-João Paulo Rocha de Miranda-
Em um final de semana de meados de julho, apesar de diariamente inebriado com os noticiários brasileiros, tive a inspiração para esta coluna enquanto caminhava pela calle de los suspiros, localizada na cidade uruguaia de Colonia del Sacramento, que fica a 180 km da Capital Montividéu e a 500 km da fronteira do Brasil. Fundada pelos portugueses em 1680, às margens do Rio da Prata, Colônia do Sacramento desempenhou um papel estratégico na luta contra os espanhóis. Disputada pelas duas coroas por mais de um século, a cidade finalmente caiu nas mãos dos espanhóis. Sua paisagem urbana bem preservada, solene, histórica e romântica ao mesmo tempo, é um mescla dos estilo arquitetônico português e espanhol.
A calle de los suspiros está localizada dentro do centro histórico, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1995. A rua nasce na Plaza Mayor e continua descendo até o Rio da Prata. É uma pequena rua estreita de estilo colonial e com predominância de características portuguesas. Seu calçamento de pedras é inclinado para o centro formando uma calha de drenagem. As casas, construídas na primeira metade do século XVIII, têm paredes de pedra, enquanto as telhas e pisos são de cerâmica. As portas e janelas são pequenas e de madeira. Com forte presença dos azulejos de estilo português e iluminado por lanternas presas à parede, esta rua é a mais preservada da cidade, mantendo praticamente seu estado original.
Até a década de 1940 esta rua era denominada de Ansina, sendo a partir de então conhecida como calle de los suspiros. Embora a razão para seu nome atual seja desconhecida, há várias versões, tanto de cunho romântico, quanto dramático, o que sempre alimentou lendas em torno desta rua. Alguns fazem alusão aos bordéis frequentados por marinheiros que suspiravam pelas prostitutas. Outros vinculam o nome da rua aos suspiros dos sentenciados à morte que eram levados até a parte mais baixa da rua para serem afogados no momento em que a maré subisse. Ainda há quem diga que esta rua era o rincão de encontro dos enamorados para suspirarem de amor. E a história mais trágica conta que em uma noite de luar, uma linda jovem apaixonada estava esperando seu amado, quando, de repente, um mascarado cravou em seu peito uma adaga, ecoando pela rua seu suspiro de adeus em seu leito de morte.
Embora já conhecesse a cidade e a rua, minha primeira visita durante o estágio doutoral, não foi tão significativa quanto esta última. Desta vez, diferentemente da primeira, na qual fui com amigos após um congresso em Montevidéu, tive o privilégio de caminhar sob suas pedras com minha família, suspirando pelas belezas cênicas de tardes de inverno ensolarado às margens do Rio da Prata.
Contudo, apesar desta pequena rua em declive nos convidar a nos surpreendermos com seus mitos, cores, cheiros e sons, a fim descobrirmos de onde vêm tantos suspiros, não tive uma boa surpresa. Diante de tanta beleza e passado, voltei à realidade e descobri que meus suspiros não eram de encanto, nem vinham do Sol de Maio, enquanto representação do Deus do Sol Inca, Apu Inti, na bandeira uruguaia, mas dos nossos próprios mitos, preocupações e o future-se da educação superior brasileira, se me permitem o trocadilho.
De antemão vale ressaltar que tais preocupações não são de cunho ideológico e/ou partidário, até porque não tenho partido, mas surgem do entendimento de que a educação é o eixo central para o desenvolvimento de um país em todos os seus aspectos. Dito isso, a educação não deve ser tratada como uma mercadoria, mas como um patrimônio, nem pode o Estado querer se desobrigar dos investimentos necessários às universidades públicas com a criação de um mero programa, como se fosse uma passe de mágica.
Desta forma, meus suspiros de preocupação surgiram com o anuncio do projeto intitulado de Future-se, que “busca o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e da gestão das universidades e institutos federais” [1]. Ou seja, tem o objetivo incentivar que as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) arrecadem dinheiro privado. De acordo com as informações divulgadas pelo Ministério da Educação, o Future-se irá trabalhar com a criação de fundos de investimentos e contratos de gestão com organizações sociais, as quais terão o direito também de atuar na administração de recursos e de patrimônios das instituições. Além disso, também haverá o encorajamento pela busca por recursos privados. Em troca destes investimentos, o programa possibilita a utilização econômica do espaço público e a permissão de renomear campi e edifícios das instituições de ensino em homenagem aos investidores. Além disso, a Lei Rouanet também aparece como opção para financiamento de espaços culturais ligados às universidades.[2]
Entretanto, a grande crítica ao projeto está relacionada à não participação da comunidade acadêmica na discussão e construção do programa e no medo de que as universidades comecem a ceder para conseguirem o dinheiro necessário [3]. Como ficaria a imparcialidade das pesquisas? E as inovações? Teriam que atender aos interesses dos financiadores ou ao interesse público?
A ciência não pode ser controlada pelo interesse do financiador, ela é um patrimônio coletivo da população brasileira, um bem por si mesma. “Se o financiamento à pesquisa for só do setor privado corremos um grande risco de, primeiro, não prestarmos atenção às populações mais vulneráveis e, segundo, não darmos a atenção devida à pesquisa pura”, da qual muitas das descobertas da ciência foram feitas, como comenta Cláudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV).[4]
Outra questão diz respeito à interferência da captação de recursos privados no investimento público. Isto porque o Future-se não pode desobrigar o poder público do compromisso financeiro com as IFES. Ao contrário do que o senso comum acha, “tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa, quem entra com a maior quantia de recursos nas universidades públicas é o governo. Não existe modelo de universidade pública bancada, exclusivamente, por iniciativa privada”.[5]
Certamente estas são apenas algumas das muitas questões pelas quais discentes, docentes é técnicos das IFES, bem como a sociedade em geral, estão suspirando neste momento e deverão continuar durante a consulta pública prevista até o dia 7 de agosto e sua tramitação no Congresso Nacional.
Espero que a participação da sociedade seja efetiva e possa moldar este programa no interesse público e não dos financiadores e que tenhamos no futuro suspiros profícuos pelo futuro das IFES e não suspiros de nostalgia por uma educação superior pública, gratuita e de qualidade, que tenha ficado no passado de outrora como as lendas da calle de los suspiros.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Perguntas e respostas do Futura-se, programa de autonomia financeira do ensino superior. Brasília, DF: Ministério da Educação. 22 jul. 2019. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=78351. Acesso em: 25 jul. 2019.
SERÁ que o projeto Future-se, anunciado pelo MEC, é mesmo uma iniciativa válida? Terra, São Paulo, 17 jul. 2019. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/purebreak/sera-que-o-projeto-future-se-anunciado-pelo-mec-e-mesmo-uma-iniciativa-valida,17bb23fb9c4a75b6aef12dd4aeff8cd7u26b7l84.html. Acesso em: 25 jul. 2019.
[1] Ibid.
[1] CERIONI, Clara. Cláudia Costin: Risco do Future-se é MEC parar de investir na universidade. Exame, São Paulo, 23 jul. 2019. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/future-se-traz-risco-do-governo-parar-de-investir-em-universidades/. Acesso em: 25 jul. 2019.
[1] Ibid.
Professor de Direito Ambiental da Universidade Federal do Pampa, Campus Santana do Livramento-RS. Advogado. Doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente. Mestre em Direito Agroambiental. Membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil - APRODAB. Escreve todo dia 28 de cada mês.
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