-MARIE MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA-
No capítulo “Sobre a natureza da ciência: o desenvolvimento da ciência na sociedade”, Michael Polanyi faz uma análise da estrutura da comunidade científica, que é governada por crenças, valores e práticas transmitidas de uma geração a outra. Ao integrar esta comunidade, cada novo membro adere à sua tradição, assumindo, ao mesmo tempo, a responsabilidade de reinterpretar esta tradição e possivelmente revolucionar seus ensinamentos. Para a consecução destes objetivos, porém, o apresentador de alguma ideia científica passa por uma espécie de sistemática, a fim de merecer a aprovação por parte dos demais cientistas.
Polanyi menciona o princípio, admitido na prática, de que se considera a verdade científica aquilo que os “cientistas dizem ou pensam ser verdade”. Analisa alguns critérios considerados fundamentais, segundo a moderna crítica filosófica da ciência.
O primeiro consiste na avaliação da plausibilidade, que se baseia, amplamente, no exercício da intuição orientada por várias indicações, bastante sutis e dificilmente demonstráveis. Esta verificação básica necessita ser adotada com a finalidade de peneirar o grande número de colaborações que são encaminhadas às publicações especializadas, muitas vezes constituídas por descobertas absurdas e, desta forma, procura se garantir a credibilidade básica de suas publicações.
No entanto, a aplicação desta disciplina científica, segundo Polanyi, pode trazer o inconveniente de que muitas ideias importantes sejam negligenciadas. Sugere, assim, a seguinte questão:
“Como a continuidade imposta pelos critérios usuais de plausibilidade pode permitir o surgimento de alguma verdadeira originalidade? E como esta originalidade pode surgir a partir de bases efetivamente dogmáticas?”
Na resposta às questões, afirma que “o paradigma de todo o progresso da ciência estaria em que as descobertas são feitas, perseguindo-se possibilidades insuspeitadas sugeridas pelo conhecimento existente. Deste modo é que a ciência mantém sua identidade, através de uma série de revoluções sucessivas”.
Neste aspecto, contaria com a aliança da percepção, pois esta permite o surgimento de hipóteses infindáveis, que vão sendo reveladas progressivamente pelo trabalho dos cientistas e cujos resultados vão permitir penetração mais aprofundada na natureza da realidade.
No entanto, quando surgirem divergências substanciais sobre a natureza da realidade, ocorre um cisma, possibilitando a criação de correntes que se apoiam em premissas diferentes. Pode ocorrer também o oposto, que dois ou mais cientistas façam independentemente a mesma descoberta, já que dispõem das mesmas potencialidades para a realidade.
Aponta Polanyi, pois, para a necessidade de que a iniciativa da pesquisa científica e a procura de um resultado devam ser deixados à livre iniciativa dos cientistas, pois apenas a sua visão pessoal pode gerar o progresso essencial à ciência. Assim, a independência do cientista protegerá a sua originalidade.
O interesse científico ou valor científico de uma contribuição para a ciência é determinada em conjunto por três fatores: sua exatidão, sua importância sistemática e o interesse intrínseco de seu objeto de estudo. No entanto, a proporção destes fatores varia muito nos diversos domínios da ciência, podendo a deficiência de um ser contrabalançada pelo outro fator.
Polanyi levanta uma questão final:
“como podem ser coordenadas as iniciativas de cientistas que escolhem seus problemas de maneira independente?” e “como podem eles estar sujeitos ao rigor científico, serem orientados pelo verdadeiro valor científico e terem seus méritos corretamente avaliados e recompensados?”
Entende que dois princípios interligados permitirão alcançar estes objetivos: a auto-coordenação através de adaptações mútuas e a disciplina sob autoridade recíproca.
Consiste a auto-coordenação em partir-se dos resultados obtidos antes por outros cientistas, representando a “mais alta eficiência possível no uso do talento científico e de recursos materiais”.
Esse princípio conduz ao outro princípio, o da autoridade recíproca, que consiste no fato de que os cientistas se observam uns aos outros: cada cientista está sujeito à crítica de todos os outros e é incentivado por sua aprovação.
Assim se forma a opinião científica, que impõe padrões científicos e regula a distribuição de oportunidades profissionais e subvenções para pesquisas.
Desta forma é que os padrões de plausibilidade e de validade equivalentes para cada detalhe isolado, aplicáveis nos diversos ramos da ciência, possibilitarão que os cientistas confiem nos resultados uns dos outros. Conclui Polanyi que “ao mesmo tempo, os cientistas se apoiarão uns nos outros contra qualquer leigo que desafie seriamente sua autoridade científica”.
