mas se o assunto chama audiência mais ou menos interessada do público em geral, para setores liberais conservadores Reforma Administrativa constitui verdadeiro fetiche, assunto prazeroso de perfil sádico, já que inflige preocupação, insegurança e medo sobre todos que trabalham ou trabalharam no Estado, bem como sobre setores que vêem no Estado o agente responsável pelas políticas públicas de redução das desigualdades ou de construção de igualdades.
Toda vez que alguém falar de Reforma Administrativa saiba que está na mesa não apenas a modelagem da política de pessoal do Estado, ou em outras palavras as regras sobre as formas de recrutamento e permanência dos funcionários públicos no trabalho, mas também e principalmente a forma como o Estado se relaciona com a cidadania, o que vale dizer, por que mãos e como os serviços a cargo do Estado serão prestados à população. Até mesmo se o Estado seguirá prestando este ou aquele serviço ou se no futuro o Estado terá meios de propor e realizar esta ou aquela política pública são temas decorrentes.
Então, Reforma Administrativa é assunto que está longe de ser tema de interesse apenas dos funcionários públicos ou dos políticos, é questão que interessa ou deve interessar todos nós.
Guillermo O’donnell [2], um destacado estudioso do Estado e da democracia, quando se debruça sobre a definição de Estado, apresenta-a a partir de quatro dimensões componentes de um todo. A primeira, exatamente a primeira dimensão é a que identifica o Estado com sua burocracia, com esse corpo funcional responsável legalmente pela proteção e obtenção do bem comum. O funcionário público é a cara e a voz do Estado, é sua corporificação em todas as relações com a cidadania: saúde, educação, segurança, justiça, previdência e tudo mais. É sua representação primária e vital, garante da eficácia, efetividade e credibilidade do Estado em seu agir adstrito sempre e necessariamente aos contornos da legalidade.
Muito antes dele, Max Weber [3] enxergou na burocracia, notadamente essa do tipo estatal que só se movimenta adstrita a comandos legais, tipo de dominação, expressão do exercício do poder.
Como explica Maurício Tragtenberg [4] em sua obra Burocracia e Ideologia, “a administração burocrática para Weber apresenta como notas dominantes a especialização, o fato de constituir-se em profissão e não em honraria; a separação do administrador dos meios de administração, a fidelidade impessoal ao cargo, a remuneração em dinheiro.”. (...) sob a liberdade formal do contrato, temos a dependência econômica e, sob a liberdade formal no plano político e a democratização impessoal niveladora, a burocracia aparece como mediação da opressão.
Neste 2025 a Constituição Cidadã completa 37 anos de vigência e Reforma Administrativa é tema que entrou e entra em pauta quase que de forma perene, tamanho o impacto que a normativa introduzida pela Carta de 1988, notadamente com a exigência de concurso público de provas e títulos para a investidura em cargos e empregos públicos e a garantia constitucional da estabilidade, entre outros elementos, introduziram na vida política nacional.
Todos sabem que os cargos e empregos públicos por quase toda vida do Estado brasileiro eram usados para o loteamento político dos ocupantes do poder. Daí que a Constituição de 1988 trouxe um grande impacto, porque a priori reduziu substancialmente um espaço de influência que era trivial e do cotidiano do mundo político-institucional.
Lógico que na década de 1940, ainda sob o governo Vargas, tivemos um primeiro e importante impulso na formação e profissionalização da burocracia estatal, com previsão de concurso público, etc.
Na lição de Fernando Luiz Abrúcio, Paula Pedrotti e Marcos Vinícius Pó [5], o modelo de administração Pública criado por Vargas inaugura uma nova era por três razões: “A primeira é que a sua construção obedecerá ao objetivo de expandir, num movimento sem precedentes, o papel do Estado, que aumentará sua intervenção nos domínios econômico e social em nome de um projeto de modernização nacional-desenvolvimentista. (...) A segunda especificidade do modelo varguista foi criar, pelo menos numa parte do aparelho estatal, uma estrutura institucional, profissional e universalista de meritocracia. (...) A terceira singularidade estará vinculada à criação de uma burocracia meritocrática, profissional e universalista, que, ao atuar como motor da expansão desenvolvimentista do Estado, tornou-se então a primeira estrutura de burocracia weberiana destinada a produzir políticas públicas em larga escala.”.
A CF/88 deu um passo além daquele dado por Vargas. Tornou o concurso público regra, exigência imperiosa para o preenchimento de cargo ou emprego público por toda a Administração e não apenas para setores estratégicos. Isso fez e faz toda diferença. A CF/88, notadamente em sua redação original, ademais, dotou esse corpo de servidores estatais concursados de garantias robustas para o exercício das respectivas atribuições, especialmente na constitucionalização da estabilidade, buscando deliberadamente arrefecer a influência política sobre decisões administrativas.
