-MARIE MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA-
Os dois colegas conversavam, tomando a cervejinha naquele dia causticante, quando os marcadores do tempo indicavam um grau de umidade do ar que beirava o de um deserto.
Alfredo: “- quantas saudades dos gibis da infância, quando os heróis vinham e resolviam tudo...”
Roberto, que gostava de questionar tudo, perguntou: “Por que você tem saudade dos heróis? O que você acha que eles fariam agora?”
“Não sei”, disse Alfredo. “Inventariam alguma coisa...”
“Acha confortável depender de heróis, Alfredo?”
O diálogo teria prosseguido, mas o som barulhento de um movimento de pessoas abafou os pensamentos. Era um grupo que levava cartazes e desfilava pela avenida, acompanhado por carros da polícia, que lhe davam proteção e garantiam o fluir do trânsito nas duas faixas restantes da avenida. Mudou o assunto.
Alfredo passou a criticar aqueles a quem chamava de “baderneiros”, que vinham atrapalhar o sossego das pessoas.
“São sempre os mesmos 'esquerdistas', 'comunistas', que reclamam de tudo!”
“Você sabe do que eles estão reclamando?”, perguntou Roberto.
“Não sei. E nem quero saber... São uns preguiçosos, não querem trabalhar, devem ser sustentados por aquela cambada de vagabundos...”, diagnosticou Alfredo.
Roberto ficou imerso nos pensamentos. O que ele poderia responder a seu colega, tão determinado em suas convicções? Ficaria difícil explicar a ele que os heróis da infância se evaporaram no tempo. A vida real tem pessoas de carne e osso, que andam como os outros, pegam transporte público, comem, têm suas necessidades, sentem dor, calor, tristeza e alegria, não usam capas voadoras e nem espadas reluzentes que investem contra o inimigo feroz.
Os inimigos da infância também são diferentes. São também de carne e osso e gostam das coisas boas da vida, de preferência para si próprios. Nem sempre têm a cara feia (embora a beleza não seja um padrão homogêneo). Aliás, são muito vaidosos com a aparência. Na maioria das vezes, estão invisíveis, pois circulam de forma espetacular, voando em seus helicópteros a jato ou circulando em seus iates bem equipados. E gostam muito de seus aparelhos tecnológicos, que lhes informam sobre o resultado das operações em atividade direta ao redor do mundo, sem parar, pois as bolsas de negócios atuam acompanhando a rotação da Terra. O dia tem 24 horas e o tempo é dinheiro. E eles sabem avaliar o tempo na medida dos cifrões. Essas pessoas são visíveis para o restrito círculo daqueles bilionários que estão fora do alcance da maioria. Ficam presentes aqueles que os servem diretamente, pessoal de segurança, empregados domésticos. E confiam na presteza fiel dos seus gerentes de confiança, que transmitem as ordens, que são disseminadas entre seu império corporativo.
Roberto arriscou: “Você sabe, Alfredo, que apenas 1% da população detém a maior parte da riqueza no mundo?”
“E daí?” - respondeu Alfredo – “Ninguém pode mudar isto.“
“Não sei dizer, mas deve existir alguma forma”. E Roberto tomou alguns goles da cerveja geladinha, pensativo. Ambos trabalhavam com tecnologia da informática. Sentiam estar inseridos em atividade que ganhava espaço cada dia e que tinham que se adaptar e criar sempre novos programas. A sua aplicação era um enigma. Não sabiam a que serviam.
Tinha certa semelhança com o sistema de produção da época do filme de Chaplin, “Os tempos modernos”, apesar da diferença na tecnologia. No fundo, mesmo na informática, cada um produzia sua parte, mas não entendia o conjunto da produção e a sua destinação final. Quem conseguisse destrinchar isto, teria a chave da “grande mudança” na mão.
Continuaram ainda com a cerveja e algumas frases banais, pois era difícil conversar tendo ideias tão divergentes e, afinal, era necessário manter a harmonia entre colegas de trabalho. Despediram-se. Alfredo entrou satisfeito em sua casa confortável, pois tinha realizado o trabalho diário, que lhe rendia o salário satisfatório no fim do mês.
Roberto chegou a sua casa, cansado, sentindo um peso de inutilidade, pois tinha pressa. Sonhava em viver num mundo melhor também para os outros. Jogou-se no sofá e pegou um livro.
Estava num ambiente amplo, com ar condicionado, sem janelas, e computadores de última geração. Tentou entender o que era. Aos poucos foi notando. Estava num centro de operações de informática. E chegavam muitos dados, multiplicavam-se informações, números, contas, depósitos, registros de negócios, bolsas de valores, ações milionárias de empresas, dados sobre aplicações financeiras, crédito de juros e de amortizações de empréstimos fictícios a governos, vários governos, os números só cresciam, contas dos paraísos fiscais. Começou a juntar os dados nos vários aparelhos. Fez associação entre eles, havia uma sequência que tinha que desvendar. Procurou analisar. Conseguiu fazer as conexões, não era tarefa fácil. As senhas...Como estava difícil chegar nelas. Foi buscando a lógica provável nessa parafernália toda. Fez algumas tentativas. Conseguiu fazer algumas alterações. Estava ficando satisfeito.
“Que trabalhão inventei”, pensou Roberto. “Não vou desistir agora, que já cheguei até aqui.” O tempo passava, e ele continuava firme, apesar de cansado. Foi avançando. Pronto, mais uma alteração feita, ótimo. Alguns dados sumiram. Já eram duas da manhã. E prosseguia... Tentativa, erro, acerto, são as formas que aprendeu na área da pesquisa. Informática era pesquisa também, com algoritmos. Foi alterando, apagando, modificando, pesquisando, acertando. Tinha que fazer tudo rápido, pois estava em ambiente desconhecido e não sabia o tempo que lhe restava. Enfim, o final feliz, a glória, conseguiu desligar toda a parafernália que regia o movimento global das transações bilionárias que dominava o sistema todo! Agora entendeu o que era ser um herói, um herói cibernético!
No dia seguinte, Roberto chegou ao serviço com uma mistura de sensações. Sentiu-se culpado pelas ações em seu sonho. Mas seu sonho tornou mais necessário mudar a realidade.
Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é advogada e associada do IBAP
Este conto reproduz diálogos que mantive, ao longo de minha vida, com muitos Alfredos. Parabéns, Madeleine!