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GLOBALIZAÇÃO HEGEMÔNICA, TERCEIRIZAÇÃO E TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO


-Daniel Ferraz-

-Daniela Marques-

-Fernanda Santos-


Imagem: Escravidão moderna[1]

No livro Enterrem as correntes de Adam Hochschild temos a narrativa de persuasão das personagens centrais no combate à escravidão, bem como a movimentação pelo direito do "outro" de "outra cor" nascendo da “empatia humana”, fomentada por uma estratégia surpreendente, qual seja, uma conexão entre mercadoria, consumo e o trabalho. Podemos pensar em globalização, lá no século XVIII, quando escravizados trabalhavam arduamente em terras distantes garantindo a riqueza de poucos. E assim a Terra girava. Conseguimos nos congelar por dentro, quando pensamos que no final do século XVIII, três quartos das pessoas existentes no mundo eram escravizadas e, em algumas regiões, o número de escravos era superior ao de homens "livres". O tráfico do Atlântico, a servidão agrícola na Índia e parte da Ásia, grande parte da população russa, todos eram servos. Assim, debruçamo-nos na normalidade de um mundo onde a servidão sempre existiu e escravizar sempre foi a única forma de se enriquecer ou deter o poder; fosse na Grécia ou em Roma, ou em relação aos povos incas, astecas ou ameríndios.


Imagem: Império Britânico[2]


Convencer os britânicos que manter um povo escravizado era pecado e toda maldição recairia sobre eles significaria tentar impedir o projeto imperialista de formação dos estados-nação modernos (alguns europeus e, mais recentemente, estadunidense), os quais, há de se lembrar, impuseram, por meio de UMA língua (British English!) e UMA cultura (British Culture!), suas visões, filosofias e economias colonialistas, capitalistas e patriarcais. Convencer os franceses que seu projeto de expansão colonial era similarmente escravocrata comporia a mesma tarefa supracitada. Voltando a Hochschild, o autor nos lembra que Voltaire teria criticado os donos de escravos em sua obra Cândido, entretanto aceitou que um navio negreiro ganhasse o seu nome. E destaca ainda que assim que a Revolução Francesa ganhou força, vários navios negreiros ganharam os dizeres Liberté, Égalité, Fraternité.


E a Terra girou mais um pouco, chegando no Séc. XXI. A pergunta é: algo mudou? Certamente (re)encontramos similitudes no impasse contemporâneo, em que discutimos propriedade e consumo, vestidos de suor infantil. Ainda que a escravização dos negros carregue a hediondez tão crua e próxima, afinal são apenas 132 anos de abolição no Brasil, continuamos na prevalência do discurso socioeconômico (e que “se dane” a pandemia, “eu não sou coveiro”), carregando sobre nossos corpos a antítese do mundo globalizado e desigual. Mantemos a servidão pelos nossos interesses. Quando pensamos no direito à propriedade, no consumo e em algumas das pautas da sociedade civil, muitas vezes desconectadas, vemos que dialogamos sem conexão, pois, adentrando-as, permanecemos no status quo. Por isso, não nos causa espanto o fato de 40 milhões de pessoas em todo o mundo viverem na escravidão moderna[1]; muitos deles trabalham para produtos e serviços produzidos em cadeias de abastecimento globais; muitos mais, passam fome.


Cada vez mais a concretização da Globalização hegemônica (essa, que alimenta o capitalismo global) estimula a concorrência entre corporações multinacionais, as quais, visando sempre o maior lucro possível, acabam violando os Direitos Humanos em diversas ocasiões, especialmente no que tange à exploração da força de trabalho. Nesse sentido, a insatisfação com relação ao país de origem aumenta em países considerados pobres, motivando fluxos migratórios, em que um dos principais motivos da fuga é a miséria. O recrudescimento das restrições legais à emigração internacional encoraja mecanismos de abuso da exploração humana - mais especificamente, fortalece as redes de tráfico humano e os dispositivos escusos de facilitação de entrada nos países de destino. Globalização perversa.


