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ENSAIO SOBRE A POBREZA

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-PATRÍCIA BIANCHI-


Joel sai de casa às 4 da madrugada, num Gol 2009 que parcelou em 36 prestações, carregando sua mercadoria que será vendida numa barraca de camelô no centro da cidade. Joel tem 32 anos, é casado com Miriam, que é técnica em enfermagem, mas acaba de ser demitida do supermercado onde trabalhava no caixa, em razão da recessão do país. Eles têm dois filhos: Mário de 12 anos e Alice de 4. Joel, para sustentar a família, além de trabalhar em sua barraca, ainda faz bicos de encanador e pedreiro no período noturno e dias livres. Joel tem apenas o ensino fundamental. Trabalha duro desde muito cedo para ajudar a família, e não conseguiu concluir o ensino médio. Isso hoje é um dos seus sonhos para os dois filhos. Sua esposa - além de cuidar da casa e das crianças, lutando para mantê-las na escola e longe das drogas e violência que estão em seu “quintal” - se vira fazendo bicos como faxineira. A avó, já bem doente, ajuda como pode com as crianças. E assim, nessa história fictícia, semelhante a de milhares de brasileiros, os personagens veem o tempo passar. Não há tempo para viver, não há tempo para pensar.


O FGV Social, um centro de pesquisas que possui uma longa tradição em captar as curvas sociais brasileiras, lançou recentemente um estudo sobre o impacto da crise sobre a pobreza e a distribuição de renda. O estudo indica o aumento da pobreza e da desigualdade até o segundo trimestre de 2018. Segundo a pesquisa, hoje, há 23,3 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, e a miséria subiu 33% nos últimos quatro anos. São 6,3 milhões de novos pobres, mais do que a população do Paraguai, adicionada ao estoque de pobreza. Constatou-se, ainda, que desde o final de 2014, o Índice de Gini (que mede a desigualdade) subiu a uma velocidade 50% maior do que vinha caindo na época de queda da desigualdade brasileira, iniciada em 2001. Em razão da constatação de que em cerca de 4 anos consecutivos houve o aumento de concentração de renda, os pesquisadores chamaram esse período de “década perdida”.[1]


O aumento da desigualdade ajuda muito a explicar o mau desempenho econômico no país, já que os pobres são potenciais consumidores de uma parcela maior da renda.[2] Deste modo, há uma relação dialética, uma realimentação entre recessão e aumento da desigualdade, onde se costuma apontar o desemprego como um dos pontos mais importantes da equação. O desemprego limita as possibilidades de sobrevivência, de vida digna. Torna as pessoas mais desiguais enquanto cidadãos, já que a eles direitos básicos, elementares são obstados. Desempregados podem facilmente entrar para uma massa de pobres e marginalizados, e com poucas chances futuras de saírem da pobreza.

Estudos apontam que os mais pobres sentem muito mais o impacto das recessões, tanto pela vulnerabilidade social, quanto pela dinâmica do mercado de trabalho. Na avaliação de Marcelo Medeiros, pesquisador vinculado à Universidade de Princeton nos Estados Unidos, o processo de recuperação da crise até agora quase não gera empregos e praticamente só favorece os trabalhadores de renda mais alta. Segundo ele, “Os mais pobres estão sendo deixados para trás.”[3]


Para Rogério Barbosa, pesquisador pós-doutor do Centro de Estudos da Metrópole (USP), a desigualdade de renda aumentou por dois motivos nos últimos anos: primeiro, porque várias pessoas que reingressam no mercado vão para o setor informal e inseguro, tendendo a reduzir seus gastos, inibindo a circulação de dinheiro na economia. Segundo, porque as pessoas que permaneceram no setor formal ocupam colocações melhores, e, eventualmente, chegam a melhorar seus ganhos.[4]


Normalmente, desempregados são empurrados à informalidade. Trabalhadores informais sofrem com carências múltiplas, incluindo, muitas vezes, trabalho indigno, cerceamento de direitos e de expressão por canais democraticamente construídos, baixa de qualidade de vida e limitações a acessos (moradia, lazeres, serviços sociais ou de saúde etc.). Entram para a categoria de pessoas estigmatizadas, e até criminalizadas, por tentar ganhar a vida honestamente, porém de modo informal, sendo ainda, de modo geral, consideradas improdutivas pelos economistas. Atualmente a dinâmica social se apresenta dessa forma: em vez de acolhê-los, penalizamos-os e marcamos seus destinos e de suas famílias.


