-PATRÍCIA BIANCHI-
Você já se perguntou por que a violência e o aparente absurdo podem se “naturalizar” em dada sociedade? Além disso, por que um grupo de indivíduos se choca mais com certas atrocidades e menos com outras? Como é possível que candidatos a cargos políticos com claras falhas de caráter ascendam ao poder no lugar de indivíduos aparentemente com credenciais impecáveis? Ou mesmo por que idolatramos políticos, juristas, determinadas personalidades públicas?
Em termos práticos, por exemplo, entre outros casos, indaga-se por que grande parte da população brasileira apoiou, ou permaneceu silente, diante de um deputado que durante a votação no processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em meio a aplausos e vaias, fez uma homenagem ao símbolo do horror da ditadura brasileira, dizendo: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim.”[1]
Em se tratando especificamente de políticas ambientais, fatos públicos e notórios são noticiados por toda a imprensa, fatos que impressionam pelo claro efeito de desmantelamento daquelas políticas, pela rápida potencial e/ou real destruição dos ativos ambientais do país, sem falar dos ataques a direitos elementares das comunidades indígenas, quilombolas entre outros grupos considerados minoritários, destituídos de capital econômico, cultural dominante etc.[2]
Levando-se em conta esses dois exemplos, questiona-se o porquê desses fatos não terem animado um número significativo de pessoas, ou boa parte da população, a ponto de articularem uma reação condizente com a gravidade dos mesmos. Dito de outra forma, por que tais fatos não trazem conseqüências imediatas para seus responsáveis? Por que se naturalizam, são justificados, se esvaziam com o tempo, são recepcionados pela apatia?
Em meio a essas reflexões, e em razão de a pura racionalidade não conseguir resolvê-las, lançou-se, aqui, mão de algumas teorias e hipóteses que, por ventura, venham nos esclarecer e, por isso, acalmar nossas mentes. E, para esse propósito, o primeiro autor que veio à memória foi Pierre Bourdieu.
Bourdieu desenvolveu parte de sua teoria com base na chamada praxiologia – que ele define como um método onde há “o duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade.” Parece complicado, mas com esse raciocínio, Bourdieu busca demonstrar que as decisões não são livremente tomadas pelos indivíduos, nem são rigidamente determinadas por estruturas sociais, políticas, econômicas ou culturais, sendo, de fato, o resultado de uma ação dialética entre a situação e o habitus. Existiria, assim, uma relativa autonomia nas preferências e gostos das pessoas. Nesses termos, o autor se afastou do estruturalismo, que considera os indivíduos passivos diante de estruturas sociais, e também da fenomenologia, que concede ampla liberdade aos agentes sociais na determinação do sentido de sua ação.[3]
Assim, nossas condutas/decisões teriam influência da estrutura (sistema além do individual), mas não seriam completamente condicionadas por ela. Guardaríamos certo grau de autonomia e, por isso, de responsabilidade.
O habitus, em Bourdieu, pode ser definido como os esquemas de percepções que desde o nascimento, os indivíduos incorporam em suas trajetórias de vida, e que condicionam os sentidos de suas ações. Já a noção de campo, também utilizada pelo autor, liga-se à noção de espaço social (sociedade). Neste existem campos relativamente autônomos: campo jurídico, campo econômico, cultural etc. Neles ocorrem lutas simbólicas, onde se desenvolvem a produção e a distribuição de bens simbólicos.
Na obra do autor francês, no campo político está presente, ao mesmo tempo, relações de força e de luta. Aqui, a própria participação (ou reação), ou não, dos agentes sociais depende tanto do habitus, quanto do capital político (reconhecimento social que permite que aos indivíduos sejam aceitos como atores políticos, reconhecidos como capazes de agir politicamente). Vale dizer que, nesse sistema, também o apolitismo (apatia no campo político) é uma conseqüência da política.
