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A saída de Moro em meio ao naufrágio do país

- Guilherme Purvin -


Itália e Portugal festejam a derrota do fascismo. O Brasil ultradireitista comemora a morte e a mentira.

Se, na Itália e em Portugal, o dia 25 de abril é lembrado como o dia da vitória sobre o fascismo, no Brasil este dia será provavelmente registrado como o dia do engodo e da vergonha. Ainda estamos tentando assimilar o que ouvimos pelas redes de televisão há menos de 24 horas – uma discussão política que faz cortina de fumaça para as escavadeiras abrindo covas nos cemitérios.

No dia 24 de abril de 2020, enquanto a cidade de São Paulo registrava oficialmente a morte de pelo menos sete pessoas por hora, vítimas da COVID-19, parece que a assim chamada “esquerda” (ou seja, todos aqueles que defendem a democracia e o respeito à constituição) entrou na fase mais aguda de agonia. O pulmão mecânico está agora nas mãos da extrema-direita – da ala apoiada pela Record e SBT (milicianos e religiosos) e da ala patrocinada pela Rede Globo (lavajatistas).

No horário da manhã, o ministro Sérgio Moro, grande responsável pela ascensão de seu, até ontem, chefe, aproveita uma canetada do presidente da república para pular do navio. Os comentaristas, praticamente sem exceção, subitamente se esquecem de relacionar a sua demissão com o momento de pandemia. Não há menor chance de recuperação da economia nos próximos dois anos. Qual a vantagem que Moro teria, num momento como este, para continuar num cargo que, diante da urgência sanitária no planeta, passou à condição de coadjuvante? Como construir sua campanha presidencial à luz do irremediável fracasso do governo que ele, Sérgio Moro, fez ascender graças às incontáveis ilegalidades perpetradas ao longo dos anos em que se dedicou a forjar a prisão de Lula – nome que, naquele momento, poderia colocar por terra os resultados do golpe parlamentar de 2016? Como todos os ratos, pulou para fora do navio antes que afundasse, levando para as profundezas a sua “biografia”.

O anúncio deu-se depois de Jair Bolsonaro afastar Maurício Leite Valeixo, que Moro diz ser o homem que garantiu a autonomia da Polícia Federal. Afirmou Moro: "(...) tenho que assumir o compromisso com o presidente e um pressuposto é garantir o respeito à lei e a autonomia da polícia federal contra interferências políticas. Ele havia assumido um compromisso de que seria uma escolha técnica, eu faria essa escolha desde que tivesse uma causa. Não posso concordar". Para todos os efeitos, a narrativa imediatamente encampada pela Rede Globo é de que esta demissão foi a gota d’água que levou à saída de Moro — e não a crise econômica gerada pela pandemia.

Os próximos passos todos já conhecem: retornam os prints de WhatsApp e os vazamentos para a imprensa – neste instante (surpresa!), o The Intercept Brasil noticia que Flávio Bolsonaro teria financiado e lucrado com a construção ilegal de prédios erguidos pela milícia usando dinheiro público: “O investimento para as edificações levantadas por três construtoras foi feito com dinheiro de ‘rachadinha’, coletado no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, como afirmam promotores e investigadores sob a condição de anonimato”. Sob o ponto de vista jornalístico, o The Intercept Brasil age, como sempre, de forma correta. Mas pode-se dizer o mesmo dos agentes públicos que pedem anonimato? Teriam eles o direito de vazar estas informações? Neste caso, só causa certa surpresa que o MP, que vinha se mantendo tão crítico quanto à linha editorial da publicação de Glenn Grenwald, a tenha escolhido para a reestreia de sua militância.

Haverá quem acredite que todas estas informações eram desconhecidas dos investigadores e membros do MP há, digamos, seis meses? De onde vem essa concertação tão harmoniosa de denúncias contra o ex-patrão? O controle integral da vida política e econômica do país continua nas mesmas mãos que se empenharam em destruir todas as forças progressistas do espectro político brasileiro.

À míngua de um debate politicamente sério e responsável sobre o controle da pandemia – debate que imporia colocar em xeque o próprio ultra-neoliberalismo que se recusa a aceitar o cumprimento dos princípios constitucionais norteadores da ordem econômica no país – fala-se sobre quais serão os próximos passos do Ministério Púbico Federal e da Polícia Federal. Sendo Bolsonaro afastado da presidência, aceitaria Moro entrar num governo tampão de duvidosa constitucionalidade? Ao que parece, os brasileiros são péssimos jogadores de xadrez. Se não conseguem pensar nas consequências de seus atos dentro de duas ou três semanas, abandonando a quarentena e voltando a aglomerar-se nas ruas, o que dizer do futuro político institucional do país?

