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LAPINHA

-MARÍLIA GONÇALVES-


O guia segue na frente, falando sem parar, uma alegria e um vigor tão intensos que nem se lembra de que há dois idosos na caminhada. Meu pai também não se dá conta de que é um octagenário e estica passos de ganso para não perder a trilha, não perder uma explicação sequer. Minha mãe atrás, bufando. Minha irmã briga com a trilha de galhos ressequidos, resmunga por conta de tornozelos riscados nos gravetos, eu me pergunto onde é que estava com a cabeça para calçar uma alpargata de pano, espano as folhas que se engancham no cabelo, deveria estar de botas.


Mais cedo, entramos numa ruela de chão batido, casinhas pobres de janelas estateladas na linha da rua. Batemos palmas. Oi, a gente tá procurando a Lapinha, sabe como chegamos lá? A moradora saiu sem pressa, um menino magricela agarrado à sua perna, a filha um pouco mais velha no jogo de olha e esconde, envergonhada.


Ela sabia, claro, onde era a Lapinha, só não sabia era explicar. Entrem para tomar uma água, aqui no fundo do quintal já começa a serra, querem ver? A gente queria ver tudo, entramos e num piscar de olho, o pai octadolescente trepava nas pedras que fechavam o fundo do terreno; e subia, subia - cuidado pai - subia sem olhar para trás. Não teve jeito, engatei a subir atrás dele, agarrando o morro com as unhas, a mãe gritando, a voz ficando longe, cuidado, desçam daí, que loucura!


Apesar do medo de altura, de um equilíbrio pouco eficiente, e de calçar alpargatas de pano e solado de corda, consegui subir. E lá em cima, sentada numa pedra enorme ao lado de meu pai, entendi o tamanho da saudade que ele sentia da terra desgarrada há tantas décadas. A fileira de pedras se estendia até o olho perder de vista, umas pedras de veios tão lindos. Árido e aconchegante. Uma gameleira soberana oferecia um bom quinhão de sombra e ficamos lá, ouvindo as proezas do menino magricela que nos seguiu para contar de como subia e se escondia e corria sobre as pedras. Eu só pensando em como seria para descer dali.


Foi a dona da casa que indicou, ali, no fim da rua, o Zé Pitanga poderia nos levar, conhece tudo por aqui. A casa posta num terreno grande, umas vacas confortavelmente esparramadas pelo gramado. Batemos palmas algumas vezes, ninguém apareceu. Nova tentativa e lá vem Zé Pitanga, bocejando e terminando de vestir uma camiseta com propaganda política do vereador local, o sorriso aberto cheio de falhas.


Posso levar vocês sim, e pode ser agora, porque não? Meteu-se no carro confortável, alugado em BH, e lá fomos nós desbravar Varzelândia. Segui as indicações do Zé com precisão. Uns quinze minutos foram suficientes para atravessarmos quase tudo o que havia para ser visto. Ele indica o final da rua e estaciono. Daqui em diante só se chega a pé. Pegamos uma picada, a vegetação toda seca, não chove há mais de cinco meses, ele conta. E explica o nome de cada árvore por que passamos, o nome dos passarinhos, dos lugares. Numa clareira, atravessamos uma olaria abandonada. As luzes vespertinas desse lugar me enlouquecem com seu festival de laranjas, estou atordoada. Chegamos ao final da estradinha e damos de cara com uma cerca de arame farpado. Para chegar a tão falada Lapinha, ainda tem um bom quarto de hora de caminhada e Zé não pestaneja, com uma mão afasta um fio de arame para baixo, com a outra levanta o fio de cima e convida, vem!. Eu atravesso, também o pai e minha irmã. Minha mãe fica olhando desconsolada. Vem, Dora, vem. Ai, eu não consigo, isso é aventura demais, se meter em arame farpado é muito pra mim. Eu fico aqui esperando, podem ir, eu sento aí na pedra e espero vocês voltarem. Eu e minha irmã tentamos convencê-la, tá perto, vamos lá ver, ela irredutível.


Meu pai saiu dessa terra aos doze anos e por décadas descreveu os veios das pedras da caverna, a textura lisa, a alegria do menino que brincava ali. Era vital voltar. Minha mãe nunca foi de aventuras radicais, urbana até o último fio de cabelo. Toda aquela terra já tinha sido emoção demais. Empacou, dali não ia sair. Daí meu pai. Olhou pra ela e disse com os olhos mais brilhantes do mundo. Vem comigo, eu preciso que você veja.


Ela suspirou. E foi.

E nossa trupe improvisada chegou às cavernas lindas de pedra rosada, branca, cinza e negra.

 

MARÍLIA GONÇALVES é escritora e cozinheira.


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