Em referência aos sistemas de ensino, por exemplo, o sociólogo francês explica que a função da ação pedagógica é reproduzir no campo social uma reprodução cultural (cultura dominante), num sistema de educação apresentado como um conjunto de mecanismos institucionais pelos quais se encontra assegurada a transmissão entre as gerações da cultura herdada do passado. Dessa forma, inculca-se no inconsciente natural dos indivíduos uma ilusão de que “as coisas são assim mesmo”, podendo-se conduzir, por conseguinte, à naturalização das relações significantes que são o produto da história.[4]
Nesses termos, a função precípua do sistema de ensino seria a de produzir e reproduzir, através dos meios da instituição, as condições de trabalho pedagógico capaz de reproduzir continuamente, um habitus tão homogêneo e tão durável quanto possível, entre o maior número de destinatários, numa função uniformizadora. E, ainda, desempenha a função de produzir o desconhecimento da violência simbólica que exerce. Dessa forma, o sistema de ensino possuiria, ao mesmo tempo, autonomia relativa e dependência relativa à estrutura das relações de classe.[5]
Bourdieu ainda explica que “a obediência aos princípios da ideologia dominante só consegue se impor aos intelectuais através da obediência às convenções e às conveniências do mundo intelectual.”[6]
Assim, no atual cenário sócio-político brasileiro, a questão de se diferenciar incerteza e confiabilidade do conhecimento, ou a detecção de falácias e manipulações presentes nos discursos, assume uma posição importante, mas que, segundo Bourdieu, não teríamos tanta clareza e nem controle para tal propósito. Discernir entre a ação e a conversa vazia, a prática e a teoria, o ético e o legal, o genuíno e o cosmético, o amor genuíno e o interesse, a democracia e autoritarismo, a qualidade e a publicidade, o coletivo e o individual, não seria tão simples como poderíamos supor.
Revela-se, então, uma sociedade cujas assimetrias/desigualdades ocultas, ou que não se vê de imediato, têm conseqüências nem sempre tão óbvias. A nossa matriz de realidade pode ser muito mais complexa do que se aparenta, por isso, alguns estudiosos como Edgard Morin, defendem o desenvolvimento de uma racionalidade (social, política, econômica etc.) que se adapte aos sistemas complexos do mundo real.
Uma ação/determinação que envolva questões ambientais, por exemplo, possui inúmeras implicações. A falta de fiscalização dos organismos do Estado, a flexibilização em processos licitatórios, contribuem também para o relaxamento na gestão de riscos (vide Mariana/Brumadinho). Isso traz conseqüências negativas em todos os âmbitos para as comunidades atingidas, e mesmo além delas.
Nesses termos, o agente de governo, ao editar determinada norma ou diretriz ambiental - seja em termos de fiscalização, regulação ou gestão – corre o risco de prescindir de senso prático, multifacetado, distanciando-se da realidade. Tais agentes pouco aprendem com a história, ainda que esta pareça clara se submetida ao mero raciocínio lógico, e normalmente tais atos e suas conseqüências são justificadas com discursos carregados de modismos e jargões. Por isso, as decisões (políticas ou não) precisam ser tomadas levando-se em conta contextos dinâmicos e não estáticos; observando-se as interações entre os diferentes campos no cenário social.
“Sempre fomos loucos, mas não tínhamos experiência e capacidade suficientes para destruir o mundo. Agora podemos.”
Nesse sentido, o escritor Nassim Nicholas Taleb argumenta que os chamados idiotas instruídos são incapazes de pensar em segundas etapas, e desconhecem sua necessidade; são incapazes de perceber a diferença entre problemas multidimensionais e suas representações unidimensionais — como distinguir a saúde, que é multidimensional, de sua redução à medição de taxas de colesterol. Seriam pessoas delirantes e mentalmente perturbadas apenas porque nunca “precisam pagar pelas conseqüências das próprias ações, repetindo slogans modernistas desprovidos de qualquer profundidade (por exemplo, continuam usando o termo “democracia” ao mesmo tempo em que incentivam degoladores; democracia é algo sobre o qual eles lêem em cursos de pós-graduação)”. [7]
Contudo, o autor reconhece a diferença entre hoje e os tempos remotos, e afirma que “Sempre fomos loucos, mas não tínhamos experiência e capacidade suficientes para destruir o mundo. Agora podemos.”[8] A explicação que Taleb traz para a eleição de pessoas com o perfil de Donald Trump (e Jair Bolsonaro, por analogia), por exemplo, dar-se-ia pelo fato de esses indivíduos se expressarem de maneira não convencional.
Seriam pessoas com defeitos visíveis, apresentariam algo “real” que se expõe a um público. Esse público seria composto de pessoas que usualmente correm riscos, e não por analistas inertes que não assumem riscos. A ideia é que tais indivíduos representariam alguém que sangra de verdade, e mesmo seus fracassos corroborariam este argumento. Daí a opção por uma pessoa real e fracassada/com defeitos visíveis, à outra bem-sucedida. Isso porque defeitos, cicatrizes, falhas de caráter aumentariam a distância entre um ser humano e um fantasma. As pessoas seriam, dessa forma, capazes de reconhecer o que o autor chama de “diferença entre operadores da linha de frente e os da retaguarda.”