E não pensem que esses mandamentos constitucionais se realizaram natural e facilmente. Não foi bem assim não. Apesar a literalidade da Carta, os primeiros anos foram brigados. Lembro, por exemplo, que a necessidade de realização de concurso público para preenchimento de empregos públicos em autarquias, fundações e estatais era uma dúvida, imaginem, demandou estudos, discussões, doutrina, e decisões judiciais, ao fim e ao cabo. Em verdade até hoje temos nichos de resistência em setores inimagináveis. Em São Paulo, na UNESP (uma universidade pública de excelência, pasmem!), passados 37 anos da promulgação da Carta Cidadã, ainda não se completou o ciclo de estruturação da Procuradoria (Advocacia Pública) da Universidade com profissionais concursados. Tão renhida a resistência ao comando constitucional do concurso público que o assunto foi parar no Judiciário por provocação do Ministério Público Estadual. Outros temas ainda seguem instáveis, o mais notório deles é o referente ao teto constitucional que a própria proposta de Reforma esvazia, não obstante venda a falsa ideia de que veio para limitar. Esse ponto específico vamos abordar mais detidamente adiante.
Um elemento que parece fundamental destacar para entender as reiteradas iniciativas de Reforma Administrativa está no fato de que o arranjo original de 1988, além de fechar portas de espaço tradicional de barganha política, concentrou nas mãos da burocracia existente e principalmente da nascente burocracia concursada que a partir de então se formaria uma gama enorme de competências estatais e, portanto, de poder, o que naturalmente gerou e gera inquietações.
Na mira política desde o nascedouro, portanto, a mudança na normativa de conformação da burocracia estatal se mostrou elemento tão relevante que a Constituição não tinha nem dez anos de vida quando até Ministério se criou para promover Reforma Administrativa. Tratou-se do Ministério da Administração e Reforma do Estado (Mare), instalado ainda no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, cujo Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) foi apresentado como caminho para modernizar o Estado e proporcionar maior competitividade ao país. Basicamente o mesmo fundamento que toda proposta de Reforma Administrativa exibe em verdadeiro mantra.
Como ensina a professora Irene Nohara [6] em seu Reforma Administrativa e Burocracia, Impacto da Eficiência na Configuração do Direito Administrativo Brasileiro, na EC n. 19/98 “as modificações sugeridas foram inspiradas em um valor-base: a eficiência. E assim, agora digo eu, fez-se a primeira introdução esdrúxula no caput do artigo 37, da CF: agregou-se ao rol de condições de validade do ato administrativo (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade), a eficiência. Abrindo novamente os escaninhos da memória, recordo de discussões da época sobre como deveríamos ler esse novo princípio. Seria ele também novo elemento definidor da validade do ato administrativo? Sim, porque, se não fosse, qual seu significado? Afinal, a busca da eficiência é um vetor óbvio, sua inscrição era despicienda. Os anos se passaram e descobrimos todos que a palavrinha pretensamente inofensiva não tinha nada de despicienda.
Essa Reforma Administrativa de 1998, por meio do primado da eficiência buscou em verdade modificar o papel do Estado de prestador de serviços públicos para gerenciador de atividades que, progressivamente, foram transferidas ao setor privado. Trata-se do decantado modelo gerencial que vimos, todos os que trabalhamos no Estado nos últimos trinta anos, emergir por intermédio das OSs com a transformação do Estado no setor da saúde, das OSCIPs e a atuação no campo da cultura, das PPP com a transferência ao setor privado de obras e gestão de equipamentos de infra-estrutura, entre outros instrumentos, com destaque para as privatizações de setores estratégicos, que emergiram contemporâneos e caudatários dos ideais que nortearam a Reforma Administrativa de 1998. Nesse especial aspecto, são reveladoras do que se busca com essas Reformas as palavras de Hélio Beltrão, publicadas em obra de 1968, ano difícil, de memória pouco democrática: “Em vez de construir diretamente, por exemplo, contratar as construções; em vez de montar um sistema de coletoria e postos arrecadadores, utilizar a rede bancária; em vez de construir, equipar, administrar e manter hospitais, contratar internação hospitalar com organizações existentes, em vez de operar frotas de caminhões, contratar serviços de transporte.” Quem viveu e vive sabe que tudo isso se realizou.
O gerencialismo venceu e se instalou. E se instalou em duplo movimento, o que é crucial enxergar e entender. De um lado franqueando a realização de parcelas expressivas das atividades estatais para os particulares, o que reduziu sobremaneira o campo de competência originalmente a cargo do funcionalismo público; de outro fragilizando a garantia constitucional da estabilidade mediante a alteração do artigo 41 da CF/88 para (i) ampliar o tempo de estágio probatório de dois para três anos e (ii) permitir a perda de cargo por servidor efetivo em razão de procedimento de avaliação periódica de desempenho. Convenhamos que foram dois petardos disparados contra a concepção original do texto constitucional e o propósito de construção de burocracia organizacional e profissional robusta.
Os anos se passaram, algumas alterações pontuais ainda ocorreram no curso dos últimos vinte e cinco anos e desde 2019 o propósito de votar mudança constitucional de Reforma Administrativa começa a tomar força, até que em 24/10/2025, depois de processo nada democrático, nem um pouco transparente, absolutamente hermético de elaboração legislativa, a PEC 38/2025 foi protocolizada na Câmara dos Deputados, fruto de relatório do Deputado Federal Pedro Paulo, do PP/RJ.
