-SANDRA CUREAU
Ainda ontem eu tinha 16 anos e acabara de concluir o ensino básico no Ginásio Santa Terezinha, em Porto Alegre, fundado e dirigido por Irmãs Franciscanas, que, em 1970, fundiu-se com o Colégio São João Batista, seu vizinho.
Ainda ontem, eu era aprovada no exame de seleção para estudar no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, chamado, à época, de “Colégio Padrão do Estado do RS”, em razão da excelência do seu ensino. O fato de ser aluna do “Julinho” (como era chamado por nós) iria modificar completamente a minha vida e o meu modo de ver o mundo (mas então eu nem desconfiava disto). Era apenas uma adolescente, ingressando no curso Clássico, que depois foi fundido com o curso Científico e tornou-se o que hoje é o Ensino Médio.
Ainda ontem, nos primeiros dias do novo colégio, uma amiga convidou-me a conhecer o Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, cujo presidente era irmão dela. Eu nunca tinha tido contato com a política: meus pais eram apartidários; o ginásio das freiras era conservador e esse tema não fazia parte da grade escolar. Vivíamos a década de 1960 e o rompimento com os padrões tradicionais de comportamento, que especialmente buscavam a emancipação da mulher, apenas começavam a ganhar força.
Então, ainda ontem, eu ingressei no movimento estudantil, do qual nada sabia, e passei a conviver com colegas da minha idade que dele sabiam tudo e lutavam por um país mais justo e mais igualitário. Mais do que pensar em igualdade, meus colegas procuravam tornar possível o acesso dos estudantes a atividades culturais e esportivas, bem como a projetos de assistência. Como parte desses projetos, durante anos, o Grêmio Estudantil manteve e gerenciou, no próprio colégio, um restaurante que fornecia jantar aos alunos do turno da noite, oriundos das camadas socioeconômicas mais baixas e que trabalhavam durante o dia.
Eu não tinha nem 18 anos de idade, e a maioria dos meus colegas de militância também não, quando setores conservadores da sociedade brasileira, aliados a lideranças militares, apoiados e financiados pelo governo dos Estados Unidos(2), derrubaram o presidente da República legitimamente eleito e implantaram um regime de força no Brasil. Estávamos em 1964.
Então, começaram a se sentir mudanças. Professores eram levados presos desde o próprio ambiente escolar, alunos do colégio desapareciam. Com a instauração do regime de exceção, que duraria 21 anos, nos defrontamos com a prática da “deduragem”, típica dos regimes nazifascistas, com o surgimento da figura dos “infiltrados” no movimento estudantil. Estranhamente, o padre que exercia as funções quase que de capelão do Colégio Júlio de Castilhos, figura insignificante e praticamente invisível, encontrou nesse clima ditatorial algo que o tornaria lembrado, ainda que longe das pregações cristãs: encarregou-se de cooptar estudantes da escola para a “nova direita” e incentivar a delação. Sempre houvera um grupo de direita no Colégio, que disputava – e nos anos 1960 sempre perdeu – as eleições anuais para Presidente do Grêmio Estudantil. Entretanto, a figura do capelão, na sua “ofensiva contra o comunismo”, deu novos contornos à luta imaginária que se travava nas salas de aula do colégio. Jovens alunos ingênuos não duvidavam de suas palavras: era preciso acabar com a ameaça vermelha.
No âmbito nacional, conforme sabem, em especial, os que viveram aqueles tempos, o regime militar fechou os partidos políticos existentes e criou dois novos: o do governo e o da oposição. Parlamentares tiveram seus mandatos cassados, muitas vezes apenas para que o partido que apoiava o governo alcançasse maioria no Congresso Nacional. Funcionários públicos foram expurgados, militantes políticos, presos, muitos torturados e mortos, vários exilados.
Ainda ontem, naquele ano de 1965, a direita finalmente venceu as eleições para o Grêmio Estudantil. Ainda ontem, conclui meu curso Clássico no Colégio Júlio de Castilhos e, em 1966, fui aprovada no vestibular para o curso de Direito da UFRGS, não sem o auxílio dos ensinamentos dos meus excelentes professores.
Ainda ontem, mas ontem mesmo, em 2022, eu encerrei a carreira de Subprocuradora-Geral da República, depois de 45 anos de atividade, durante os quais sempre procurei manter a coerência com os meus valores e o meu compromisso de fazer deste país um lugar em que cada indivíduo possa sentir-se cidadão e possa viver com o respeito e dignidade que merece. Esse, ainda ontem, foi o nosso propósito de juventude daqueles anos 1960 no movimento estudantil do Colégio Júlio de Castilhos; propósito que nada tem a ver com “ser comunista”.
Ainda ontem, quase hoje, pude ver, perplexa, nesta cidade que escolhi para viver – centro das altas decisões nacionais –, um 8 de janeiro em que se tentou o retorno àquilo em que se constituíram os medonhos anos de exceção iniciados em 1964, agregado agora a todo um anacronismo de concepção no que concerne a valores, atitudes discriminatórias e à autodeterminação das mulheres.
1 Título inspirado na música Hier encore, de Charles Aznavour.
2 A respeito, Loureiro, Felipe Pereira. A Aliança para o Progresso e o governo João Goulart (1961-1964): Ajuda econômica norte-americana a estados brasileiros e a desestabilização da democracia no Brasil pós-guerra. São Paulo: UNESP, 2020.
SANDRA CUREAU – advogada, subprocuradora-geral da República aposentada, associada e membro da diretoria da APRODAB, associada do IBAP, autora e coordenadora de livros e artigos sobre direito ambiental, direito do patrimônio cultural e direito eleitoral.
Sandra, seu texto superficialmente simples tem a força de comunicar anseios e lutas marcantes por um país mais justo.
Texto emocionante. Que consiga hoje mover muitas pessoas.
Parabéns! Texto poético, muito pungente e necessário, nestes tempos de ascensão de uma extrema direita violenta, em que sequer existe o pretexto fantasmagórico da URSS. É preciso lutar sempre pela democracia. A cadeia do fascismo está sempre no cio