Paulo Velten
O título deste artigo faz uma referência ao anjo da história, uma imagem de um quadro de Paul Klee, a qual Walter Benjamin resgata para ilustrar a sua tese IX [II], sobre o conceito de história. Segundo Michel Löwy [III] é um de seus últimos escritos, um pouco antes de seu suicídio para não ser capturado, por ser judeu, pelas tropas nazistas que ocupavam a Europa nos anos de 1940. Esse é um de seus textos que provoca as maiores inquietações por dois motivos: o primeiro porque pareceria ser o prenúncio trágico de Auschwitz e Hiroshima, e o segundo porque é de uma atualidade impressionante.
Algumas observações sobre o anjo da história merecem destaque: ele olha para o passado e de lá, sopra uma tempestade tão forte que lhe enrijece as asas. Uma catástrofe sem tréguas amontoa escombros que crescem até o céu. No quadro o anjo da morte parece assustado, com olhos arregalados.
Recomendo aos incorrigivelmente otimistas por opção que parem sua leitura aqui, pois a pretensão deste artigo lhes azedará o dia. O objetivo deste texto é utilizar a figura referida pela tese de Benjamin para alertar contra a naturalização das tragédias ambientais que têm assolado o Brasil nos últimos anos. Além disso, visa identificar o anjo da história de Benjamin, ainda que sem maiores rigores literários, como o anjo da morte que sobrevoa insistentemente o Brasil nos últimos tempos, para ao final evidenciar os riscos que essa naturalização pode levar.
Tragédias sempre aconteceram e sempre foram relatadas na história da sociedade, talvez por isso podemos perceber uma tendência a sua absorção, como uma crença de uma “ordem natural das coisas” ou ainda, o destino. O fato de muitos denominarem até hoje a tragédia ocorrida em Mariana como acidente demonstra esta perspectiva, a ideia de matar uma das bacias hidrográficas mais importantes do Brasil parece não haver produzido uma comoção nacional, talvez porque o universo ótico – ou o que comumente denominamos com inconsciente coletivo – seja bombardeado diariamente por “catástrofes sem fim”.
Desgraçadamente acumulamos mais tragédias e o “amontoado de escombros” – fazendo alusão à obra de Klee – acumula-se cada dia mais. A tragédia ocorrida em Brumadinho, como exemplo, expressa bem uma catástrofe que poderia ser evitada se soubéssemos aprender com os erros do passado.
Nesse sentido, faltam palavras para descrever a sensação de coletiva à figura do anjo da morte da história narrada na tese IX de Benjamin. Por falta de uma expressão melhor, chamarei a expressão a imagem dos "olhos arregalados" do anjo da morte da tese IX de "ameaça mitológica". Esse detalhe serve para alertar segundo Lowy (2005, p. 90) para a necessidade de uma ruptura com “o vento do progresso” que era responsável pelos “escombros da destruição”.
O progressismo é uma quase unanimidade contemporaneamente. Esse progresso é sempre associado a um fazer “neutro” e sem consequências, como se fossem “eventos naturais irresistíveis”, a uma certa resignação quanto as suas consequências. Benjamin associava a necessidade do progresso com a propagada pelo nazismo. Novamente, profeticamente, ele afirmava a necessidade para abandonar essa perspectiva (LÖWY, 2005, p. 39) “[...] por um salto para fora do trem do progresso”. Após a queda do nazismo, vários trabalhos[IV] comprovam a vinculação das empresas de tecnologia de ponta que cooperaram com o nazismo e seus experimentos.
A ironia, ou o sarcasmo histórico, na sequencia transportou as vítimas do holocausto para o seu fim em trens, mas o que é mais impressionante na alegoria benjaminiana é constatar sua atualidade quando comparados com os desastres atuais, na medida em que o progresso está relacionado à figura do trem da Vale do Rio Doce.
Entretanto, em uma época em que a vida é relacionada a aplicativos e celulares, é quase impensável, quase uma ingenuidade que, em pleno século dominado pela tecnologia, advogue-se a ideia de um rompimento com ela.
Este artigo pretende fazer com que o leitor visualize, imagine, permita a entrada em seu universo ótico e imaginário, para então, quem sabe, associar Chernobyl, Fukushima, Mariana, Brumadinho, Barão de Cocais e tantas outras tragédias do cotidiano, como consequência do progresso e não como preços a serem pagos para obter o progresso.
Nesta perspectiva, a possibilidade de romper com o progresso é a possibilidade de romper com a passividade e o imobilismo político, com a inércia produzida pela transferência da responsabilidade na resolução da tragédia pelos instrumentos jurídicos e seu pseudomodernismo técnico processual que somente legitima a prática predatória da natureza.
Mais do que uma visão pessimista, o artigo é comprometido com a intenção de insuflar no leitor um espírito de inconformismo, estranhamento em relação ao progresso, chamar atenção para o fato de que todas as tragédias aqui citadas eram e são evitáveis.
Desse modo, hoje sabemos que os temores mitológicos de Walter Benjamin se confirmaram, com o nazismo, o anjo da história se transformou num anjo da morte tão cruel que suas premonições pareceram leves, contudo, repercutiram de maneira traumática no mundo todo.
Para finalizar, e para mostrar quão bem acompanhado estou nesse “espírito pessimista” cito uma palestra de Leonardo Boff [V], em que narrou um episódio no qual ele e o grande José Saramago palestravam conjuntamente, quando alguém da plateia gritou: “Saramago, você é muito pessimista! Ao que respondeu o gênio: “não sou eu meu caro, a realidade que é muito ruim”.
[II] Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele está representado um anjo, que parece querer afastando-se de algo que ele fita intensamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estendidas. O anjo da história tem seu rosto voltado para o passado, enxergando-o como uma catástrofe, que sem cessar, amontoa escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade tão forte que se emaranhou em suas asas a ponto de ele não poder mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós, completando a metáfora, podemos entender como a tempestade é o progresso.
[III] BENJAMIN, Walter: Aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” / Michael Löwy. Tradução de Wanda Nogueira Cadeira Brant, (tradução de teses) Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.
[IV] Giorgio Agamben em sua obra Homo Sacer (2002, p.152) demonstra a relação próxima entre o nazismo e a ciência médica da época, ele narra as atrocidades feitas utilizando os prisioneiros como cobaias humanas durante a guerra, além do julgamento dos médicos que participaram dos monstruosos “experimentos científicos nazistas”.
[V] Leonardo Boff recebeu no dia 06 de agosto de 2018 o título honorís causa na Universidade Federal do Espírito Santo, ocasião em que citou esse acontecimento em sua palestra.
Paulo Velten é professor no curso de direito na Ufes- Universidade Federal do Espirito Santo
Como o anjo previa, vivemos o pior do capitalismo. Muito bom!!
Uau belo texto... nos faz refletir no preço que já pagamos para um suposto progresso que na verdade trata se apenas do furto das nossas riquezas naturais, a biopirataria, loteamento da Amazônia, e a extinção do programas de proteção ambiental trarão novos desastres ... isso não é ser pessimista e apenas ser realista. 👍🏼
A arte sempre nos revelando o futuro! Excelente análise!!!