Estamos, pois, às voltas com nova proposta de Reforma Administrativa que, digo de cara, pretende desmontar o que se construiu, aos trancos e barrancos, de burocracia estatal profissional no Brasil. Mais, e voltando à lição do professor O’donnell, constitui movimento de enfraquecimento do própria Estado, com consequente perda de eficácia, efetividade e credibilidade de sua capacidade de realização dos fundamentos e objetivos constitucionais inscritos nos artigos 1º e 3º do texto constitucional.
Vejam, se a Reforma Administrativa de 1998 teve o condão de dar feição gerencialista ao Estado, nos moldes preconizados por Hélio Beltrão ainda nos 1968, transferindo amplos setores de obras e serviços públicos para a execução e gestão privadas, ela não exatamente impedia a realização das políticas necessárias à realização dos propósitos constitucionais. A PEC 38/2025, no entanto, tem um propósito menos evidente, mas mais deletério. É que o produto de minar os laços de fidelidade e solidariedade constitutivos de uma estrutura burocrática organizacional e profissional de Estado, flexibilizando as normas objetivas de incentivo à permanência e crescimento no serviço público, que é o que a PEC 38/2025 faz, será dificultar sobremaneira, quando não inviabilizar a perenidade de projetos ou políticas públicas estruturantes. Esse tipo de política exige mão de obra especializada, estabilizada nas funções e comprometida com o projeto. Sem isso o modelo de Estado social endereçado pelos artigos 1º e 3º da CF/88 terá muito mais dificuldade de sair do papel, na medida que será impossível colocá-lo de pé por falta de corpo funcional estruturado para isso.
Alguém poderá exclamar: mas que exagero!
Será mesmo? Funcionários fragmentados, com garantias fragilizadas, continuamente vigiados, concorrentes entre si vão estar mais disponíveis para projetos institucionais que demandam sentido de equipe ou para sobreviver num ambiente hostil e competitivo, colocando suas energias em projetos de promoção pessoal?
Mas vamos à Proposta de Emenda Constitucional.
O que você precisa saber sobre a PEC 38/2025 e tem até medo de perguntar?
Bom, são muitos os pontos, os proponentes não foram modestos, de modo que vou me ater a 7 aspectos numa espécie de panorama geral da encrenca.
O que acesso digital e previsão de norma geral para matérias administrativas tem a ver com Reforma Administrativa?
Bem, a rigor nada. Mas a PEC 38/2025 resolveu começar inclusiva, introduzindo no texto constitucional o acesso digital a certidões e documentos públicos como direito fundamental, além de reconhecer a inclusão digital como direito social e prever a manutenção de uma Estratégia Nacional de Governo Digital e uma Política Nacional de Dados para o Setor Público. Tudo muito interessante, propositivo, mas nada que não pudesse estar disciplinado em lei e que o influxo da evolução tecnológica não vá promover de per si e evidentemente superar, porque a evolução tecnológica tem assumido uma velocidade tal que talvez seja até mesmo incompatível com a sempre pretendida perenidade constitucional. Enfim, verdadeiro nariz de cera introduzido para conquistar simpatia a partir de uma proposição “soft”, fofa.
Mas no nariz de cera, ou seja, na parte inicial cujos acréscimos propostos não dizem respeito propriamente a matéria de Reforma Administrativa, a proposta já descamba pra um terreno perigoso, que é o d provisão de normas gerais para uma série de matérias, em teste capcioso de limites, para ser benevolente, ao modelo federalista de Estado. Ademais, em manobra que parece de puro diversionismo, a PEC 38/2025 chega a propor que a Constituição regule o número de secretarias que os entes municipais poderão manter nas respectivas prefeituras ou o limite da remuneração de prefeitos, subprefeitos e secretários municipais, matérias essas que se fossem constitucionais, se não confrontassem diretamente o princípio federalista como fazem, dizem respeito à estrutura de Poder, não guardando qualquer relação de pertinência com o tema da organização administrativa do Estado. Uma lambança que não tenho certeza se é para ser levada a sério ou se é pra gerar polêmica, enquanto se deixa passar a boiada, em estratégia já exaltada em passado relativamente recente, ao alcance de um golpe de vista. Conclusão: já no nariz a proposta não cheira nada bem.
E os novos princípios contidos na proposta de reforma para servirem como orientadores da Administração Pública? São bons? Não são?
Então, a partir daqui adentramos na Reforma Administrativa propriamente dita. E a PEC 38/2025, como já fizera a EC 19/1998 com a eficiência, procura introduzir no caput do artigo 37, da CF/88 umas palavrinhas para serem tomadas como princípios de cuja inofensividade já aprendemos a desconfiar.
Primeiramente a proposta de Reforma Administrativa em tramitação no Congresso substitui o princípio da publicidade por transparência, como se os conceitos fossem equivalentes, como se a transparência fosse uma publicidade renovada, repaginada, ...“up to date”. Só que não. Os conceitos não se equivalem, publicidade é elemento de validade do ato administrativa, assim como a legalidade, a moralidade e a impessoalidade. A publicidade é constitutiva do ato administrativo, não lhe pode ser subtraída. A transparência, por sua vez, é o compromisso de evidência, de divulgação da ação estatal dirigida à cidadania. Não se relaciona a transparência com a existência ou inexistência do ato ou do contrato administrativo, com sua validade ou invalidade, porque esses são atributos que só a publicidade, juntamente com a legalidade, moralidade e impessoalidade podem lhe conferir. É possível, a nosso juízo, admitida a linha da desfiguração do caput do artigo 37 inaugurada pela EC 19/98, introduzir a transparência como princípio, mas em acréscimo, sem a subtração do princípio da publicidade. O princípio da publicidade integra, vamos repetir o conceito, elemento de validade dos atos da Administração e é, via de consequência, inerente a eles, de modo que incabível seu apagamento.
