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O anjo da história

Atualizado: 5 de dez. de 2023


Paulo Velten


O título deste artigo faz uma referência ao anjo da história, uma imagem de um quadro de Paul Klee, a qual Walter Benjamin resgata para ilustrar a sua tese IX [II], sobre o conceito de história. Segundo Michel Löwy [III] é um de seus últimos escritos, um pouco antes de seu suicídio para não ser capturado, por ser judeu, pelas tropas nazistas que ocupavam a Europa nos anos de 1940. Esse é um de seus textos que provoca as maiores inquietações por dois motivos: o primeiro porque pareceria ser o prenúncio trágico de Auschwitz e Hiroshima, e o segundo porque é de uma atualidade impressionante.


Algumas observações sobre o anjo da história merecem destaque: ele olha para o passado e de lá, sopra uma tempestade tão forte que lhe enrijece as asas. Uma catástrofe sem tréguas amontoa escombros que crescem até o céu. No quadro o anjo da morte parece assustado, com olhos arregalados.


Recomendo aos incorrigivelmente otimistas por opção que parem sua leitura aqui, pois a pretensão deste artigo lhes azedará o dia. O objetivo deste texto é utilizar a figura referida pela tese de Benjamin para alertar contra a naturalização das tragédias ambientais que têm assolado o Brasil nos últimos anos. Além disso, visa identificar o anjo da história de Benjamin, ainda que sem maiores rigores literários, como o anjo da morte que sobrevoa insistentemente o Brasil nos últimos tempos, para ao final evidenciar os riscos que essa naturalização pode levar.


Tragédias sempre aconteceram e sempre foram relatadas na história da sociedade, talvez por isso podemos perceber uma tendência a sua absorção, como uma crença de uma “ordem natural das coisas” ou ainda, o destino. O fato de muitos denominarem até hoje a tragédia ocorrida em Mariana como acidente demonstra esta perspectiva, a ideia de matar uma das bacias hidrográficas mais importantes do Brasil parece não haver produzido uma comoção nacional, talvez porque o universo ótico – ou o que comumente denominamos com inconsciente coletivo – seja bombardeado diariamente por “catástrofes sem fim”.


Desgraçadamente acumulamos mais tragédias e o “amontoado de escombros” – fazendo alusão à obra de Klee – acumula-se cada dia mais. A tragédia ocorrida em Brumadinho, como exemplo, expressa bem uma catástrofe que poderia ser evitada se soubéssemos aprender com os erros do passado.


Nesse sentido, faltam palavras para descrever a sensação de coletiva à figura do anjo da morte da história narrada na tese IX de Benjamin. Por falta de uma expressão melhor, chamarei a expressão a imagem dos "olhos arregalados" do anjo da morte da tese IX de "ameaça mitológica". Esse detalhe serve para alertar segundo Lowy (2005, p. 90) para a necessidade de uma ruptura com “o vento do progresso” que era responsável pelos “escombros da destruição”.


O progressismo é uma quase unanimidade contemporaneamente. Esse progresso é sempre associado a um fazer “neutro” e sem consequências, como se fossem “eventos naturais irresistíveis”, a uma certa resignação quanto as suas consequências. Benjamin associava a necessidade do progresso com a propagada pelo nazismo. Novamente, profeticamente, ele afirmava a necessidade para abandonar essa perspectiva (LÖWY, 2005, p. 39) “[...] por um salto para fora do trem do progresso”. Após a queda do nazismo, vários trabalhos[IV] comprovam a vinculação das empresas de tecnologia de ponta que cooperaram com o nazismo e seus experimentos.


A ironia, ou o sarcasmo histórico, na sequencia transportou as vítimas do holocausto para o seu fim em trens, mas o que é mais impressionante na alegoria benjaminiana é constatar sua atualidade quando comparados com os desastres atuais, na medida em que o progresso está relacionado à figura do trem da Vale do Rio Doce.


Entretanto, em uma época em que a vida é relacionada a aplicativos e celulares, é quase impensável, quase uma ingenuidade que, em pleno século dominado pela tecnologia, advogue-se a ideia de um rompimento com ela.


Este artigo pretende fazer com que o leitor visualize, imagine, permita a entrada em seu universo ótico e imaginário, para então, quem sabe, associar Chernobyl, Fukushima, Mariana, Brumadinho, Barão de Cocais e tantas outras tragédias do cotidiano, como consequência do progresso e não como preços a serem pagos para obter o progresso.


Nesta perspectiva, a possibilidade de romper com o progresso é a possibilidade de romper com a passividade e o imobilismo político, com a inércia produzida pela transferência da responsabilidade na resolução da tragédia pelos instrumentos jurídicos e seu pseudomodernismo técnico processual que somente legitima a prática predatória da natureza.


Mais do que uma visão pessimista, o artigo é comprometido com a intenção de insuflar no leitor um espírito de inconformismo, estranhamento em relação ao progresso, chamar atenção para o fato de que todas as tragédias aqui citadas eram e são evitáveis.

Desse modo, hoje sabemos que os temores mitológicos de Walter Benjamin se confirmaram, com o nazismo, o anjo da história se transformou num anjo da morte tão cruel que suas premonições pareceram leves, contudo, repercutiram de maneira traumática no mundo todo.

Para finalizar, e para mostrar quão bem acompanhado estou nesse “espírito pessimista” cito uma palestra de Leonardo Boff [V], em que narrou um episódio no qual ele e o grande José Saramago palestravam conjuntamente, quando alguém da plateia gritou: “Saramago, você é muito pessimista! Ao que respondeu o gênio: “não sou eu meu caro, a realidade que é muito ruim”.


[II] Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele está representado um anjo, que parece querer afastando-se de algo que ele fita intensamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estendidas. O anjo da história tem seu rosto voltado para o passado, enxergando-o como uma catástrofe, que sem cessar, amontoa escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade tão forte que se emaranhou em suas asas a ponto de ele não poder mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós, completando a metáfora, podemos entender como a tempestade é o progresso.


[III] BENJAMIN, Walter: Aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” / Michael Löwy. Tradução de Wanda Nogueira Cadeira Brant, (tradução de teses) Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.


[IV] Giorgio Agamben em sua obra Homo Sacer (2002, p.152) demonstra a relação próxima entre o nazismo e a ciência médica da época, ele narra as atrocidades feitas utilizando os prisioneiros como cobaias humanas durante a guerra, além do julgamento dos médicos que participaram dos monstruosos “experimentos científicos nazistas”.


[V] Leonardo Boff recebeu no dia 06 de agosto de 2018 o título honorís causa na Universidade Federal do Espírito Santo, ocasião em que citou esse acontecimento em sua palestra.

 

Paulo Velten é professor no curso de direito na Ufes- Universidade Federal do Espirito Santo



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