Licença Ambiental ou consulta à natureza?
- Revista Pub
- 29 de mai.
- 5 min de leitura
-CARLOS MARÉS-
O Direito, e a sociedade capitalista que ele organiza, acha que a natureza é muda, submissa e que, se deixada sem intervenção humana direta, atrapalha a vida inteligente. Mas a partir do final do século XX ficou claro que a avassaladora destruição causa danos também à vida humana. Ficou claro, apesar de muitos continuarem intencionalmente de olhos fechados. Uma parte da sociedade, de olhos abertos, consciente e lendo os fenômenos, avançou na prática de um Direito que restringisse a ação humana para que não destruísse todos os seres vivos. Alguns por amor, chamados de ingênuos, outros por razão lógica, chamados de cientistas, outros por motivação ética, chamados de ambientalistas ou socioambientalistas, entendendo que acabar com os outros é acabar com a própria humanidade e que todas as formas de vida contam, passaram a postular que esses direitos à vida entrassem nas leis. Os dos olhos fechados continuaram a apostar no velho padrão colonial para tirar da natureza tudo o que pode ser chamado de riqueza. Apostam na devastação!
Essa disputa humana, interna à sociedade hegemônica, é vista com horror pelos povos, comunidades e grupos de gente que mantém sua vida próxima a outras vidas não humanas, como os povos da floresta, dos campos, das águas, dos manguezais, das montanhas e do mar. Mas a disputa continua sendo interna à sociedade hegemônica, capitalista, acumuladora de riquezas materiais.
Essa disputa tem se dado dentro do mundo das leis, chamado mundo jurídico, fazer leis, ou não fazê-las, interpretá-las, negá-las ou violá-las. Tudo, nesse mundo, parece existir na fluidez do discurso e no império da norma cogente e violada. Nesse mundo a violação da norma, e portanto a destruição, se compensa com um punhado de ouro. A aposta na destruição pode valer a pena. O fenômeno, a realidade, a vida, o sofrimento e o amor estão fora desse mundo e não entram nos atapetados escritórios onde isso se discute e decide. E é assim que o Direito é inventado, legislado e criado e aplicado segundo as regras não da sabedoria, mas dos interesses da sociedade hegemônica, normalmente para continuar ser hegemônica e para manter a acumulação da riqueza não viva.
Os ingênuos, racionais e éticos conseguiram grandes avanços a partir da segunda metade do século XX e instituíram no Direito algumas leis de proteção da natureza que os mais ousados chegaram a chamar de direitos da natureza. Entre esses instrumentos de proteção foi criada a Licença Ambiental. Nome estranho sob vários pontos de vista, mas aceito como um avanço legislativo. É uma espécie de licença para substituir a natureza por outra coisa, digamos assim, artificial. Na prática, é uma licença para destruir a natureza de um local, substituindo-a por uma utilidade humana. Essa substituição sem licença foi sempre a essência da prática colonial, com a licença, porém, estaria cercada de cuidados, precauções, prevenções e, em casos extremos, restaurações. Para uma sociedade que tem uma insuperável incapacidade de planejamento, que não é capaz sequer de organizar a produção de alimentos para todos seus membros e muito menos de distribui-los entre os que tem fome, que não é capaz de planejar o uso da água e que suja o mar, o ar e a água doce que necessita, certamente a licença significa um enorme avanço se for concedida com precaução e prevenção ao mesmo tempo que é um tremendo desafio porque, para essa sociedade da mercadoria, a licença poderia funcionar como uma tentativa de planejar a destruição limitada ao suportável.