Voltando à questão ambiental, hoje o Brasil precisa discutir democraticamente um limite razoável à degradação do meio ambiente. Uma política de livre disposição de bens, além das propostas de livre externalização de custos ambientais, traduziriam a intenção de continuidade de se dispor livremente de bens comuns, exterminando os recursos naturais em nome (de um falso argumento) do progresso, como se fossem necessariamente incompatíveis.
Nesse caso, Morin defende a ideia de que a simplificação (do que é complexo) poderia conduzir a um funcionamento neototalitário, e integra-se adequadamente em todas as formas modernas de totalitarismo. Conduzir-se-ia, em todo o caso, à manipulação das unidades em nome do todo. O autor destaca como pertinente a adoção da lógica do paradigma de complexidade, que, segundo ele, conduziria a um conhecimento mais “verdadeiro”, num contexto em que as relações todo-partes devem ser necessariamente mediadas pelo termo interações.[9]
O meio ambiente apresenta-se como um conjunto de elementos (ecossistemas) que apresentam vínculos ou relações que se desenvolvem, se transformam ao longo dos tempos. Tendo em vista a complexidade dos elementos que compõem o ambiente, assim como a dependência mútua dos seus elementos, o ambiente engloba não somente os elementos físicos, mas também os elementos culturais, sociais, econômicos etc. Trata-se de um tema complexo, multifacetado.
Voltando aos questionamentos iniciais - por que somos apáticos a acontecimentos negativos, deletérios, com potencial de prejuízos intergeracionais - podemos escolher, no âmbito deste pequeno texto, entender que nos identificamos, muitas vezes, com o que consideramos mais real, mais humano, dentro de parâmetros de defeitos/mortalidade; ou podemos admitir que não temos a real autonomia que pensamos ter e, por isso, somos em grande medida o reflexo condicionado por uma estrutura que assim não se revela, mas que apresenta certa eficiência e benefício para poucos, no mínimo desde a formação dos Estados modernos.
Tratar-se-ia, deste modo, de um tema que assume grande complexidade e, por isso, deve ser tratado com cautela, para que, primeiro, possamos nos excluir do seleto grupo dos idiotas instruídos; segundo, para que os prejuízos ambientais não assumam proporções de irreversibilidade, seguidos das já tradicionais doses de irresponsabilidades.
[1] “Durante o regime militar, entre 1970 e 1974, Ustra foi o chefe do DOI-Codi do Exército de São Paulo, órgão de repressão política do governo militar. Ali, sob o comando do coronel, ao menos 50 pessoas foram assassinadas ou desapareceram e outras 500 foram torturadas, segundo a Comissão Nacional da Verdade.” In: WENTZEL, Marina; DELLA BARBA, Mariana. Discurso de Bolsonaro deixa ativistas ‘estarrecidos’ e leva OAB a pedir sua cassação. Acesso em 22 de junho de 2019.
[2] Entre os fatos recentemente noticiados na área ambiental estão os seguintes: transferência do Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; a acelerada liberação de quase duas centenas de novos agrotóxicos, comprometendo a saúde das pessoas e a preservação dos solos e recursos hídricos; a redução, em número e representatividade, das cadeiras do CONAMA, órgão fundamental para a realização da Política Nacional do Meio Ambiente, que garante, por sua ampla representatividade, o Princípio Democrático na elaboração das políticas públicas ambientais; entre várias outras.
[3] REZENDE, Raul. Estudos do discurso: perspectivas teóricas Bourdieu. 2016. In: OLIVEIRA, Luciano Amaral (org.). Estudos do discurso: perspectivas teóricas. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2013.
[4] BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino, 2011.
[5] BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino, 2011.
[6] BOURDIEU, Pierre ; PASSERON, Jean Cloud. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982. p.202
[7] TALEB, Nassim Nicholas. Arriscando a própria pele: assimetrias ocultas no cotidiano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. p. 19-21.
[8] TALEB, Nassim Nicholas. Arriscando a própria pele: assimetrias ocultas no cotidiano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. p. 21.
[9] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 264.
Patrícia Bianchi é colunista da Revista PUB e escreve mensalmente todo dia 23. É Doutora pela UFSC. Pós-doutora pela USP. Conselheira do CONSEMA e CONAMA. Professora de Políticas Públicas Ambientais do Mestrado em Direito do UNISAL.
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