Na esteira do encantamento dos proponentes com o mundo digital, o texto da PEC 38/2025 inclui também no caput do art. 37, da CF/88 o princípio da digitalização. Sobre esse eu vou me abster de fazer comentário. Com a evolução da IA, aliás, nem sei se o termo já não nasce anacrônico. A proposição, de tão inodora, fala por si.
E por fim se acrescenta como princípio constitucional a consensualidade.
É verdade que a legislação infraconstitucional tem, notadamente nos últimos dez anos, introduzido elementos incentivadores da solução consensual de conflitos na e pela Administração. Pessoalmente, desde os anos 1990 quando ingressei na Advocacia Pública sou uma entusiasta da busca pela solução consensuada de conflitos estatais, precipuamente dos casos de baixa complexidade e/ou baixa onerosidade existentes entre Estado e Cidadania, dos travados entre órgãos da Administração, e daqueles relativos ao reconhecimento de certos direitos sociais de acesso a saúde, previdência, moradia, etc. Vejo na Advocacia Pública braço estatal fundamental para a formulação de políticas públicas de solução consensuada de conflitos, em movimento de redução da litigiosidade judicial e de construção da confiança do cidadão no papel social do Estado. A Lei de Mediação (Lei 13.140/2015), a LINDB (Lei 13.655/2018), a Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) são todos instrumentos que trazem diretrizes para soluções pactuadas entre Estado e Estado, Estado e Contratado, Estado e Cidadão.
Contudo, sem pretender ser alarmista, na proposta de inserção da consensualidade como princípio constitucional tudo faz lembrar a ideia de prevalência “do acordado sobre o legislado”, o que, num ambiente em que a regra maior é a legalidade, onde só se pode fazer o que a lei autoriza, ausente a liberdade ou a autonomia da vontade para agir se a lei não proibir, pode ser, a depender do sentido e do alcance que se queira dar à consensualidade, um verdadeiro cavalo de troia para a ortodoxia administrativa, um elemento de contradição com a própria diretiva de observância da legalidade, princípio maior do Estado de Direito.
Veja, caro leitor, se numa relação meramente privada entre empregado e empregador o acordado sobre o legislado pode ser causa de desequilíbrio para a justeza das decisões, nas relações Estado-cidadania, o acordado sobre o legislado tende a descambar para a tirania, é o avesso do Estado de Direito. Daí que todo cuidado é pouco e, pessoalmente, não reputo benfazeja a introdução da consensualidade como princípio constitucional, por mais entusiasta que seja de, no âmbito infraconstitucional, manter e até ampliar normas de incentivo à práticas não-contenciosas de solução de conflitos quando uma ou ambas as partes integram a Administração Pública.
A proposta traz alguma mudança no acesso das pessoas aos cargos e empregos públicos?
Não e sim. Não porque mantém a disposição de que o concurso público é a via de acesso a cargos e empregos públicos. E sim porque redireciona o tipo de profissional que pretende para o serviço público, ao falar em “perfil profissional desejável” e “conhecimento e habilidades estritamente necessários para o desempenho das respectivas atribuições”.
Aqui, mais uma vez, as palavras nada inocentes endereçam o recrutamento de pessoal a profissionais de cariz tecnocrata. Assim, a Administração vai formatar os certames para a seleção de um determinado “perfil”, o “perfil desejável”, o que abre um subjetivismo esquisito que, em tese, abonaria algum tipo de, por exemplo, recorte ou corte ideológico.
Depois, a Proposta de Emenda Constitucional impõe limitações aos concursos, explicitando que as provas avaliarão “conhecimentos e habilidades estritamente (grife-se o estritamente) necessários” para o desempenho das atribuições do cargo o emprego a ser preenchido. Ora! Mas o que significa “conhecimento e habilidades estritamente necessários”? Num concurso da área jurídica será inconstitucional uma pergunta que envolva conhecimento de sociologia, por exemplo? Se o cargo ou emprego é para trabalhar com direito tributário, será pertinente pergunta sobre direitos humanos?
A formação humana do servidor público é elemento dos mais relevantes e não tem sido incomum que, em virtude dessa compreensão que no curso desses 37 anos de Constituição Cidadã tomou corpo, os concursos públicos venham, na contramão da proposição em análise, ampliado o espectro dos conhecimentos exigidos daquele que pretende ser servidor público.
A PEC 38/2025 vem encaminhar que o Estado passe a recrutar outro tipo de profissional, um profissional que domine estritamente os conhecimentos específicos de sua área a atuação, sem atributos de largo espectro. É uma opção que, obviamente, não reputo a melhor opção. Vejo, mais que isso, como uma opção equivocada.
