- A Cabocla Fabíola -
O poeta não era poeta. Um simples vendedor: era assim que ele se apresentava. Quando perguntado sobre as suas músicas, cantadas na Tv por uma beldade impossibilitada de sair de casa durante a quarentena, ele desconversava. “Sorrisos e afagos” era o nome da pet shop onde José resolvera se empregar a fim de se ver livre do sucesso. José vendia de coleiras a brinquedos que mais pareciam artigos eróticos! Feitos sob a medida exata das dondocas do Rio de Janeiro, e dos homossexuais que faziam parte do seleto grupo de clientes para quem José ainda soava como um fetiche, ele odiava-os. Isto porque, para sempre, para José, ‘parecer ser’, até sob anonimato sempre fora o mais importante. Ele precisava desesperadamente se sentir consumível. Já o dono da pet shop raciocinava que a plena potência de um macho alfa era mesmo só o que podia levar à compra daquelas futilidades. E o dono ria um riso solto, alto bem a fim da fortuna que vinha a fazer…
Desde a liberação dos shoppings, o retorno às vendas vinham sendo, para José, um acontecimento mais excitante do que jamais fora toda a sua vida. Sob aquele anonimato forjado, e a fim de evitar a doença, decidido estava ele a não pegar nem ônibus nem metrô. Para isto, contudo, deveriam ser antecipadas suas saídas de casa. A sofreguidão enlatada em um ônibus, que ele chegara a supor necessária, aos poucos, cedia lugar a um vento que transformava os instantes. Uma brisa afeiçoada ao ritmo cadenciado onde revoadas de pássaros obedeciam a um bailado cósmico. Ele re-aprendia a se divertir com as borboletas, os peixes, e até com os sinais de trânsito que agora pareciam abertos só para ele passar.
No caminho: Não — A devoção de uma fiel devota à imagem de uma Santa, Nossa Senhora Aparecida, não poderia ser mais terna. Não para ele. Nunca, jamais. Se bem que, envidraçadinha, a estátua fazia descansar o caminho. Mais uma promessa do que uma mulher, a devota também pensava assim: “Deus nosso que estais no céu abençoai este homem que passa”. Rezava a bendita.
E também: — "Será que aquele pode ouvir os meus pensamentos?! Parece que ele me segue! Se bem que nele parecia crescer isto exatamente: um desejo ferrenho por ficar ao meu lado… Mas Deus, será que ele não seria um niilista?!”
No retorno para casa o mesmo se sucedia. José sentia, então, no coração, um comichão que o nutria, e não apenas de sonhos. Até o dia seguinte, pelo menos, quando ele precisava ver a devota a rezar novamente. Seria aquilo amor?
Por uma semana, José assentou-se no hábito de olhar a devota à distância. Na segunda semana, ele remoçado ficou… aquilo era a consequência da prática constante de exercícios físicos?! Sob nenhuma hipótese, o desejo de rever a Santa ele conseguiria tornar consciente enfim. Em uma daquelas madrugadas de quarentena, ele desejou rever a Santa, e a devota. E ensaiou desenhá-las. Mas no desenho, a negritude da Santa lhe pareceu não apenas estranha… pareceu, digamos, até ofensiva. A Santa não podia ser negra! Na segunda semana, José reparou bem, e viu que a Santa era, de fato, negra, e delicada… Mas isto não cabia em seu pensamento. Negra, negra sim! Pois bem, ele definitivamente não queria ver: que além de negra, ela era humilde…
Isto, estes pensamentos todos… o tornavam um cafajeste! Na terceira semana, José passou pela imagem, e sentiu ojeriza. De imediato, ele não entendeu o porquê de sua ojeriza: a imagem permanecia delicada, e a devota continuava a rezar. Mas José não conseguia sentir qualquer respeito por aquela representação mais. Com a visão turvada, ele não conseguia enxergar o óbvio: que ele sofria de racismo simbólico. Veja: Só no instante em que ele pensava mal dela, que ele se via capaz de recobrar a lucidez.
“Por que Deus este homem quebra a vidraça, e vem para cima de mim com cacos de vidro?” Este foi o último pensamento da devota. Cruelmente assasinada por José, sua alma virou luz, e desapareceu. Já as árvores, as borboletas, os postes, e os carros passaram para um tom de cinza inigualável. Sob o efeito de uma surdes beneplácita ele passava a gozar um gozo suavíssimo.
Se José tivesse uma terapeuta, ela decidiria que o problema foi ele não ter conseguido verbalizar a sua ojeriza. Por isto, a alva negritude da Santa permanecera lhe causando tanta angústia… Na volta para a casa, José dividira com os rapazes com quem morava o dinheiro da devota. O corpo desta, por milagre, não se decomporia jamais. Pelo corpo José passava todos os dias, e sempre que podia pegava um pedaço dele para comer. Assim foi o longo processo de antropofagia junto ao qual José se via, e não se via, livre da sujeira que era ele mesmo. E o que aconteceu então? José se viu alçado ao posto de General por bravura sob indicação do Exército. Isto no ano de 2020, quando uma legião de assassinos decidira governar o país.
A Cabocla Fabíola é um dos pseudônimos da Professora de Filosofia (RJ) e Escritora Fabíola Menezes de Araujo. Fabíola foi uma das vencedoras do Concurso Literário de 2020 da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares.
A leitura deste conto me evocou um outro, de Thomas Mann, em que o tolo frágil e misantropo Tobias Mindernickel esgana o único ser que o amava de verdade: o seu cão. O José desta história se assemelha muito ao Mindernickel, sem sombra de dúvida, assim como o Brasil aí retratado é uma versão muito piorada - porque sua população tem uma educação muito mais precarizada - da Alemanha tomada por assassinos de que Thomas Mann teve de se exilar.