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ANTINOVILÍNGUA

Atualizado: 22 de jul. de 2019


-MAXIMILIANO KUCERA NETO-

“Mas, você se quiser pode cagar neste artigo

E se tiver poder pode cagar nesta

Constituição, que dá nada, que dá nada

Que dá nada, que dá nada.”

(Ian Ramil, “Artigo 5º”, Derivacivilização, 2015)


A literatura produziu muitas utopias e distopias, mas as primeiras nunca se materializaram na realidade. Na segunda categoria, tanto na ficção científica, com Eu, Robô (1950), de Isaac Asimov, e Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley, quanto na ficção clássica, com O Processo (1925), de Franz Kafka, O Senhor das Moscas (1954), de William Golding, Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradubury, e mais recentemente Submissão (2015), de Michel Houellebecq, há muito a investigar sobre os tempos atuais. Apesar das muitas omissões nos exemplos acima, somente uma seria absolutamente imperdoável, a de George Orwell, que não apenas nos legou A Revolução dos Bichos (1945), mas também o romance Nineteen Eighty-Four, ou 1984, publicado pela primeira vez em 1949, com um imaginário muito referente à sociedade atual.


Na trama de 1984, um governo autoritário faz uso de alguns instrumentos de dominação hoje bastante conhecidos e corriqueiros. Entre estes, a novilíngua, cujo modo de formação era mudar significados, ou condensar palavras, com isso restringindo o pensamento errático, que poderia conduzir à crimidéia, ou seja, o crime de pensamento, a ser evitado (crimideter). E a novilíngua se integrava com o duplipensar, que é a aceitação de duas crenças contraditórias, ou ter um discurso moralista e ser imoral, ou acreditar na própria sinceridade ao mentir, ou esquecer os fatos inconvenientes e substituí-los pela convicção de que os fatos são outros, ou alguma outra dissonância cognitiva. Não esqueçamos o dogma “dois mais dois é igual a cinco" (2 + 2 = 5), que comprovava a adesão ao duplipensar, muito bem retratado no curta metragem canadense Alternative Math (2018), do diretor David Maddox. Orwell não deixou escapar nem mesmo a internet, o Facebook® e a televisão – a lhe render homenagem no programa Big Brother –, combinados na teletela, e “raspou” a teoria terraplanista, talvez por julgá-la retrógrada demais.


A novilíngua e o duplipensar assaltaram a realidade, mas há reação! Ao ouvir o cantor e compositor gaúcho Ian Ramil, que recebeu em 2016 o premio Grammy Latino pelo melhor álbum de rock em português, (Derivacivilização, 2015, Escápula Records), uma breve epifania sobre possíveis antídotos para a novilíngua, coadjuvante do duplipensar, veio com a inusitada composição Artigo 5º, que toma, literalmente, a letra deste maltratado dispositivo constitucional para denunciar o desprezo dedicado àqueles conceitos, caros à civilização, nele expressos. Não se descreve música, portanto sugiro que o leitor escute a obra com os próprios ouvidos: (https://www.youtube.com/watch?v=Naio-Ha9_w0).


Acervo pessoal do autor

A linguagem é um dos instrumentos de poder, e é Pátria. Por que estamos vivenciando isso de “conges” e MCs Reaça, de semiletrados que promovem o desmonte estrutural e físico da educação e da ciência, suportando a elevação em rede nacional da cultura do estupro e até o desvalor da vida das crianças em veículos, e mais tantos outros fatos absurdos e obtusos que revelam uma escalada indomável contra a cultura e a civilização? O músico inspirado de Artigo 5º nos viu à deriva, mas agora estamos sob cerrada tempestade. A reação, possível e ao alcance imediato, foi dada por ele, cidadão de vinte e poucos anos rompendo com pudores de linguagem e expondo a vilania no poder. Tomando a premissa como verdadeira, como podemos permitir “cagar” na Constituição?


Pouco tempo atrás, quando esse vento torpe começou a soprar e não era possível, ainda, acreditar no pesadelo anunciado, poderíamos experimentar algum desconforto em ouvir “você se quiser pode cagar neste artigo e se tiver poder pode cagar nesta Constituição”, dito em antinovilíngua, sem travas morais contraditórias, sem relativismo ético e sem o duplipensar a inverter o pensamento lógico. Hoje, porém, o artigo/verso é uma descrição premonitória e irônica do atual momento – e já permeava a realidade quando composta a música, por certo – e daquilo ainda por vir, pois diante das demonstrações de desumanidade e obscenidade, não é mais permitido supor que a tormenta refluirá e alcançaremos formas mais livres, justas e equânimes de levar a vida, com prazer de usufruí-la, por mera intervenção mágica.


Um meio necessário para combater a onda totalitária anunciada pelas urnas em 2017 é o exercício da autocrítica. Quando perdemos o senso e passamos a permitir, de algum modo, condenações por convicção, baseadas em teorias exóticas, como “probabilismo” e “explanacionismo” - sem falar na do domínio do fato - abriu-se caminho para o desmonte das políticas públicas de defesa do meio ambiente, da agricultura sustentável, da previdência e assistência social, das finanças e do patrimônio públicos. Não conferimos suficiente importância ao discurso escamoteado com recursos chulos e dialética erística, a violência simbólica e a real. As possibilidades de resistência com base na linguagem e na argumentação ainda estão ao alcance, mas sabe-se lá por quanto tempo. A crimidéia esgueira-se entre as dobras desse novo cotidiano, que enaltece o macho virtuoso, WASP, o dito cidadão de bem – que Orwell denominou bempensante – e não estamos longe do ministério da verdade e cada vez mais próximos do lema do Partido: “Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força.”


Contudo, se nos tornarmos mais fortes com a experiência desse presente tenebroso, o será por não mais dar trégua à autocrítica, hoje uma obrigação da geração que combateu a ditadura, recriou a democracia e redigiu a Constituição, até criarmos um ambiente social e político onde “cagar na Constituição” seja apenas uma alegoria escatológica, uma permissão poética, e não algo tão cruamente literal.


 

Este artigo também foi publicado no volume 25 da Revista de Direito e Política - Ano XVII, de junho de 2019.

 

MAXIMILIANO KUCERA NETO é formado em Letras e Direito, atualmente é Procurador do Estado do Rio Grande do Sul.


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