É significativo, porém, que o representante do capital, Ministro Paulo Guedes, fosse o único no pronunciamento de Jair Bolsonaro na tarde do dia 24 a usar máscara (e meias!). A elite econômica está plenamente consciente de que todos estamos correndo risco de vida – por isso, Paulo Guedes é a única vida que precisa realmente ser preservada ali. Não pode o ultra-neoliberalismo permitir o risco de que a “esquerda” torne-se protagonista na defesa da vida dos brasileiros e exija dos agentes econômicos o cumprimento do princípio da função social da propriedade – mobilizando indústria, comércio e serviços para o combate da pandemia, como fez, por exemplo, o prefeito de Sobral que determinou a intervenção de indústria de lingerie para a confecção de máscaras. Como diz o ditado: o capitalismo capota, mas não breca.

Foto: Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima.


Aproximamo-nos do momento em que começarão os enterros em crateras, cadáveres empurrados por escavadeiras. Haverá interesse político de Moro, Witzel, Dória, Caiado, Álvaro Dias, no impeachment de Bolsonaro? É evidente que não! É evidente que toda a responsabilidade por essa tragédia anunciada deverá ser colocada sobre os ombros do homem que elegeram e a quem deram sustentação, o líder do clã.

Ansiosa, a Rede Globo gostaria que a substituição fosse imediata. Afinal, neste governo já perdeu muito dinheiro – e é isso o que importa a ela: recuperar integralmente a liderança, mesmo que em meio à pandemia. No entanto, a emissora não pode tudo. Há alguns anos, filmou a mala com dólares e divulgou a gravação do encontro de Joesley com Temer. Os ativistas políticos do meio jurídico não entenderam o recado, Temer chegou a ser preso em 21 de março de 2019, em cumprimento de mandado expedido pelo juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, dentro da Operação Descontaminação. O mercado, porém, decidiu que aquele não era o momento. A “esquerda” ainda sobrevivia, Temer não havia concluído sua missão.

Impeachment, neste momento, resultaria na ascensão de Mourão. Nesse contexto, talvez Moro (e, quiçá, Mandetta) fosse convidado a reassumir o cargo. O que lucraria com isso, porém? Continuaria tendo seu nome vinculado ao governo-coronavírus. Nessa linha de especulação da política burguesa, poder-se-ia pensar no impeachment de toda a chapa (lembremo-nos de que as eleições presidenciais de 2018 foram viciadas pelo patrocínio de disparos de fake news – dupla ilegalidade, pelo conteúdo transmitido e pelo financiamento empresarial). Teríamos então a convocação de novas eleições. Aí sim, o Moro teria cacife para concorrer à presidência, quem sabe numa dobradinha com Luciano Huck ou João Dória como vice. Seria, porém, um mandato-tampão e a grande missão seria recuperar o país dos escombros da pandemia. É isso o que Moro quer? Não me parece. Sérgio Moro encarna no Brasil a figura do Gladius DeiLaw & Order. É tudo ou nada – e quem estiver contra, terá à frente a prisão. Moro prendeu Lula. Moro é o super-herói.

Enquanto isso, a “esquerda”, confinada em grupinhos de WhatsApp de apoio psicológico mútuo, consola-se com a troca de “memes”, eventualmente permeadas de comentários eruditos sobre Hannah Arendt, Foucault e Trotsky. Para a “esquerda”, o que significou a saída de Moro do governo Bolsonaro? Moro saiu de um ostracismo temporário e, em plena crise sanitária, voltou à berlinda. A culpa da crise econômica e sanitária é desse homem, que mudou a chefia da Polícia Federal!

A realidade política brasileira é desoladora. Perguntaram-me se bati panelas no pronunciamento de Bolsonaro às cinco da tarde do dia da vergonha. Não. Não bati panela nem toquei corneta com o refrão petista “olê olê olê olá”. Não há absolutamente nada a comemorar, pelo contrário. O quadro político é a cada dia mais tenebroso, intelectualmente desonesto, ambientalmente insano. A economia ultra-neoliberal movimenta as peças do jogo e desliga o ventilador pulmonar a hora que quiser. Contradições e crimes são cometidos por todas as alas e facções políticas e os desdobramentos políticos disso só são autorizados quando o responsável pelo setor de iluminação do teatro do capitalismo dirige o holofote para a cena que entende ser a da vez.

Neste momento, o ideal para Sérgio Moro seria assumir alguma secretaria de justiça ou de segurança pública (ou ambas) de algum governo ultradireitista que esteja interessado em romper com Bolsonaro. Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro seriam bons empregadores. Afinal, o condutor da Lava Jato, ao concluir sua fala, deixou claro para quem for bom entendedor: está com passe livre.

Cai o número de apoiadores do Bolsonaro, sobe o de apoiadores de Moro. No total, o quadro eleitoral continua o mesmo e os governos do Norte e Nordeste ainda correm o risco de perder a proeminência que vinham adquirindo na condução dos interesses do povo. E ninguém se dá conta de que milicianos e lavajatistas, ao preferirem mais esta encenação necropolítica em lugar de lutarem pela condução dos rumos da economia em defesa da saúde pública, sem máscaras no rosto estão novamente contribuindo para o aumento exponencial do número de mortos.

 

Guilherme Purvin, escritor e advogado, é formado em Letras e Direito pela USP. Procurador do Estado/SP Aposentado, é secretário-geral do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e coordenador geral da APRODAB.


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