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MINERAÇÃO EM TERRAS INDÍGENAS: AUTORIZAÇÃO PARA UM GENOCIDIO DE OURO?

Atualizado: 5 de dez. de 2023

- Ibraim Rocha -



O principal tem que cerca a proteção da posse indígena cuja a propriedade é do Estado Estado Federal, é como esse direito deve ser compatibilizado com os direitos das comunidades tradicionais, previstos na Constituição do Brasil, já que tais direitos sobre o território têm caráter essencial para as comunidades, impondo, no mínimo, diálogo prévio sobre eventuais decisões do Estado, como por exemplo, usando o instituto da consulta prévia.


O fiel da balança ainda não foi devidamente apreciado na proteção dos territórios indígenas, especialmente quando essa posse possa ser diretamente afetada pela ação estatal, prejudicando o seu uso tradicional, e como tal, violando um dever de proteção cuja obrigação é do Estado, por encerrar manifestação cultural que também se expressa de forma econômica. Na forma do art. 216 da CRFB, se destina especial proteção ao patrimônio cultural brasileiro, material e imaterial, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver, o que, permite afirmar, inclui o dever do Estado em proteger os modos diferenciados de posse da terra, que servem de suporte a grupos sociais diferenciados.


A característica ímpar da posse indígena que legitima o dever de reconhecimento da “propriedade” da União é constantemente reforçada na Carta Magna pelo contexto protetivo dos valores que ela encerra. Assim, o Capítulo VIII da CRFB, dedicado aos indígenas, em nenhum momento utiliza a palavra propriedade, mas salvaguarda essa posse étnica de diversas formas, como no art. 231, quando reconhece como “direitos originários” sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens, sendo estas terras inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis (art. 231, caput c/c § 4º). Aliás, a natureza das terras indígenas foi debatida com riqueza de detalhes pelo histórico voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Aires Brito, no julgamento da Petição 3.388-STF, onde se verifica, que a relação não é essencialmente de conflito entre domínio / propriedade.da União e posse indígena, mas como aquela serve a proteção desta posse diferenciada, cujo significado positivo, cultural e fraterno da demarcação das terras indígenas deve representar para a nação brasileira, iluminando o conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, revelando o espírito de uma posse singular. Declarou o Ministro: “um tipo qualificadamente tradicional, de perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a eles, os índios (“Anna Pata, Anna Yan”: “Nossa Terra, Nossa Mãe”). Espécie de cosmogonia ou pacto de sangue que o suceder das gerações mantém incólume, não entre os índios enquanto sujeitos e as suas terras enquanto objeto, mas entre dois sujeitos de uma só realidade telúrica: os índios e as terras por ele ocupadas. As terras, então, a assumir o status de algo mais que útil para ser um ente. A encarnação de um espírito protetor. Um bem sentidamente congênito, porque expressivo da mais natural e sagrada continuidade etnográfica, marcada pelo fato de cada geração aborígene transmitir a outra, informalmente ou sem a menor precisão de registro oficial, todo o espaço físico de que se valeu para produzir economicamente, procriar e construir as bases da sua comunicação linguística e social genérica. Nada que sinalize, portanto, documentação dominial ou formação de uma cadeia sucessória. E tudo a expressar, na perspectiva da formação histórica do povo brasileiro, a mais originária mundividência ou cosmovisão”.


Observando estes elementos normativo constitucionais, é evidente que o direito positivo brasileiro valoriza, segundo os ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana a especificidade da posse destas minorias e seu conteúdo cultural que o constituinte colocou em especial guarda nos artigos 215 e 216 da CRFB. A especificidade de direito subjetivo e a decorrente garantia, é reforçada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil no Decreto 5.051, de abril de 2004, cujo o Art. 14, alíneas 1 e 2, protege o direito de propriedade e posse das comunidades. E como um tratado de Direitos Humanos, assume a natureza jurídica de norma supralegal, conforme a interpretação fixada pelo STF desde o RE 466.343 e HC 87.585, julgados em 13.12.2008.


Ninguém pode negar que a Constituição Federal não veda expressamente a mineração em terras indígenas, já que o art. 49,inciso XVI define que compete exclusivamente ao Congresso Nacional autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais, entretanto, isto não significa que este possa autorizar, sempre e em qualquer condição, ou, de forma geral.


Logo, embora, sem causar estranheza, mas confirmando as trevas do governo Bolsonaro, quando o ministro de Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque anunciou nesta segunda-feira (4) de fevereiro, a abertura de terras indígenas para empresas privadas de mineração, em evento no Canadá, afirmando que os povos indígenas serão ouvidos, mas não terão autonomia para vetar a instalação de minas de exploração de minério, pois o caminho é abrir as terras indígenas para empresas de forma que, “traga benefícios para essas comunidades e também para o país”.[1] , ele simplifica o tema, como a Constituição não permite.