Michael Polányi (Polányi Mihály) era um polímata húngaro, nascido em 1891, em Budapeste, Hungria, e falecido em 1976, em Southampton, Inglaterra. Fez contribuições teóricas importantes para a físico-química, economia e filosofia. Formado em medicina pela Universidade de Budapest (Eötvös Loránd Egyetem) em 1913, obteve o título de Ph.D. em físico-química em 1917. Em 1920, mudou-se para Berlim para trabalhar no “Kaiser Wilhelm Institute for Fiber Chemistry” e tornou-se diretor do grupo de pesquisa sobre cinética química no Fritz Haber’s Institute for Physical Chemistry and Electrochemistry. Dos anos 1910 até 1930, Polanyi propôs diversos programas de pesquisa em físico-química. Em 1930, em colaboração com Fritz London, Polanyi usou a nova mecânica quântica na formulação de uma nova e generalizada explicação para forças de adsorção.
Após 1933, quando teve que abandonar Berlim devido a recentes leis criadas pelo sistema nazista, Polanyi mudou-se para Manchester, Inglaterra, onde se aproximou da economia, política e da natureza (filosofia) da ciência.
Nos anos seguintes, dedicou-se a estudar sobre conhecimento tácito, conhecimento pessoal e como estes influenciam as decisões e práticas dos pesquisadores, além de explicitar os mecanismos pelos quais as teorias científicas são aceitas na comunidade científica. Sobre esses temas, escreveu várias obras, como “The logic of liberty”, “The study of man” e “Personal knowledge”.
Sua decisão de escrever sobre ciência, ao invés de continuar fazendo ciência, foi motivada pela dificuldade do botânico e geneticista russo Nikolai Vavilov em convencer seus oponentes soviéticos sobre a superioridade dos fundamentos da ciência ocidental, como a genética e biologia, em relação à nova ciência soviética, carente de fundamentação científica, vindo a sofrer perseguições políticas.
Que importância teve Vavilov para a Ciência de forma a fazer mudar o foco de interesse dos estudos de Polanyi?
Vavilov e Polanyi eram contemporâneos, vivendo em países diferentes. O biólogo, geneticista, geógrafo e agrônomo Nikolai Vavilov nasceu em Moscou, Rússia, em 1887, numa família abastada, e faleceu em 1943, em Saratov, então URSS. Completado o curso no Instituto de Agricultura de Moscovo, Vavilov passou quase um ano, entre 1913 e 1914, no Reino Unido, no laboratório de William Bateson, pioneiro da genética moderna.
A Rússia já tinha uma longa história de fome causada por secas ou eventos climáticos catastróficos que mataram milhões de pessoas e ele chegou a testemunhar vários desses episódios. Na Rússia Imperial de sua juventude, sob o regime autocrático dos czares, as perdas na colheita eram frequentes. Ao ver o sofrimento causado pela fome, Vavilov assumiu a missão de fazer algo para que isso nunca acontecesse em lugar algum. Quando estudante, interessou-se pelas emergentes disciplinas científicas de botânica e genética.
Em 1916, Vavilov partiu para a Pérsia (Irã) na sua primeira expedição, para recolher sementes cultivadas em regiões mais e menos “exóticas”. Sua atividade de exploração pelos cinco continentes por mais de vinte anos, conduziria à criação, em 1924 em São Petersburgo (Leningrado), do primeiro banco de sementes do mundo.
A ideia de Vavilov era cultivar plantas que resistissem a condições adversas. Para isso, planejou expedições científicas para coletar sementes de variedades de culturas e seus ancestrais selvagens. Começou em "áreas onde a agricultura tem sido praticada por um longo tempo e nas quais surgiram civilizações indígenas", diz o etnologista Gary Paul Nabhan. Visitou mais de 64 países e aprendeu 15 línguas para conseguir falar diretamente com os agricultores. “Foi um dos primeiros cientistas a ouvir realmente os agricultores tradicionais, a gente do campo de todo o mundo, para saber por que é que achavam que a diversidade das sementes era importante nos seus campos.”
O governo da recém-formada União Soviética, reconheceu a importância das investigações de Vavilov, que, por vinte anos a partir de 1920, dirigiu a Academia Lenine de Ciências Agrícolas da União (mais tarde rebatizada como Instituto Vavilov da Indústria Vegetal da União), com sede em Leningrado.
Criou 400 estações experimentais, por todo o país, onde trabalhavam mais de 20 mil pessoas. Publicou centenas de artigos de genética, biologia, geografia e seleção vegetal. Participou de eventos internacionais e era conhecido fora da URSS.