Mas a desigualdade não tem a ver apenas com o dinheiro. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e a Iniciativa sobre Pobreza e Desenvolvimento Humano de Oxford (IPDHO), elabora anualmente um relatório onde foi desenvolvido um Índice Global de Pobreza Multidimensional (IGPM). No último relatório, que há informações detalhadas sobre a pobreza multidimensional, constatou-se que, no período de 2006 a 2016, na Índia, por exemplo, 271 milhões de pessoas saíram da pobreza. Sobre esse ponto, a diretora da IPDHO, Sabina Alkire, afirma que “Existem países que não crescem economicamente, mas reduzem a pobreza multidimensional porque usam melhor seus orçamentos, pois sabem melhor onde estão os pobres, em qual grau o são e onde estão.[5]


A chamada pobreza multidimensional identifica a desigualdade dentro da desigualdade. Isto posto, aquele estudo demonstrou que a perda da renda nos últimos 4 anos é mais forte entre os jovens (-20,1% entre 15 e 19 anos e -13,94% entre 20 e 24 anos), entre pessoas com ensino médio incompleto (-11,65%), entre os responsáveis dos domicílios (-10,38%) e regiões Norte (-6.08%) e Nordeste (-6.43%).[6]


Entre o grupo de multidimensionalmente pobres, a população rural, as mulheres e as crianças são as mais vulneráveis à pobreza, segundo o Índice Global de Pobreza Multidimensional. E metade das pessoas que sofrem de carências, como falta de acesso à água potável, educação, desnutrição ou moradia digna, é menor de 18 anos. Acresce-se a isso o fato de que, hoje, conforme estatísticas publicadas pela Organização Internacional do Trabalho, “a maioria é pobre e a maioria é de minorias étnicas. E há mais mulheres do que homens”.[7]


Assim, depreende-se que, apesar da discussão sobre a pobreza se concentrar no crescimento econômico, este não resolverá, de forma isolada, o problema da desigualdade. Há muitas outras questões sistêmicas que precisam ser consideradas. E, nesse cenário, a desigualdade definitivamente não é apenas um problema dos pobres, mas também dos ricos. Fica patente a necessidade de distribuição de riquezas, numa dinâmica que envolva políticas públicas, com o acionamento do sistema tributário, a fim de que classes com rendas mais altas contribuam mais, primando-se pela seletividade tributária, visando-se corrigir e evitar grandes disfunções sociais.


Além disso, as instituições devem adotar uma política constante e perene quando se trata desse assunto em particular. Nesse sentido, Douglass C. North, laureado com o Prêmio Nobel de economia, escreveu em seu livro “Instituições, mudança institucional e desempenho econômico,” que “As instituições são as regras do jogo em uma sociedade ou, em definição mais formal, as restrições concebidas pelo homem que moldam a interação humana.” Instituições estruturam incentivos no intercâmbio humano, sejam eles políticos, sociais ou econômicos.[8]


North explica que as instituições reduzem a incerteza ao conferir uma estrutura à vida cotidiana, elas representam um guia para a interação humana, e abrangem quaisquer formas de restrição que os indivíduos engendrem para moldar essa interação. Nesses termos, o principal papel das instituições em dada sociedade seria reduzir a incerteza, ao estabelecer uma estrutura estável a fim de regular a interação entre seres humanos.[9]


Assim, a estabilidade institucional representaria algo positivo para a economia, e, apesar de não garantir por si só eficiência, apresenta-se como atributo desejável em termos microeconômicos desenhados por North, podendo-se afirmar, deste modo, a importância, no âmbito econômico e social, da previsibilidade nas relações e da segurança traduzida nesse processo, sobretudo para os mais carentes, os que mais precisam.


Esse cenário anteriormente descrito sobre a pobreza (no sentido daquele que não tem as condições básicas para garantir a sua sobrevivência, as condições de usufruir de uma vida minimamente digna), leva-nos a pensar em como tantos brasileiros vivem e sobrevivem a todas as adversidades incessantes e profundas que lhes resta. Isso leva-nos à ideia do chamado “jeitinho brasileiro”.

