- Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima -
No trânsito caótico da cidade, quer faça sol ou chuva, quer frio ou calor, vejo passando motoboys apressados, serpenteando suas motos no espaço que resta entre as faixas dos carros. Eu pouco sabia de suas rotinas...
O termo “motoboy” foi criado, no Brasil, nos anos 80 para designar os trabalhadores utilizando motos para fazerem entregas de mercadorias diversas. Esse serviço foi se ampliando com o aumento excessivo de veículos nas cidades grandes, que causava a redução da velocidade dos carros, e com o aumento do número de motoqueiros que procuravam essa atividade, para o que contribuiu a redução das possibilidades de emprego.
A regulamentação do exercício das atividades dos profissionais de entrega de mercadorias por “motoboy”, com o uso de motocicleta, ocorreu com a Lei federal nº 12.009, de 29/07/2009, que acrescentou o 139-A ao Código de Trânsito Brasileiro, na redação de 1997. Dispõe sobre regras de segurança dos serviços de moto-frete e exigia do profissional ter completado vinte e um anos; possuir habilitação, por pelo menos dois anos. na categoria; ser aprovado em curso especializado e estar vestido com colete de segurança dotado de dispositivos retrorrefletivos, conforme regulamentação do Contran.
Por sua vez, a pessoa natural ou jurídica que empregasse ou firmasse contrato de prestação continuada de serviço por moto-frete seria responsável solidariamente por danos cíveis decorrentes do descumprimento das normas relativas ao exercício da atividade e ao exercício da profissão.
No entanto, em 2013, a introdução da plataforma de aplicativos para entregas trouxe mudanças no segmento do motofrete. Segundo as empresas de aplicativos, isto objetivou “simplificar a burocracia”, o que, em outras palavras, pretendeu afastar essa relação entre as empresas de entregas e os motoboys. As plataformas conseguiam clientes para os motoboys e os clientes tinham a comodidade de localizar o entregador mais próximo pelo celular. Inicialmente, a situação parecia favorecer os motoboys, mas o aumento da quantidade de motociclistas, se oferecendo para a realização dos serviços, permitiu que as empresas conseguissem preços ainda mais competitivos no mercado com a redução das tarifas de entrega. A costumeira lei do mercado da oferta e da procura!
Os motoboys ficaram numa espécie de limbo jurídico. Apesar de serem tratados como autônomos ou “parceiros”, a jornada de trabalho deles chega até 14 horas diárias e a atividade está sujeita às ordens dos aplicativos. Também, as empresas de entregas exigem dos moto-fretistas o ônus de registro como microempreendedores individuais (MEI) e de recolhimento da contribuição individual (INSS) e de impostos.
É possível imaginar o grau de cansaço físico e mental que acomete esses trabalhadores na rotina diária onde a velocidade da entrega condiciona o valor total de dinheiro que receberão por mês, calculado na base de tarefas realizadas, no contexto de uma atividade de risco de vida no trânsito agitado das cidades.
Alguns Sindicatos de entregadores iniciaram movimentos contra esta forma de precarização do trabalho em várias cidades, por meio de manifestações públicas, e procuraram o Ministério Público do Trabalho em busca de apoio jurídico.
Em 2017, o Ministério Público do Trabalho, em Brasília, considerou a existência de vínculo entre as empresas e os motoboys, e os auditores fiscais aplicaram multas para duas empresas por descumpriram as leis trabalhistas, como a falta de registro na carteira profissional e o recolhimento do FGTS. Na opinião dos auditores, a empresa oculta a relação de emprego, pois vende o serviço de entrega rápida com preço e produtos definidos por ela mesma e direciona o procedimento das entregas, punindo eventuais falhas, o que caracteriza o poder diretivo da empresa.
Segundo o Ministério Público do Trabalho, a rotina desses trabalhadores passou a ser causadora de estafa pelos riscos e insegurança, chegando a ser considerada uma forma de exploração. Haveria uma “subordinação cibernética”, segundo a procuradora Vanessa Patriota, Vice-coordenadora nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho do MPT, pelo fato de que “o trabalhador recebe ordens e uma série de requisitos pelo algoritmo”.