Os acumuladores de riqueza, porém, e seus defensores coloniais, aqueles que se beneficiam ainda das falacias do século XVI europeu de que são superiores à natureza e aos outros humanos, acham um atraso essa tal de precaução e prevenção e mais ainda a restauração, e consideram um absurdo pedir licença. Como disse Chico Anísio no programa do Jô Soares, “acabar o mico-leão-dourado que falta vai fazer pra gente?” [1] E riu orgulhoso da própria ignorância. Essa concepção não se conforma com a licença ambiental e empreende esforços para anulá-la. E têm conseguido. Está em discussão, já provado em várias instâncias da Câmara dos Deputados e do Senado um Projeto de Lei que mitiga a necessidade e abrangência das licenças ambientais. O Projeto estabelece um autolicenciamento com só preencher um formulário, dispensa de responsabilidade os bancos financiadores de ações degradadoras do meio ambiente, dispensa qualquer tipo de licença para atividades que utilizam recursos naturais, despreza direitos de povos e comunidades tradicionais e desconsidera impactos em Unidades de Conservação entre muitas outras perversidades com os seres vivos da natureza. Na prática, anula a Licença Ambiental, ou, simplesmente, fica tudo autorizado.
Enfim, que importa o mico-leão-dourado, o sapo cururu, o caranguejo-uça, ou até mesmo o pinheiro araucária ou o mogno? Que importa a vida dos povos tradicionais, dos camponeses, dos pescadores, dos coletores? Que importa a vida das coisas se as coisas mortas valem mais?
Do outro lado da destruição, numa sociedade fraterna, como deveria ser tratado um licenciamento ambiental? Para quem se deveria pedir licença? A resposta parece fácil, a licença deve ser pedida diretamente a quem se irá importunar ou a quem está atrapalhando, bloqueando ou impedindo a passagem. Olhando mais de perto, licença é uma espécie de desculpa prévia para o mal que se pode causar, há que se pedir licença à natureza. Mas não ocorreria a um pensamento como expressado por Chico Anísio pedir licença ou desculpa ao mico-leão-dourado por destruir sua casa e sua vida (Chico Anísio poderia estar apenas tentando fazer piada, o que não faz muita diferença). Mas o mico-leão-dourado não é o único, embora talvez o mais belo, e belo é um critério estético humano, morador da casa. A própria casa é viva e é abrigada pelo mico-leão, além de abrigá-lo. Complexo mundo esse da natureza, e o único ser gentil que pede licença ou desculpas é o humano, mas também é o único que destrói para guardar no cofre parte do que destruiu e transforma a outra parte em sujeira perniciosa. Pensando bem, não se trata de gentileza.
Exatamente no caminho inverso do Projeto de Lei aprovado no Senado, a Licença Ambiental deveria ser uma consulta à natureza sobre sua possibilidade de receber o impacto da ação humana e, mantendo o próprio equilíbrio, continuar proporcionando vida a todos os seres. Mas como consultar a natureza se desaprendemos a falar com ela? Se já esquecemos suas múltiplas linguagem e as formas de se comunicar? Imaginemos tocar as costas de uma pessoa pedindo licença para passar e obtermos como resposta uma explicação gentil, mas numa língua totalmente desconhecida ao mesmo tempo em que a passagem não é franqueada. Qual seria a conduta recomendável? Avançar para o abismo por não conhecer a língua do gentil interlocutor, ou tentar entender a resposta para só depois recuar ou avançar com as cautelas que a situação possa exigir?
Se a natureza nos responde de forma ininteligível nos cumpre tentar entender, perguntando aos humanos que ainda não perderam a intimidade com plantas e animais. A licença ambiental não pode não ser outra coisa que uma consulta humilde à natureza para saber se ela suportaria a obra ou engenho humano que se pretende construir. E quem consulta tem que prestar atenção à resposta, entendê-la e agir de acordo, quem consulta tem que esperar o consentimento. É possível divergir? Certamente sim, mas com argumentos que estejam muito além da arrogância humana e seus interesses de acumulação de coisas mortas. Os argumentos têm que ser sempre pela preservação da vida, de humanos e não humanos. Quem tem dificuldade de entender a resposta, deve ser ainda mais precavido e prevenido, e ainda mais cauteloso. Para ir adiante há que se ter certeza de que o benefício será da vida de todos os seres da natureza, incluindo o humano.
Sobre o Projeto de Lei da nova licença ambiental, há que se perguntar ao Senado: Cui prodest? A quem beneficia?
Nota:
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Socioambiental da PUC-PR, é Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública - IBAP. Escreve todo dia 29 do mês.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Socioambiental da PUC-PR, é Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública - IBAP. Escreve todo dia 29 do mês.
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