A ONG Politize!, referenciando o livro “O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual que os outros”, de Lívia Barbosa, conceitua aquela expressão como sendo “sempre uma forma ‘especial’ de se resolver algum problema ou situação difícil ou proibida; ou uma solução criativa para alguma emergência, seja sob a forma de conciliação, esperteza ou habilidade.” Barbosa ainda adverte que o jeitinho brasileiro pode ser visto tanto como um favor, quanto como uma forma de corrupção. Ele estaria localizado entre esses dois pólos, onde o primeiro é positivo e o outro é negativo, podendo pender mais para um lado ou para o outro.[10]


Assim, quem tem o mínimo de empatia com os que sofrem o peso de uma desigualdade profunda, é capaz de entender os que adotam esse jeitinho em suas condutas cotidianas, que ele, de alguma forma, ajuda no alívio de suas angústias.

De outro vértice, Juan Arias observa que “Muito se denegriu esse jeitinho, que na verdade não é nada mais do que, como escreveu alguém, a “saída para uma situação sem saída” e, portanto, com grandes doses de engenho que, segundo Sérgio Buarque de Holanda, é o que cunhou o brasileiro como “o homem cordial”, que procura sempre agradar e que não aceita o impossível.” [11]


A filósofa Fernanda Carlos Borges, citada por Arias, em sua obra A Filosofia do Jeito, entende que o jeitinho brasileiro como um “modo característico de conduta sobretudo do brasileiro pobre, mas que também contaminou os ricos, ‘não é a conseqüência de um atraso’, como sempre foi dito, mas algo que antes revela ‘um critério ético e uma axiologia sobre um modo de ser no mundo que aceita a participação do imprevisível, da fragilidade, da afetividade e da invenção dentro da organização’.[12]


Assim, quem tem o mínimo de empatia com os que sofrem o peso de uma desigualdade profunda, é capaz de entender os que adotam esse jeitinho em suas condutas cotidianas, que ele, de alguma forma, ajuda no alívio de suas angústias. Na esperança de melhorar de vida, buscam-se soluções, improvisos, malabarismos de todo gênero, a fim de se amortizar das dores da carne e as tristezas da alma.

Em relação aos problemas e injustiças desigualmente vivenciados na sociedade brasileira, Arias ainda afirma que “os brasileiros não parecem inclinados a revoluções radicais e violentas.[13] Isso parece certo, e a manutenção desse status quo é de grande interesse para os que assumem papel de comando e destaque na atual estrutura social, política e econômica do país. Habituados à opressão econômica e social, tudo avalizado pela moldura do Estado e do Direito, boa parte dos brasileiros que são relegados à marginalização e à pobreza, são fadados a procurar outros caminhos, outros horizontes, outros planos, outro jeito.

Isso explicaria sua aparente passividade diante de tantas injustiças e carências cuja origem se encontra nas bases sócio-culturais e políticas do país, mas que conscientemente se perpetua. Tendo seus direitos fundamentais cotidianamente negados, excluídos das benesses do nosso modelo econômico-social e, longe, muito longe, dos centros de poder, vêm-se obrigados a reinventar seus mundos de forma muito peculiar.


Os livros e (bons) noticiários nos mostram que boa parcela dos brasileiros tem seus destinos traçados antes do nascimento, ainda quando estão no ventre de suas mães. Nascendo, não terão muitas oportunidades. Não terão trabalho digno, compreensão do outro, auxílio, nem seus corpos serão poupados. Serão-lhes vendidos sonhos, mas a dinâmica das periferias, as balas perdidas, a violência e a miséria lhe mostrarão a sua realidade, a sua sina. Após essa constatação, provavelmente seu destino será a morte ou o confinamento. Sua vida não é bem-vinda, a sociedade não se sente confortável com a sua presença: ela é feia, indesejável, causa medo e pavor. O último ato dá-se quando aquela parcela de brasileiros é “normalmente” apontada como o grande problema social, a fonte de todos os males e infortúnios.


Nessa distopia, o entorno político e jurídico não prioriza os pobres e a sua miséria, como, por exemplo, os empregados, sobretudo informais, que estão na base da pirâmide. Deveria fazê-lo, pelos argumentos já aqui elencados, mas o discurso se mantém muito além da realidade e da lógica. Deveríamos investir em políticas públicas que atendam à multidimensionalidade da desigualdade, além de trabalhar seriamente com fortes programas sociais, mas, novamente, a realidade nos afronta.