E aí entra o fenômeno da terceirização, que é a saída encontrada por muitos empresários, objetivando se eximir de responsabilidades trabalhistas e fiscais no intuito de aumentar exponencialmente sua margem de lucro em busca de mão de obra barata nos países em que não há uma legislação trabalhista eficaz. Essa prática tem um impacto extremamente desumano, pois os trabalhadores sem vínculo direto com a empresa que terceiriza, têm as condições de trabalho precarizadas principalmente quando há contratações de imigrantes que desconhecem a legislação trabalhista e acabam por se submeter as condições degradantes de trabalho, que incluem alojamento precário em condições insalubres, retenção de documentos, jornadas exaustivas de trabalho, servidão por dívida, agressões físicas e verbais. Assim é que “o trabalho escravo contemporâneo e a terceirização caminham juntos, pelo impulso do lucro” (COUTINHO, 2015, p. 155). Estados Unidos versus China? Não, Brasil versus América Latina. É assim que temos tratado muitos dos imigrantes latino-americanos que para cá se mudam. Violência, subalternização, invisibilização, desumanização.


Mas há como escapar do projeto da modernidade? Há caminhos para além do capitalismo selvagem? Há caminhos outros para além da “escravidão” e escravização contemporâneas?

E assim vamos trajando nossa sensibilidade para causas remotas, ao nos lançarmos em lágrimas após um sessão de Blood Diamond, Birth of a Nation, ou 12 years a slave. É como se a escravização em Serra Leoa em pleno século XXI fosse mera ficção. E assim seguimos encomendando nossa mais nova versão do iphone, mas firmes na defesa da inclusão e diversidade. E relativizar o desconhecimento sobre os processos de produção ou culpabilizar o outro, hierarquizando as culpas, escancara as correntes do passado e do presente: “um povo que trafica seus filhos é mais condenável que o comprador" (Voltaire, aquele que aceitou seu nome em um navio negreiro).

Mas há como escapar do projeto da modernidade? Há caminhos para além do capitalismo selvagem? Há caminhos outros para além da “escravidão” e escravização contemporâneas? Temos que nos sentir culpados pelo iphone e carro importado? Há como vivenciar outras globalizações, não hegemônicas? A alternativa seria nos mudarmos para fora da Terra? Ou permanecermos em Gaia? Como todas essas questões são alavancadas e potencializadas por um Brasil de 2020, desgovernado, desesperançoso, vítima e algoz de um projeto conservador de ultra-direita?


Temos grandes desafios como humanidade, como brasileiros. Encerramos essa breve reflexão com duas propostas (filosóficas/sociológicas) do filósofo português Boaventura de Sousa Santos (2007). A primeira surge como uma alternativa à globalização hegemônica, qual seja, um cosmopolitismo subalterno que “consiste num vasto conjunto de redes, iniciativas, organizações e movimentos que lutam contra a exclusão econômica, social, política e cultural gerada pela recente incarnação do capitalismo global, conhecido como globalização neoliberal” (p. 51). A segunda aponta para a urgência de promovermos uma Ecologia de Saberes em que se reconheça a pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico. Para que ocorra uma ecologia de saberes, Sousa Santos faz as seguintes provocações, que são as provocações finais à leitora deste texto: “Na busca de alternativas à dominação e à opressão, como distinguir entre alternativas ao sistema de opressão e dominação e alternativas dentro do sistema ou, mais especificamente, como distinguir alternativas ao capitalismo de alternativas dentro do capitalismo?” (p.65). Ou seja, não viveremos para testemunhar o fim do capitalismo/globalização neoliberal (Sousa Santos); também não viveremos para testemunhar o fim do trabalho escravo, da terceirização do ser humano e de seu corpo; não estaremos mais aqui quando Gaia já estiver ecologicamente sufocada, mas seguimos lutando contra quaisquer tipos de escravizações simbólicas ou físicas, seguimos lutando por melhores compreensões das nossas humanidades e não-humanidades (todos os demais seres de Gaia).

 

Daniel Ferraz é formador de professores no curso de Letras-Inglês e forma professores há 25 anos.

Daniela Marques é advogada, consultora jurídica e militante dos direitos sociais.

Fernanda Prado dos Santos é advogada e especialista em Direito e processo do trabalho.

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