A natureza jurídica da autorização do Congresso Nacional sobre os limites de como e quando deve ocorrer a intervenção sobre o território indígena, inclusive, sobre a oitiva das comunidades indígenas, são questões ainda não enfrentadas em âmbito judicial de forma definitiva, e permanecem como objeto de discussão, o mais perto que ocorreu a discussão perante do STF, foi na Suspensão de Liminar nº 125 e voltou ao debate com a Reclamação Constitucional nº 14.404-MC-DF, ambas no caso da construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no estado do Pará.


Óbvio que mineração é diferente de exploração hidrelétrica, mas nunca é demais, lembrar, que neste caso a Ministra Ellen Gracie destacou no que concerne à alegada violação ao art. 231, §3º, da CF, que o art. 3º do Decreto Legislativo nº 788/2005 previu que os estudos citados no art. 1º são determinantes para viabilizar o empreendimento e, se aprovados pelos órgãos competentes, permitiriam que o Poder Executivo adotasse as medidas previstas em lei objetivando a implantação do aproveitamento hidroelétrico. Alertou, ainda, a ministra que os estudos estão definidos no art. 2º do decreto legislativo, o qual, em seu inc. IV, prevê a explícita observância do mencionado art. 231, §3º, da Constituição Federal; além do mais, os estudos de natureza antropológica têm por finalidade indicar, com precisão, as comunidades que serão afetadas, e, salta aos olhos que o olhar do STF foi claramente de assegura a oitiva sobre o aspecto do licenciamento ambiental de obras com relevante impacto ambiental.


Mas, há um dispositivo que não foi avaliado nestes casos, que é a expressa vedação da remoção dos grupos indígenas de suas terras pela Constituição, como previsto no § 5º, do art. 231 da Carta Magna, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.


Assim, se uma atividade, qualquer que seja, que ponha em risco a permanência da comunidade na posse de suas áreas, mesmo, assim, ela poderia ser realizada ? Mesmo com a autorização do Congresso Nacional? . Neste ponto, ocorre a inflexão, onde o tema do significado dos direitos humanos, como princípio fundamental da República, deve influenciar o caráter interpretativo. Nos casos extremos, em que se apresentam situações limites nos quais o valor da vida da comunidade indígena pode ser afetado de maneira definitiva, comprometendo a existência do grupo, mesmo, as competências do Poder Executivo, e de oitiva do Congresso Nacional, estão ambas submissas a garantir em todo o caso a permanência indígena, pois é evidente prevalece a vontade constitucional de preservar a posse tradicional, como direito fundamental.


Seguindo estas pegadas, compreende-se que quando o Supremo Tribunal Federal, a partir de distinções do caso Raposa Serra do Sol, destaca proteção constitucional a manifestação da posse das comunidades indígenas, considerando os elementos da especificidade da relação da comunidade com a terra, para permitir a garantia da efetividade do direito subjetivo a terra, como princípio fundamental, é porque o texto constitucional, jamais autorizaria um genocídio, mesmo a peso de ouro ou diamantes. Mineração em terras indígenas, dependendo da forma, local e meio pode resultar em destruição de um modo de vida, particular e diferenciado, e, isso não teria outro nome, que mão genocídio, portanto, não seriam os índios que se oporiam, mas sim a vontade constitucional, como deve ser avisado ao Ministro Bolsonarista.


A partir do voto do Ministro Barroso, Relator do Recurso Extraordinário 1017365, o plenário virtual do STF, considerou preenchido o requisito da repercussão geral para discutir a posse indígena, pois há flagrante risco da criação de precedentes “que fomentem situação de absoluta instabilidade e vulnerabilidade dos atos administrativos editados com âmbito nacional”. Pois a questão indígena “não se encontra resolvida ou ao menos serenada”, dai a necessidade de analisar a efetiva tutela constitucional dos direitos das comunidades indígenas à posse e usufruto das terras tradicionalmente ocupadas[2].


E o tema da mineração das terras indígenas, certamente está nesta senda, essencial um debate que paute a posse indígena como um direito a uma vida diferenciada e não assimilacionista, e não simplório, entre riqueza e pobreza, pois se exploração mineral fosse símbolo de riqueza e bem estar, não estaríamos chorando Mariana e Brumadinho.


 

Ibraim Rocha é Procurador do Estado do Pará, Doutor em Direito pela UFPA.



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