top of page

Derrama

  • Foto do escritor: Revista Pub
    Revista Pub
  • 25 de jun. de 2019
  • 2 min de leitura

-MARÍLIA GONÇALVES-


Ilustração: Marina De Bonis

Geralda garantiu que eu encontraria taioba graúda na feira, na barraca do seu Anésio. Ela é sábia, acredito. Escolhi cinco folhas de metro, lindas, serão refogadinhas com alho e azeite. Já tive na horta, descuidei de molhar e secou.


Quero tudo para agora, ando com essa agonia de futuro.


Preparei a taioba com o frango refogado do jeitinho que as crianças gostam. Lupércio mastigou e murmurou mas não disse que estava uma delicia. Ele é assim, nem ligo. Repetiu duas vezes, pensa que me engana.


Depois, mesa debandada, Balbi e Otelo correndo atrás do rabo da Mina que corria atrás do próprio rabo, aguei o jardim bem devagar (agora me esmero), o balé do esguicho amolecendo meus pensamentos doidos. O barulho da água, acho que instala um pouco a felicidade na gente.


Entrei na sala largando a sandália ensopada na soleira. A calça de malha e a camiseta igualmente ensopadas. Torço a barra da camiseta e termino de molhar o capacho. Caminhei rapidinho pelo corredor de tábuas até o banheiro, os passos marcando a madeira. Ligo a ducha e me livro das roupas. Um banho quente, delícia.


Do banheiro ouço um passarinho, não sei nada sobre ele, só que sempre canta enquanto eu canto baixinho no chuveiro. Somos um dueto anônimo e feliz. Me enrolo na toalha macia, tão macia depois que descobri o enxágue com vinagre e amaciante. Meus prazeres fúteis que não confesso.


Seca e abrigada num moletom macio, assisto ao cochilo das crianças enganchadas no pai, uma instalação de gente jogada no tapete da sala. Mina rói uma pelúcia babada. O silêncio do domingo. Sou quase feliz. Dei para comemorar silêncios.


Lupércio diz que exagero nos medos. Se me visse agora, quase plácida, lágrimas de alegria bruta e instantânea. É exagero cultivar o medo, ele diz. Pra tudo se dá um jeito. Não acho exagero, não acredito que para tudo há cura. Mas por hoje ao menos ele está certo, a sirene não tocou.


Marília Gonçalves é colunista da Revista PUB e escreve todo dia 25 de cada mês. É escritora e cozinheira.


 
 
 

6 Comments


Guilherme José Purvin de Figueiredo
Guilherme José Purvin de Figueiredo
Jun 27, 2019

Conto forte, falsamente tranquilo. Desfecho surpreendente!

Like

Madeleine Hutyra
Madeleine Hutyra
Jun 27, 2019

Muito lindo ! O domingo nesse conto da Marília é um oásis no deserto do medo. "Hoje ao menos...a sirene não tocou"; o medo nas Minas, da "derrama", contra a qual Tiradentes ousara se levantar ... Parabéns !

Like

Elizabeth Harkot De LaTaille
Elizabeth Harkot De LaTaille
Jun 26, 2019

Marília, que prazer ler esse lindo domingo! Suave e tangível.

Like

jdlt
Jun 25, 2019

Se Marília Gonçalves cozinhar tão bem quanto escreve, é cozinheira de encher a boca de água.

Like

Márcia Semer
Márcia Semer
Jun 25, 2019

Adorei Marília. Vc me transportou. Incorporei a personagem. Thanks.

Like

Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W
bottom of page