De qualquer modo, o que é exangue de dúvida é que o tema no mínimo merece debate público qualificado. A mudança proposta não é pequena, ela é relevante, impacta a médio prazo não apenas a prestação do serviço público, mas o próprio tipo de serviço público ou de política pública posto à disposição da população, de modo que é fundamental que se escute estudiosos do tema e a cidadania antes da decisão política sobre ele.
Ainda no que toca aos concursos, a PEC 38/2025 busca incluir uma nova modalidade de certame. Trata-se do concurso destinado à admissão de profissionais com maior especialização e experiência profissional, para investidura em níveis superiores da carreira. Aqui o objetivo parece ser atrair para o serviço público um profissional maduro, já estabelecido, altamente qualificado, mas que hoje não tem interesse em migrar para o serviço público porque a remuneração inicial é aquém da que já conquistou. Outro propósito pode ser também o de trazer para o serviço público a vivência do profissional da iniciativa privada e com isso, na visão liberal dos proponentes da Reforma, arejar, injetar dinamismo no ambiente público. Como sabemos, o ingresso no serviço público não é fácil e tem se tornado altamente concorrido, com aprovações majoritariamente verificadas entre um público que se dedica a prestar concursos. Em regra, são jovens que para concorrer aos cargos integrantes das ditas Carreiras de Estado, mais bem remuneradas, cruzam o país disputando os certames que se apresentam. Tornar o serviço público atraente para um outro segmento de profissionais é interessante, até tendo em vista a mudança drástica pela qual a pirâmide etária do país passará nos próximos 30 anos. Contudo, a Administração Pública é uma engrenagem complexa cuja expertise necessária é a que se adquire trabalhando com ela. Esse profissional que ingressar em níveis superiores será um iniciante de qualquer forma. E a tendência é se amoldar à engrenagem. No âmbito jurídico, a figura do quinto constitucional tem um propósito parecido ao dessa admissão inicial para níveis superiores. Lógico que a experiência profissional pretérita aporta elementos à atuação do magistrado que ingressa pelo quinto, mas em termos formais, é ele ou ela que se adapta à ritualística do Judiciário, e não o contrário. Enfim, outra proposta que demanda análise.
A PEC 38/2025 muda muito para os servidores da ativa?
Muda.
A PEC 38/2025 altera tudo que se construiu em termos de gestão de pessoal do serviço público no Brasil desde os anos 1930, mas precipuamente pela CF/88. Arrefece garantias, suprime direitos e lastreia toda progressão profissional e mesmo a percepção de benefícios remuneratórios na produtividade subjetivamente avaliada. Enfim, desfaz o primado da objetividade como vetor da construção da carreira pública e com isso provoca uma alteração fundamental na vida do servidor e do serviço públicos. Em efetivo, o servidor terá que reorientar os rumos e o agir dentro do serviço público para garantir sua progressão e muito provavelmente sua movimentação. Ficará o servidor, nesse modelo de gestão, mais vulnerável ao poder político derivado de agentes políticos propriamente ditos e também ao poder político interno à burocracia estatal. Afinal, dependerá de avaliações subjetivas para se promover, receber benefícios e para acessar postos de trabalho. Se a Proposta se vende como promotora da profissionalização no serviço público, ela pode acabar revigorando o serviço público politicamente capturado, a serviço de poderes externos ou intestinos à burocracia. A Proposta de Reforma, pois, é a antítese daquilo que a Constituição Cidadã, em sua redação original e mesmo até aqui posta buscou garantir: a formação de uma genuína burocracia estatal profissional.
A Proposta de Reforma Administrativa (PEC), como exposto, estabelece a produtividade individualmente considerada como fator definidor da progressão funcional e da obtenção de benefícios extraordinários ali previstos. Para tanto prevê, entre outros, que:
os órgãos e entidades firmem anualmente acordos de resultados (art. 37, XI-A, a);
“a existência de avaliação periódica de desempenho de pessoal (...) com objetivos e metas individuais alinhadas ao acordo de resultados e avaliadas em ciclos anuais (art. 37, XI-A, b);
os adicionais lastreados no tempo de serviço são extintos (art. 37, XXIII, d);
a progressão fundada no tempo de serviço fica vedada (art. 37, XXIII, g);
a instituição de verba remuneratória baseada em desempenho é admitida (art. 37, XXIII, m);
o recebimento de bônus de resultado, decorrente da avaliação periódica anual, em valores acima do limite remuneratório constitucional é admitido (art. 37, XI-A, d).
A obrigatoriedade da avaliação de desempenho anual, ademais, que deve ser inclusive monitorada pelo Tribunal de Contas (art. 71, XIII) evidentemente amplia a vulnerabilidade da estabilidade, ficando o servidor submetido a um ambiente de vigilância e controle ostensivo e desgastante. Não vou me admirar se os episódios de assédio moral, que já são significativos no serviço público, e de doença psíquica de origem laboral aumentarem nesse tipo de ambiente que tem muito incentivo para assumir caráter tóxico.
Mas a PEC 38/2025 não para por aí para os servidores ativos. Ela ainda veda:
a licença-prêmio ou assiduidade (art. 37, XXIII, f);
a concessão de folgas ou verbas decorrentes da acumulação de serviço, admitido o banco de horas (art. 37, XXIII, h);
a conversão de férias ou qualquer licença em pecúnia (art. 37, XXIII, j);
a vedação de pagamento de verba indenizatória em caráter rotineiro, permanente, à totalidade, maioria ou parcela relevante da carreira (art. 37, parágrafo 11-A, II, a, b)
além de outras limitações que especifica (art. 37, XXIII, a, b, i, k, l).