Valorizava a integração do pensamento científico de todo o mundo, mantinha contato com cientistas em muitos lugares e em seu trabalho incorporou as ideias de cientistas estrangeiros, como do austríaco Gregor Mendel e do britânico Charles Darwin. Isto foi desagradando Stalin, que assumiu o governo em 1924, que era avesso a ideias originárias de outros países.
Stalin precisava encontrar um culpado para a falta de alimentos e para o fracasso de sua política de coletivização de fazendas e viu em Vavilov o candidato ideal. Determinou-lhe o prazo de 3 anos para produzir variedades resistentes a tudo, embora Varilov tivesse afirmado que cientificamente isto não poderia ser obtido antes de 10 ou 12 anos.
A partir de 1935, Trofim Denissovich Lysenko começou a atacar a vida pessoal e profissional de Vavilov. Esse agrônomo (1898-1976), filho de família de camponeses ucranianos, e apadrinhado de Vavilov, acusava o estudo da genética como sendo uma “pseudociência burguesa” que procurava dar justificativa biológica às diferenças de classe, e ele considerava que, aplicando-se o materialismo dialético, seria possível chegar ao triunfo da “ciência proletária” sobre a “ciência burguesa”. Ao mesmo tempo, Lysenko começou um trabalho junto aos dirigentes do partido contra o apoio que davam para Varilov.
Pelos critérios do governo, por sua origem humilde, foi ganhando vantagem entre os dirigentes bolchevistas, no embate com Vavilov. Em especial, Lysenko impressionou as autoridades políticas com seu sucesso em motivar os camponeses a regressarem à agricultura, depois da coletivização das terras. A ideia de Lysenko se baseava na teoria das características adquiridas desenvolvidas por Lamarck, que achava que o ambiente estava em constante alteração e que o corpo dos seres vivos possuíam a capacidade de transformação com o objetivo de se adaptarem às mudanças do meio ambiente e que as transformações adquiridas por uma espécie seriam transmitidas para seus descendentes.
Em poucos anos, Vavilov, que Lysenko descrevia como "reacionário, burguês, idealista e formalista", foi isolado política e academicamente.
Em 1936, teve início uma campanha oficial de propaganda stalinista a favor do "lysenkoismo", passando a perseguir vários cientistas que discordavam dele. A ideologia de Lysenko baseava-se, predominantemente, na rejeição da genética mendeliana e em tudo o que sustentava a ciência de Vavilov. Lysenko e seus colegas eram conhecidos como "biólogos progressistas" e argumentavam que se podia alterar características herdadas, apenas mudando as condições externas em que vivia uma planta ou um animal, sem apresentar qualquer base científica.
As discussões entre os defensores da genética e os lamarckianos (Lysenko) eram realizadas tanto na imprensa quanto em reuniões especiais, nas quais Vavilov era o orador principal e apresentava argumentos científicos para refutar as afirmações infundadas de Lysenko. Mas, foi tudo em vão.
Em poucos anos, Lysenko tornou-se o “cientista” favorito de Stalin e o promotor de uma “genética soviética” que negava a existência dos genes e do DNA. Desdenhava também a seleção natural, o processo basilar da teoria da evolução emitida por Darwin em meados do século XIX.
Em poucos anos, Vavilov, que Lysenko descrevia como "reacionário, burguês, idealista e formalista", foi isolado política e academicamente. Deixou de chefiar delegações soviéticas para fóruns internacionais sobre genética de plantas e suas expedições internacionais foram reduzidas e limitadas no exterior à Crimeia e à Ucrânia. Sua integridade profissional foi danificada por uma série de ataques politizados e foram eliminados seus privilégios acadêmicos.
A influência de Lysenko sobre a política agrária soviética se estendeu de 1929 a 1948, dificultando o trabalho dos geneticistas.
Em 1938, Lysenko foi nomeado presidente da Academia de Ciências Agrícolas e, em 1940, Vavilov é preso pela polícia secreta, acusado de espionagem, sabotagem e destruição, julgado secretamente em 1941 e condenado à morte. Tendo sido comutada a pena para prisão perpétua, foi deportado para Saratov, leste da Rússia, onde acabou morrendo de desnutrição em 1943.
Vavilov só seria reabilitado das acusações – e Lysenko definitivamente desacreditado – em 1965, pelo então presidente da URSS Leonid Brejnev, sob a pressão de dissidentes russos, como o físico Andrei Sakharov e o escritor Alexandre Soljenitsin.
Após a morte de Stalin em 1953, Lysenko manteve ainda o apoio do novo líder Nikita Khrushchev. No entanto, os principais cientistas ressurgiram e encontraram nova disposição dentro do governo soviético para tolerar as críticas de Lysenko. Em 1962, três dos mais destacados físicos soviéticos apresentaram um processo contra Lysenko, proclamando seu trabalho como pseudociência e denunciaram a aplicação do poder político de Lysenko para silenciar a oposição e eliminar seus oponentes dentro da comunidade científica.
