Guilherme Purvin
Lançada em janeiro de 1934, uma antiga marchinha de carnaval chamada "História do Brasil", da autoria de Lamartine Babo, afirmava que quem inventou o Brasil foi o Sr. Pedro Álvares Cabral.
A canção ficou famosa na voz de Almirante, acompanhado do conjunto "Diabos do Céu" e falava ainda de Ceci e Peri que viraram Iaiá e Ioiô, num idílio amoroso ao som do Guarani (ópera de Carlos Gomes).
Lamartine Babo, aqui, nada ficava a dever à teoria da miscigenação racial cordata de Gilberto Freyre. Sem sombra de dúvida que filhos de homens portugueses e mulheres indígenas povoaram nosso território - frutos do extermínio de homens indígenas pelos bandeirantes e dos estupros. Sim, formaram-se famílias depois disso. E, sim, surgiram "ioiôs" e "iaiás" - senhores de escravizados africanos. Difícil é embarcar na fantasia de José de Alencar e acreditar na possibilidade do idílio entre uma menina portuguesa e um indígena às margens do Paquequer, na Serra dos Órgãos.
Em seguida, na marchinha carnavalesca, é feita uma referência à culinária (surgimento da feijoada) e ao álcool (o Paraty) - alusão evidente ao estereótipo da cultura africana. Não é que Lamartine Babo tenha se esquecido da presença negra no Brasil. Pelo contrário, ao ouvirmos outra canção dele, "O teu cabelo não nega", perceberemos que aquela marchinha é uma das mais violentas manifestações de racismo estrutural da época, onde a cor é equiparada a uma doença ("como a cor não pega...") e a escravização é naturalizada ("fui nomeado teu tenente interventor").
Ao final, a marchinha "História do Brasil" conclui afirmando que, de lá pra cá, tudo mudou: quem manda "é a Severa e o Cavalo Mossoró".
Cabem aqui algumas explicações, sem as quais este desfecho da marchinha seria totalmente incompreensível nos dias de hoje.
Mossoró era o nome de um cavalo que causou sensação na década de 1930. Participou de competições no exterior, consagrando-se internacionalmente. Foi o grande vencedor do 1º Grande Prêmio Brasil, disputado no Rio de Janeiro, em 1933.
"A Severa", por sua vez, foi o primeiro filme sonoro produzido em Portugal. Exibido também àquela época e estrelado pela cantora de fados Dinah Teresa, fez grande sucesso. Quatro anos antes, o Brasil já havia produzido um filme sonoro: "Acabaram-se os Otários", comédia dirigida por Luiz de Barros.
O uso do verbo "inventar" era, na época, uma brincadeira do compositor e humorista. No Governo Getúlio Vargas, o mote era o patriotismo, com muitas comemorações cívicas. Só em abril, tínhamos duas seguidas: dia 21, a morte de Tiradentes; dia 22, a chegada das caravelas portuguesas em Porto Seguro.
Hoje, a canção vale uma releitura. Tinha toda razão Lamartine Babo ao optar pelo verbo "inventar" em lugar de "descobrir". Há 524 anos, Pedro Álvares Cabral inventava este espaço territorial que chamamos hoje de Brasil, servindo-se do etnocídio dos povos originários, do estupro, do trabalho escravo, do enriquecimento fácil (em que as apostas no turfe diferem da especulação financeira no capitalismo rentista?) e do colonialismo cultural.
Pessoalmente, sempre considerei Lamartine Babo uma figura abjeta. Suas marchinhas são racistas e machistas. Por isso mesmo, merecem ser sempre lembradas: elas são a prova de que tudo aquilo que repudiamos nas palavras e nos atos da extrema direita brasileira foi inventado em 22 de abril de 1500 e trouxe como consequência as figuras que na véspera (dia da Inconfidência Mineira), manifestavam-se no Rio de Janeiro.
Paralelos excepcionais na invenção de um Brasil nascido na violência e na exploração. Excelente