E ainda não acabou. Tem mais.
A Proposta de Reforma Administrativa estabelece que as carreiras públicas deverão se estruturar em, “no mínimo, vinte níveis para o alcance do nível final da carreira, com interstício mínimo de um ano entre cada progressão ou promoção” (art. 39, parágrafo 1º, IV). Isso significa que o servidor precisará de 40 anos de serviço público para alcançar o nível final da carreira, isso se conseguir ser promovido em todas as 20 oportunidades que tiver no curso desses 40 anos de trabalho. Acresça-se que a remuneração inicial das carreiras não poderá ser superior a 50% do valor da remuneração do nível final (art. 39, parágrafo 1º, V). Não nos esqueçamos, ainda, do gargalo de acesso aos níveis superiores decorrente da previsão de que parte dos cargos desses níveis poderão ser preenchidos por profissionais vindos de concurso público destinado especificamente a provê-los (art. 37, II-C).
Estabelece também a proposta a diretiva de estruturação de carreiras transversais, o que indicia a criação de carreiras onde os atuais servidores muito provavelmente serão encaixados e reclassificados, o que gera insegurança, risco de perda remuneratória, extinção de parâmetros, enfim, um cenário preocupante.
Por tudo isso, que nem esgota o febeapá da PEC 38/2025, a proposta não é boa para o trabalhador que é ou pretende ser servidor público. Convenhamos que se o objetivo é tornar o serviço público atraente e dinâmico, instituir uma evolução funcional que dura, se muito bem sucedida, 40 anos é teratológico. Seria hilário se não fosse trágico.
E os aposentados? A PEC 38/2025 afeta os aposentados?
Afeta. Afeta demais.
A Proposta em tramitação no Congresso constitucionaliza o desrespeito do direito à paridade-integralidade dos que ingressaram até 1998, do direito à paridade dos que entraram no serviço público antes de 31.12.2003, e dos direitos daqueles que entraram a partir de 2003 e antes da instituição da aposentadoria complementar. Na Proposta, benefícios estruturantes da carreira pública são extintos sem que haja no texto qualquer norma de transição que explicite a fórmula que será adotada para garantir a paridade-integralidade dos servidores inativos.
Vejam, a PEC 38/2025 prevê benefícios (bônus) destinados exclusivamente ao agente público em atividade. E não são valores modestos não. Esses bônus podem atingir um total de quatro remunerações anuais para os ocupantes de cargos em comissão e função de confiança e um total de duas remunerações anuais para os demais. Isso significa que os servidores em atividade poderão receber anualmente, caso a Proposta seja aprovada, o equivalente a um 14º, 15º e até 16º e 17º salários (art. 37, XI-A, d), enquanto os aposentados não terão esse direito, a despeito de terem consolidado sua passagem para a inatividade no regime da paridade-integralidade.
Além disso, a PEC 38/2025 extingue os adicionais por tempo de serviço e as sextas-partes (para os servidores dos Estados em que existe, a exemplo de SP) que integram parte significativa da remuneração dos hoje aposentados (art. 37, XXIII, d) sem dizer uma palavra sobre como isso será equacionado para os aposentados.
Não bastasse, veda o pagamento de qualquer verba remuneratória baseada em desempenho, assim como parcela indenizatória para aposentados e pensionistas (art. 37, XXIII, m). Com isso, endereça que todas as vantagens remuneratórias doravante instituídas no serviço público estejam fundadas no desempenho, aniquilando também aqui o direito dos atuais aposentados à paridade-integralidade, isso sem falar daqueles que nem sequer aposentaram, mas que ingressaram no serviço público antes de 1998 e, portanto, estão abrigados na máxima da paridade-integralidade.
Ademais, veda, entre outros, benefícios consolidados, a exemplo do auxílio saúde, tão relevante para os aposentados e pago de forma indenizada, por reembolso, em diversos setores da Administração. Auxílio alimentação, saúde e transporte, aliás, são expressamente definidos como “destinados a custear despesas necessárias ao exercício das atribuições” (art. 37, parágrafo 11-A), o que explicita o pagamento exclusivo aos servidores da ativa.
Preocupa também a normativa que endereça a estruturação de carreiras transversais, pois pode impactar diretamente os aposentados cujas carreiras onde se aposentaram serão extintas, perdendo-se o parâmetro para a manutenção das garantias de paridade, integralidade, patrimônio de todos os atuais servidores aposentados.
Enfim, a Reforma Administrativa apresentada, do modo como está posta, é altamente prejudicial a todos os servidores públicos aposentados do país. Ela desrespeita, implode o arcabouço de proteção até aqui vigente para o servidor aposentado e se consolida como marco sem precedentes de desvalor do segmento por seu caráter deliberadamente precarizador. Constitui fato gerador de enorme insegurança jurídica, fator de risco elevado de judicialização em massa de questões sensíveis, capazes de produzir instabilidade social e econômica relevantes, já que os aposentados, como sabido, sustentam parte nada desprezível da economia nacional. Diria que é uma verdadeira pauta bomba.