Essas denúncias ocorreram durante a fase de expurgo da dominação estritamente ideológica e política do trabalho da comunidade científica na União Soviética durante o jugo de Stalin. Levou muitos anos para que essas ciências se recuperassem na Rússia, após o término do monopólio de Lysenko sobre biologia e agronomia.
Vavilov só seria reabilitado das acusações – e Lisenko definitivamente desacreditado – em 1965, pelo então presidente da URSS Leonid Brejnev, sob a pressão de dissidentes russos, como o físico Andrei Sakharov e o escritor Alexandre Soljenitsin. Em 1964, Sakharov denunciou perante a Assembleia Geral da Academia Russa de Ciências a responsabilidade de Lysenko “pelo vergonhoso atraso da biologia soviética e da genética em particular, pela disseminação de visões pseudocientíficas, pelo aventureirismo, pela degradação do aprendizado e pela difamação, disparo, prisão e até morte de muitos cientistas genuínos”.
Alguns colegas de Vavilov tiveram o mesmo destino trágico do que ele no cerco de Leningrado pelas tropas nazis, de 1941 e de 1944, que matou de fome dezenas de milhares de cidadãos. Três antropólogos norte-americanos resumiram o que acontecera àqueles cientistas: “Apesar de sofrerem eles próprios de subnutrição grave e apesar de trabalharem a poucos metros de uma vasta reserva de alimentos (sementes, tubérculos e fruta), os cientistas preferiram morrer a empobrecer a herança genética do país”, que “percebiam ser indispensável para o futuro da agricultura” soviética.
Mas foi esse gesto, de puro apego e valor ao trabalho científico, que permitiu que o banco de genes do Instituto Vavilov seja, ainda hoje, um dos maiores do mundo.
Para muitos pesquisadores, a vida trágica desse russo é uma lição de como a política arbitrária pode interferir no desenvolvimento científico e interromper o avanço tecnológico.
E, concluindo, retomar com Michael Polanyi o significado de uma de suas principais preocupações: a liberdade do homem. Segundo ele, o governo é criado para prevenir conflitos, mas, ao tentar ser absoluto, suprime a liberdade. A ciência deve ser independente do governo, moldada não por um soberano, mas por todos os cientistas que agem como soberanos a cada nova descoberta.
Esta é a lição que deve ser seguida por todos nós, também no Brasil !
Referências:
1-William R. Coulson e Carl R. Rogers (org.). O homem e a ciência do homem. Belo Horizonte: Interlivros, 1973
2-Em 1944, foi eleito Membro da Royal Society e também membro do Merton College. 3-3-Michael Polanyi. Science, Faith and Society. ob. cit. Gary Paul Nabhan.
4-De onde vem nossa comida: os passos da missão de Nikolai Vavilov para acabar com a fome. https://www.bbc.com/portuguese/geral-47352590
5-Declaração em 2010 à rádio pública norte-americana, de Gary Paul Nabham. Apud Ana Gerschenfeld: “Nikolai Vavilov: o primeiro guardião da biodiversidade vegetal”. “P” (Público) Ciência/História, 30 de Março de 2016, https://www.publico.pt/2016/03/30/ciencia/noticia/nikolai-vavilov-o-primeiro-guardiao-da-biodiversidade-vegetal-1727458
6-Ana Gerschenfeld, artigo citado.
7-Sobre a perseguição sofrida por Vavilov, consultar: Peter Pringle, Simon and Schuster. The Murder of Nikolai Vavilov: The Story of Stalin's Persecution of One of the Great Scientists of the Twentieth Century. 2008. E sobre seu trabalho de pesquisa: Nickolai Ivanovich Vavilov. Origin and Geography of Cultivated Plants. Cambridge University Press, 1992.
8-Yakov Borisovich Zel'dovich, Vitaly Ginzburg e Pyotr Kapitsa,
9-Em carta publicada na Science em 2003, apelando a Vladimir Putin para salvar a preciosa coleção do Instituto de Leningrado (que esteve à beira de ser demolido por promotores imobiliários).
10-Dalia Ventura, BBC Mundo: Nikolái Vavilov: o botânico soviético que queria alimentar o mundo e morreu de fome em Gulag de Stalin. 25 fevereiro 2019.
MARIE MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA escreve todo dia 22 de cada mês. É Membro do IBAP, advogada, mestre em Direito do Estado – Direito Constitucional (PUC) e em Ciências (Patologia Social - FESPSP).
コメント