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O QUE É SER FELIZ

-MARÍLIA GONÇALVES-


Ilustração - Marina de Bonis

Naquelas sextas sempre havia bacalhau. Mesmo quando éramos quase pobres, minha mãe tinha o dom de cozinhar banquetes. Nunca pobres o bastante para receber merenda de graça na escola. Não esse tipo de pobreza. Uma vez por semana tinha o dinheiro trocado para comprar o lanche escolar e eu sempre queria o pão com carne moída. O molho de tomate com a carne amoleciam o pão francês e eu ia mordendo pelas beiradas, devagarinho, uma delicia. Nos outros dias carregávamos os lanches de casa, todos deliciosos. Não raro eu fazia escambos, o sanduíche de berinjela com cebola e salsinha era muito disputado. Eloá dividia uma carteira comigo e adorava fazer trocas. Acho que ela queria ter uma mãe que cozinhasse como a minha. E adorava as maçãs que eu levava às vezes, maçãs tão azedas quanto deliciosas. Eloá mordia fazendo caretas, divertida. Era a única negra da classe, eu com minha cabeleira podada era praticamente branca.

Aquelas sextas. Um domingo antes minha mãe ia à missa e voltava carregada de palmas que enfeitavam a casa a semana toda. A alegria das flores alaranjadas se destinava a morrer sem dó na manhã da sexta. O rádio quieto, a TV muda. Eu que sempre tenho dentro de mim uma música trilha, todo dia, toda hora; na sexta a música não tinha permissão de sair e às vezes me escapava, era uma bronca danada. Pecado, Jesus morreu. E aquela morte renovada todo ano. Quando saí de casa celebrei a semana santa comendo um cheese salada numa lanchonete no centro da cidade mas ao contrário do que planejei, não me fez nem um grama mais feliz. Ainda assim brinquei de não gostar de bacalhau por algum tempo.


Mas sempre tinha bacalhau. Às vezes escondido entre batatas, tomates, cebolas e couve troncha, as vezes nadando no grão de bico, cebolas e azeite.


Hora do almoço, família reunida, nada de alegre. A sombra de um Jesus morto pairava pela casa. Cantar não podia, dançar não podia, dar risada de jeito nenhum.


Nunca encontrei um momento exato para estar feliz.

Sempre a sombra de um Jesus morto.

Um sorriso de Eloá com fome de maçãs.

Alguém está prestes a definhar e morrer e eu não farei nada

Porque sou pouco mais do que nada sozinha.

Mas quase nunca estou sozinha

E uma alegria desavergonhadamente vadia insiste em me fazer cócegas

Enquanto eu rio de nervoso.

 

Marília Gonçalves é colunista da Revista PUB e escreve todo dia 25 de cada mês. É escritora e cozinheira.

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