Assim, há vários caminhos que sinalizam a possibilidade de se erradicar a pobreza no país, entre eles a necessidade de uma articulação política que trabalhe no âmbito de um conceito de pobreza multidimensional, levando-se em conta as variações e a diversidade dentro da própria pobreza.

Nesses termos, o documento intitulado Efeitos dos ciclos econômicos nos indicadores sociais da América Latina: quando os sonhos encontram a realidade, demonstra que os programas sociais podem ser os mais eficazes amortecedores dos choques econômicos. Para o economista-chefe do Banco Mundial para a América Latina e Caribe, Carlos Végh, aqueles programas são comuns em países desenvolvidos, mas não na região da América Latina e Caribe. Segundo Végh “A região deve desenvolver, além dos programas estruturais existentes, ferramentas de rede de segurança social que possam apoiar os pobres e os mais vulneráveis durante o ciclo de baixa nos negócios”.[14]


O Banco Mundial constatou - com base na análise de três indicadores (taxa de desemprego; pobreza; e necessidades básicas insatisfeitas, como habitação, educação e saneamento) – que a América latina e Caribe é a região com os indicadores mais voláteis em todo o mundo por ser exposta a fatores externos (como preços das commodities e liquidez internacional) e instabilidades institucionais e políticas.[15] E essa instabilidade, segundo Douglass C. North, é péssima para a economia e, por isso, para a sociedade como um todo.


Assim, há vários caminhos que sinalizam a possibilidade de se erradicar a pobreza no país, entre eles a necessidade de uma articulação política que trabalhe no âmbito de um conceito de pobreza multidimensional, levando-se em conta as variações e a diversidade dentro da própria pobreza. Além disso, deve-se atentar ao entendimento de que a pobreza traz prejuízos sociais de toda a ordem. Com a sua manutenção, as crises econômicas são potencializadas, a violência se acentua e, sobretudo, vidas são ceifadas em vida, famílias inteiras são violentadas numa tortura infinda.


Diante das circunstâncias de pobreza e/ou miséria extrema de grande parte da população brasileira - e do alto de uma vida, muitas vezes difícil, mas relativamente tranquila e com algumas oportunidades pelo caminho – infelizmente costumou-se concluir que Joel e Miriam estão muito bem. Está ótimo e “é o que tem pra hoje”. Ali, reclamações e lamúrias sempre serão rechaçadas, já que “trabalho não é doença”, e trabalhando duro todos ficaremos bem! Contudo, em realidade, sabemos que Joel e Miriam e seus dois filhos estão na linha tênue que separa, de um lado, uma vida cheia de privações, e de outro, o confinamento ou mesmo a morte.


Por fim, em razão de todo desenho tragicômico descrito de um real que nos torna conterrâneos, entendo que o jeitinho brasileiro deveria mesmo era ser enaltecido, valorizado como parte da cultura nacional, sobretudo observando-se os pobres, com aquele jeito de lidar com o que não tem jeito. Como uma forma de se burlar a bruta realidade com graça, força e leveza, ao mesmo tempo. O jeitinho brasileiro poderia, inclusive, ser patenteado, tornar-se patrimônio público. E, assim, poderíamos ensinar aos gringos como lidar com problemas “de verdade” de forma permanente, ininterrupta.


Referências

[1] https://portal.fgv.br/noticias/pobreza-e-desigualdade-aumentaram-ultimos-4-anos-brasil-revela-estudo


[2] https://portal.fgv.br/noticias/pobreza-e-desigualdade-aumentaram-ultimos-4-anos-brasil-revela-estudo





[6] https://portal.fgv.br/noticias/pobreza-e-desigualdade-aumentaram-ultimos-4-anos-brasil-revela-estudo



[8] North, Douglass C. Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. Tradução Alexandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2018. p. 13.


[9] North, Douglass C. Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. Tradução Alexandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2018. p. 14-18.


[10] https://www.politize.com.br/jeitinho-brasileiro/


[11] https://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/30/opinion/1388424661_871576.html


[12] https://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/30/opinion/1388424661_871576.html


[13] https://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/30/opinion/1388424661_871576.html



 

Patrícia Bianchi escreve mensalmente todo dia 23. É Doutora pela UFSC. Pós-doutora pela USP. Conselheira do CONSEMA e CONAMA. Professora de Políticas Públicas Ambientais do Mestrado em Direito do UNISAL.

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