Importante que os servidores aposentados fiquem cientes de que seus direitos estão em sério risco nessa proposta de Reforma Administrativa, que anotem quem são os parlamentares que urdiram essa proposta e que se mobilizem para exigir o respeito que merecem depois de uma vida de trabalho dedicada ao Estado brasileiro. O Congresso Nacional tem dever de respeitar e não de humilhar os aposentados do Brasil.
A Advocacia Pública, em particular, sofre algum gravame com a PEC 38/2025?
Sofre sim.
É curioso que uma proposição normativa que tem a produtividade como espinha dorsal, venha limitar o exemplo mais bem sucedido de remuneração por produtividade existente no serviço público, a saber, os honorários advocatícios.
De fato, existe grande desinformação sobre o assunto e mesmo entre operadores do direito há quem imagine que os Advogados Públicos recebem fortunas beneficiados pelos honorários de sucumbência.
Nada mais distante da realidade. Os honorários sucumbenciais correspondem a parte da remuneração dos Advogados Públicos. Em muitos casos a maior parte da remuneração dos Advogados Públicos. Mas esses honorários, somados às demais parcelas que compõem a remuneração global dos Advogados Públicos não podem, por decisão pacificada do Supremo Tribunal Federal, superar o teto constitucional.
Nenhum Advogado Público ganha além do teto constitucional por conta dos honorários sucumbenciais.
Mas se é assim, porque os Advogados Públicos são tão apegados a essa forma de remuneração?
Bom, os honorários advocatícios integram a identidade institucional da Advocacia Pública. Os Advogados Públicos se reconhecem advogados, entre outros fatores, pela percepção de que sua remuneração é fruto direto do sucesso do seu trabalho na defesa do patrimônio público. É também elemento de segurança de estabilidade remuneratória, na medida em que os Advogados Públicos se empenham e fazem desse empenho a garantia da própria remuneração.
A conquista dos honorários é, na Advocacia Pública, como de toda sorte na Advocacia, elemento de incentivo à defesa aguerrida da causa. É da essência da profissão lutar pelo direito do cliente e, em contrapartida, conquistar os honorários. Os honorários são medida do sucesso, mais ainda que da produtividade, afinal, a advocacia é profissão meio. Daí que parece absolutamente desprovido de sentido, no âmbito de uma proposta centrada na produtividade, punir o sucesso, limitando o uso dos honorários sucumbenciais para remunerar os Advogados Públicos.
Via de regra a remuneração paga aos Advogados Públicos com recursos do tesouro é pequena. Em São Paulo da ordem de 20% a 30% da remuneração, o que significa que 70% a 80% da remuneração desses Advogados Públicos não onera o tesouro, não atrapalha limite prudencial, visto que deriva da verba honorária sucumbencial, dos honorários advocatícios conquistados pelo sucesso dos Advogados Públicos nas ações judiciais ajuizadas contra o Estado.
De novo aqui, qual o sentido de mexer em receita que permite não onerar o tesouro com despesa de pessoal? O Estado, a Administração Pública só perde com isso! Trata-se de absoluto nonsense, máxime quando, repita-se, a remuneração global do Advogado Público, incluídos os honorários advocatícios, não pode, por imperativo constitucional judicialmente assentado, ultrapassar o teto!
Só mais um dado. No Estado de São Paulo os honorários advocatícios integram a remuneração dos Procuradores do Estado, são uma parcela dessa remuneração desde 1974. São exatos 51 anos de vigência. Um modelo bem sucedido, que vem garantindo a construção de uma instituição pública atrativa, de ponta, capaz de entregar a melhor advocacia aos sucessivos governos estaduais. Se São Paulo é grande, sua Procuradoria do Estado tem participação destacada nisso. Trazer insegurança, instabilidade e perda de identidade institucional para esse segmento constitucionalmente essencial à Justiça não é exemplo de boa administração, disso os senhores Congressistas podem ter certeza. E se assim é em São Paulo, também o é por todo Brasil. Os honorários são elemento de unidade da Advocacia Pública e mutilá-lo é mutilar a instituição que hoje é a maior responsável pela construção jurídica das políticas públicas do país.
Se essa Proposta de Reforma Administrativa não é boa, teria alguma que seria boa? Precisa mesmo promover Reforma Administrativa?
Bem, não há uma resposta simples para a pergunta. Mas há diretivas para a construção e consolidação de uma burocracia profissional, elemento essencial para garantir a ação eficiente do Estado junto à cidadania.
Via de regra a necessidade de reformulação de qualquer estrutura decorre da compreensão da fragilidade ou ineficiência do setor e do propósito de torná-la mais robusta e eficiente.
Quando o assunto é burocracia, a solidez decorre basicamente de dois fatores: do conhecimento ou capacidade técnica do servidor e das garantias para que esse conhecimento seja utilizado livre de injunções políticas ilegais ou ilegítimas.
Daí que qualquer reforma que arrefeça regras garantidoras da atuação estritamente profissional, vinculada às balizas legais, não caracteriza reformulação, mas deformação do sentido essencial de burocracia, notadamente de burocracia estatal.
