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PASSADOS CINCO ANOS, COMO ESTAMOS?

  • Foto do escritor: Revista Pub
    Revista Pub
  • 26 de mar.
  • 4 min de leitura

-SEBASTIÃO STAUT-


Foi em abril de 2020.


 Lá se vão cinco anos desde que eu, família, gatos, um notebook e uns tantos livros, nos preparamos para uma temporada larga de recolhimento e isolamento na casa de campo, franjas da Serra do Japi, interior de São Paulo. Umas sete léguas, como diriam os muito antigos, da Capital.


Acervo pessoal do autor
Acervo pessoal do autor

Foi um tempo do qual ninguém, creio, tem muita satisfação em lembrar. Recrudescimento da pandemia de COVID-19, isolamento social, governo de terrível memória, gestão caótica da saúde, profusão de fake news, incertezas, receios, caos nos hospitais. Um cenário para lá de nebuloso e, para muitos, diretamente afetados pela doença, desesperador.


Hoje, um lustro depois, encontro-me novamente na mesma casa, porém num panorama muito diverso. Sem pandemia, sem governo militar disfarçado, desfrutando um fim de semana de sol, almoçando com familiares e amigos.


Foi incontornável lembrar-me de como estávamos nesses tristes dias passados, tão recentes sob um prisma histórico. Se é que estamos aliviados, e com razão, estamos também decepcionados com muito do que veio, ou que não veio, depois dessa pandemia. A nova humanidade, o ser humano em nova perspectiva, definitivamente não chegou.


E foi nesse quadro que eu localizei, aqui no notebook, um artigo então escrito por mim para esta mesma Revista PUB, em plena pandemia, há cinco anos. Uma reflexão sobre aquele momento, quando eu ainda estava pleno de insegurança acerca de como terminaria aquilo tudo.


Achei oportuno reproduzi-lo agora, quando eu mesmo quase não me lembrava de tê-lo escrito. Considerei interessante resgatar alguns de meus sentimentos desse período. Espero que a paciente leitora e o indulgente leitor possam também aproveitar algo desse registro.  


E DOUTOR PANGLOSS, DESTA VEZ, FICOU EM  SILÊNCIO 


É conhecida, se não de todos, ao menos dos amantes da literatura, a figura do Dr.Pangloss.

Personagem destacado da obra Cândido ou o Otimismo, de Voltaire, notabilizou-se por,  malgrado as piores e mais desastrosas situações que porventura enfrentasse, o fizesse sempre com notável espírito de resignação e esperança, Não havia percalço, infelicidade ou mesmo desastre que o demovesse de sua firme convicção de positividade.


Para o dr.Pangloss estavamos sempre no melhor dos mundos possíveis.


O fervor do otimismo resignado do doutor Pangloss pode ser aferido em sua plenitude quando, no citado romance, após uma sequência de infortúnios e mesmo após ter sido feito náufrago, juntamente com seu aluno Cândido na Lisboa atingida pelo histórico terremoto de 1755, a tudo atribuiu o efeito necessário da vontade de Deus para que este, em que vivemos, pudesse continuar a ser “o melhor dos mundos possíveis”.


Doutor Pangloss não era um iletrado, um parvo, um ignorante. Muito pelo contrário, era conceituado e erudito professor, ao qual fora confiada a educação de Cândido desde sua juventude, no castelo da Vestfália. Suas sentenças filosóficas e seu notável estoicismo repercutiram na história, a ponto mesmo desse seu comportamento tornar-se um verbete. O Dicionário Priberam de Portugal, como exemplo, assim o define: pan-glos-si-a-no (Pangloss, antropónimo-iano) adjectivo 1. Que é relativo ou se assemelha à figura literária do doutor Pangloss do romance satírico Cândido, de Voltaire (1694-1778). 2. (Por extensão) Optimista.


E por não ser assim qualquer um, um otimista qualquer, como aqueles chatos que tão comumente se encontra por aí (e que não merecem maior crédito, sobretudo quando acham que “torcer” por algo ou contra algo é não só um fator determinante do destino da humanidade, como também um elemento definidor do caráter alheio) é que resolvi, em busca de uma luz animadora, de um alento, pedir  ao doutor um parecer sobre a situação da pandemia provocada pelo novo coronavírus aqui nas nossas brasileiras paragens.


Como doutor Pangloss, já entrado em séculos, não mais viaja, assim como não tem cadastro em redes sociais ou assina jornais em meio digital (hábitos antiquados que contudo não lhe retiram o reconhecido saber filosófico) tive de traçar para seu melhor conhecimento um breve panorama de atualidades aqui do nosso Brasil. Acreditava vivamente que, para meu alívio, após a narrativa, seria brindado com a frase da boa esperança: estamos no melhor dos mundos possíveis.


Disse então a ele que, em razão de uma terrível pandemia, estávamos todos confinados, ou melhor, alguns, posto que outros não o faziam por necessidade e mais alguns tantos por ignorância. Disse ainda que falsas mezinhas ou poções eram recomendadas por altas autoridades, com efeitos semelhantes à sangria ou à aplicação de sanguessugas tanto usadas em seu tempo.


Falei que, por paradoxal que parecesse, uma floresta úmida, a Amazônia, já a seu tempo conhecida como um Eldorado, ardia em chamas, como da mesma forma queimava uma região antes alagada, o Pantanal.


Disse que estávamos recuperando, em nome da manutenção da saúde, péssimos hábitos, como o transporte individual em veículos. Falei que os parques estavam fechados, que ninguém mais se abraçava e que um beijo roubado poderia ser tipificado como tentativa de homicídio.


Viajar, então, era de todo contraindicado, além de, em várias situações,  impossível, pois não éramos bem quistos no estrangeiro.


Lembrei ainda de dizer a ele que as crianças não iam mais à escola, que as casas de concerto estavam fechadas, que proibidas estavam as festas juninas, que não haveria Carnaval, embora fosse possível comprar um despertador chinês barato ou um relógio falsificado no comércio popular, que estava aberto e repleto de crianças acompanhadas dos pais.

 

Continuei, narrando que não se viam mais sorrisos pelas ruas pois todos, além de naturalmente tristes, andávamos mascarados, malgrado a proibição do Carnaval.  Segui dizendo que aos milhares se mediam os enlutados e os contaminados pela doença, cuja cura ainda era só possibilidade, mas que ainda assim subia a popularidade do governo...


Disse a ele enfim, em desabafo, que me perdoasse os termos, mas que estava farto, de saco cheio mesmo, e que esperava que ele, mais uma vez, infalível, jogasse sobre mim, sobre nós todos, o bálsamo de sua sentença inelutável. O alívio que tato precisávamos.  Lancei, afinal, a retórica pergunta:


- E aí, doutor Pangloss, estamos mesmo no melhor dos mundos possíveis? 


Sempre cordato, o doutor, para minha surpresa (e creio que para a surpresa geral dos que conhecem o personagem) pediu-me que, em virtude da pletora de fatos narrados e da singularidade da situação  aguardasse uma resposta, que ele em breve me mandaria por escrito.


Até hoje não veio.


 

Sebastião Vilela Staut Júnior é advogado, Procurador do Estado de São Paulo aposentado, associado do IBAP e contista/cronista acidental. Publica sua coluna mensalmente todo dia 26.




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