Por estes motivos, o Ministério Público do Trabalho de São Paulo entrou, em 2018 e 2019, com duas ações civis públicas, requerendo o reconhecimento de vínculo empregatício entre os motoboys e as empresas IFood e Loggi, além de estudar a possibilidade de ingressar também contra outras empresas. As ações estão ainda pendentes de julgamento. Além disto, foi montado um grupo de trabalho na instituição para estudar as novas tecnologias. (Flávia Ayer, Em.com.br, 10/03/2019)
Estes dados todos têm relação com a notícia que ouvira pela televisão, no jornal do meio dia. A matéria me deixou muito triste e revoltada. Com certeza, muitas pessoas compartilharam destes sentimentos. E diversos jornais veicularam a notícia...
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo, pela Comissão de Direitos Humanos, lançou uma Nota assinada por sua vice-presidente, Dra. Ana Amélia Mascarenhas Camargos, do seguinte teor:
“Causou revolta e consternação a morte de Thiago de Jesus Dias, de 33 anos, entregador da empresa Rappi, aplicativo de compra de produtos, na madrugada do último domingo (07/07), em São Paulo.”
“Ele passou mal, após fazer uma entrega em um prédio no bairro de Perdizes. Ajudado por moradores do local, foi praticamente ignorado pela Rappi, para a qual prestava serviço. Seu atendimento foi empurrado da PM para os bombeiros e destes para o SAMU, que não enviou ambulância para socorrê-lo. Após ter seu transporte negado por um motorista de Uber, foi transportado no carro de um amigo, que teve dificuldade de entrar com ele no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas. Diagnosticado às 2h da madrugada de domingo como tendo sofrido um AVC, Thiago faleceu por volta das 10h da manhã.”
“A Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP solidariza-se com a família de Thiago, consternada pela tragédia. Ao mesmo tempo, alertamos e lamentamos para as graves consequências para o direito à vida, causadas por uma conjuntura sociopolítica marcada pelo acelerado desmonte de políticas públicas somada, concomitantemente, à ampla fragilização das relações de trabalho. Ainda que não se possa afirmar que o atendimento adequado preservaria a vida de Thiago, é certo que teria lhe poupado imenso sofrimento e dor.”
A Nota foi publicada em 13 de julho de 2019, pela Folha digital sob o título:
“OAB classifica morte de entregador do Rappi de desmonte das relações de trabalho: Thiago Dias, 33, agonizou por horas em calçada sem receber auxílio médico e morreu em SP”
Conforme a Nota da OAB, a situação denotou, fundamentalmente, o resultado da fragilidade da relação de trabalho e do desmonte das políticas públicas também na área da saúde, na atual conjuntura política.
A omissão de socorro e a falta de solidariedade seguida da morte do Thiago chocam qualquer pessoa de mediano bom senso e sentimento. Era um cidadão-trabalhador a quem foi negada a oportunidade de receber o tratamento do Estado a que teria direito pela Constituição Federal: o direito à vida, ao atendimento à saúde pública e o direito ao trabalho com dignidade humana.
Constitui um fato gravíssimo indicando o desrespeito ao princípio da solidariedade, que permeia toda a Ordem Social da Constituição Federal e constitui um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, I), e do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), fundamento do Estado Democrático de Direito, e de existência digna nas relações de trabalho (art. 170, caput).
A destruição de solidariedades constitui uma das características do modelo de desmonte de direitos adotado pelo atual governo do Brasil pela total subserviência ao padrão econômico da fase neoliberal do capitalismo globalizado.
Textos consultados:
Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é colunista da Revista da PUB e escreve todo dia 22 de cada mês. É Membro do IBAP, advogada, mestre em Direito do Estado – Direito Constitucional (PUC) e em Ciências (Patologia Social - FESPSP).
Excelente texto, Madeleine! Aos infelizes motoboys podemos somar, com mais dramaticidade ainda, o caso dos ciclistas de aplicativos de entregas. Além de correrem os mesmos riscos dos motoboys, sofrem uma fadiga ainda maior. Se formos aos hospitais ou outros equipamentos de saúde, veremos que os principais pacientes da traumatologia são esses trabalhadores. É preciso - como vc faz - se indignar e denunciar esse massacre.