Boa é a reforma que se pauta por promover o ingresso, movimentação, promoção e remuneração de servidores públicos a partir de critérios os mais objetivos possíveis, para assim evitar o influxo político (de política interna ou partidária) na atuação e nas decisões a cargo da burocracia.
Outrossim, dado os fundamentos e objetivos inclusivos orientadores, por mandamento constitucional, do agir estatal, quer-nos parecer que o conhecimento exigido para o ingresso no serviço público não deve se limitar a aspectos tecnicistas, sendo recomendável aferição de caráter abrangente, revelador da compreensão humanista imanente aos propósitos constitucionais.
Não tenho dúvida de que a estrutura burocrática do Estado brasileiro se desenvolveu muito desde a promulgação da Constituição Cidadã.
Ainda que a alteração de caráter gerencialista da Reforma de 1998 não tenha permitido que a estrutura originalmente concebida se aperfeiçoasse, os setores remanescentes da burocracia estatal já estão, em quase sua totalidade (sempre há exceções), constituídos por profissionais concursados e nos espaços mais estruturados têm dado respostas eficientes às demandas da sociedade. Os déficits existentes decorrem mais do número insuficiente de profissionais para o atendimento da demanda dos setores deficitários, bem assim da ausência crônica de estrutura adequada de trabalho, que de falta de empenho, estímulo ou regras que exijam um agir diferente por parte dos servidores.
A proposta reformadora contida na PEC 038/2025 toma o caminho inverso daquilo que caracteriza ou deve caracterizar o corpo da burocracia estatal. E o faz endereçando nos concursos a seleção de tecnocratas e submetendo a movimentação, ascenção e até remuneração desses servidores a avaliação de produtividade (seja lá o que isso for), tornando-os vulneráveis às pressões de política interna (que quem conhece o serviço público sabe que não são desprezíveis) e partidária. Enfim, estrutura uma burocracia capturada, incapaz, em essência, de entregas profissionais ou eficientes, o avesso do que propagandeia e promete.
Na última década, é importante pontuar, temos visto um afrouxamento de normas estruturantes, com a subjetivação infralegal, em alguns setores, de regras notadamente de movimentação interna, e uma certa desestruturação das normas remuneratórias, implantada uma espécie de uberização dos ganhos do servidor a partir de vantagens que não integram a remuneração, atribuídas pelo exercício de tarefas triviais, mas reputadas excepcionais e pagas a segmentos específicos ( e por isso capturados), em movimento de fragmentação perverso e perigoso do funcionalismo.
Por tudo isso, tenho pra mim que antes de ser reformado, o serviço público brasileiro precisa ser dotado de estrutura de trabalho que permita a seus servidores exercerem adequadamente seu mister. No mais, parece-nos importante um retorno, no que toca à gestão de pessoal, ao ambiente administrativo marcado por normas objetivas e gerais de movimentação, promoção e remuneração, tudo como garantia da autonomia profissional indispensável ao eficiente exercício do serviço público.
Certamente não esgotamos o tema neste artigo e, portanto, não entregamos ao leitor tuuudo o que o pode ser dito sobre a Reforma Administrativa. Mas se tivermos conseguido mostrar que não se deve menosprezar o medo de que isso seja aprovado, nosso propósito está atendido. Até porque, como lindamente disse Margarida Alves: “Medo nois tem, mas não usa.”
Notas:
[1] O título do artigo é uma blague a partir do título do filme Tudo que você queria saber sobre sexo (Mas tinha medo de perguntar). Lançado na década de 1970 e Integrante da cinematografia de Woody Allen, Tudo que você queria saber sobre sexo (Mas tinha medo de perguntar) é uma produção cômica de estética futurista baseado em livro do médico David Reuben e que fez muito sucesso à época. O caráter de verdadeiro fetiche que o tema da Reforma Administrativa parece despertar em setores que vão da centro-direita à extrema-direita da política, aliado ao intento nonsense de desfigurar a burocracia estatal em nome de uma modernidade centrada na desconstrução das garantias próprias do setor e do mundo do trabalho de modo geral serviram de inspiração à brincadeira de usar uma adaptação do título do filme para nomear este artigo, que, como o filme, está estruturado em 7 episódios ou perguntas que busca esclarecer.
[2] O’Donnell, Guillermo. Democracia, agência e estado. Teoria com intenção comparativa. São Paulo, Paz e Terra, 2011.
[3] Weber, Max. Sociologia. São Paulo. Ativa, 1982.
[4] Tragtenberg, Maurício. Burocracia e Ideologia. São Paulo, Unesp, 2006.
[5] Loureiro, Maria Rita, Abrucio, Fernando Luiz e Pacheco, Regina Silvia. Burocracia e Política no Brasil. Desafios para a ordem democrática no século XXI. São Paulo, FGV, 2010.
[6] Nohara, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia. Impacto da Eficiência na Configuração do Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo, Atlas, 2012.
Marcia Maria Barreta Fernandes Semer. Advogada. Procuradora do Estado de São Paulo aposentada. Mestre em Direito Administrativo e Doutora em Direito do Estado pela USP. Membro integrante do Conselho Consultivo do IBAP. Membro do IAB. Vice-Presidente do SindiproesP. Coordenadora de Garantias Democráticas da APD.










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