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O BUSTO DA DISCÓRDIA

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-Carlos Frederico Marés de Souza Filho-



Flávio Suplicy de Lacerda foi ministro da Educação da Ditadura desde o golpe, em 1964, até 1966. Entre 1949 e 1971, excluído o tempo de Ministério, foi reitor da Universidade Federal do Paraná, a UFPR. Como reitor ostentava um vasto curriculum em construção de obras e criação de cursos, afinal foram 15 anos de reitoria. Ficou famoso, porém, como ministro, embora tenha exercido o cargo por muito menos tempo, é que inseriu em seu curriculum duas façanhas tremendamente negativas, mas com alto potencial de fama: primeiro, assinou o famigerado acordo MEC/USAID que abria as portas para o ensino público na América Latina se tornar tecnocrático, formalista, controlado e, sobretudo, pago; segundo, como uma das aplicações do primeiro, assinou a lei nº 4.464/64 para desestruturar as organizações estudantis, vigiar e espionar estudantes e professores, para punir, aplicando pena como se crime fosse, a "ausência coletiva às aulas" extensiva a professores e administradores que não punissem os estudantes faltantes e falantes contra o governo. A aplicação da lei resultou em prisões, desaparecimentos, mortes, demissões, proibições de matrículas e outras penas, enquanto durou a ditadura.


Esta lei passou para a história com o nome de Lei Suplicy. Eis sua fama. Foi, de fato, o ministro que preparou as maldades acadêmicas da ditadura, repressão aos estudantes e professores, universidade fornecedora de mão de obra mais ou menos qualificada para as pesquisas e desenvolvimento tecnológico da metrópole, fim de ensino de humanas, introdução de educação cívica, repressão, preparando o que seria a reforma universitária de 1968 (Lei 5.540/68).

É claro que o acordo MEC/USAID e a Ley Suplicy passaram a ser os principais alvos do movimento estudantil durante toda a ditadura, as bandeiras de luta do movimento. Aliás, apesar da dura repressão o movimento conseguiu barra a implantação do ensino pago e a universidade pública continuou gratuita. O nome do ministro era lembrado em todas as passeatas, manifestações e pichações, não por ele e pela diversidade de seu curriculum, mas pela lei que levava seu nome. As outras ditaduras da América Latina implantaram o acordo MEC/USAID incluindo o ensino público pago, vide o Chile. No Brasil, não! A ditadura não conseguiu vencer a resistência dos estudantes e, curiosamente, um dos principais centros de resistência foi exatamente Curitiba, e a UFPR, casa do ministro e reitor e que serviria de cobaia para a implantação. Não só de derrotas, portanto, viveram os movimentos sociais contra a ditadura.


Ocorre que alguns anos antes, em 1958, sendo Suplicy reitor, havia sido mandado confeccionar em bronze um busto em sua homenagem. Más línguas diziam, na época, que a Universidade, para obter o bronze, havia derretido todas as placas comemorativas e de homenagens afixadas pelas paredes, mas não deve ser verdade, nunca se provou nem se tentou provar. O fato é que o busto, obra do artista plástico Arlindo Castellani de Carli, era imponente e foi colocado na entrada exterior do prédio da reitoria de tal forma que o reitor/ministro pudesse se mirar em bronze cada vez que se dirigisse ao local de trabalho. O busto não era do ministro, mas do reitor. O reitor virou ministro, porém, e o busto virou o símbolo da lei repressora. Quem para ele olhava já não via o reitor, mas o sangue derramado pela repressão, via a lei que compartilhava com ele o nome. São os azares da vida. Ou melhor, a consequência das escolhas que se faz na vida.


O ano de implantação do ensino pago seria 1968. O movimento estudantil ganhava força em Curitiba, não só com passeatas, contestações, mas com ações de proteção da cultura, com produções teatrais, cinema, música, conferências, tudo o que a universidade, travada pelo acordo MEC/USAID, não fazia e não gostava que fosse feito. Isso mantinha os estudantes em permanente atividade e a discussão sobre o ensino pago animava os debates. Cada ato de repressão aumentava o movimento, cada prisão elevava o tom da discussão. Foi resolvido que uma grande mobilização contra o ensino pago seria feita. A começar pelos calouros. A anuidade foi imposta, mais de 90% dos ingressantes daquele ano requereram isenção e protestos começaram a ser realizados em todas as unidades da UFPR. O fervor foi crescendo a tal ponto que escolas foram sendo ocupadas em permanentes confrontos entra as forças da repressão, passeatas, discursos, agitando a pequena, provinciana, calma e fria Curitiba de 1968. Para culminar os estudantes ocuparam a reitoria. As palavras de ordem eram: abaixo o acordo MEC/USAID, abaixo a Lei Suplicy e contra o ensino pago. É claro que também se ouvia muito "Abaixo a Ditadura". MEC/USAID, Suplicy e Ditadura soavam juntos, como irmãos siameses e estavam escritos nos cartazes, nas paredes e na mente dos estudantes.

Do anúncio à prática, o imponente busto foi laçado, derrubado, pisado tal como se pisada estivesse sendo a própria ditadura. Os discursos eram inflamados e clamavam o ridículo daquela obra de personalismo que passara a simbolizar em bronze a repressão e o desmonte da universidade. Vitório Sorotiuk se destacava como brilhante líder estudantil. Era a revolta popular dos estudantes contra o ensino pago, mas também contra a ditadura, a repressão, o controle de sala de aula, o desprezo pela cultura, a lei repressora. Ficou o pedestal. O ensino pago foi retirado de pauta naquele ano e não voltou mais senão como uma ou outra intenção pontual e esporádica. Foi uma grande vitória do movimento estudantil. O pedestal sem busto era o símbolo da luta e da vitória.

Por isso mesmo, alguns anos depois, já ao apagar das luzes da ditadura, o busto foi reconstruído e retornou ao pedestal, sem a glória de antes, mas como um símbolo das atrocidades contra a liberdade de ensino, a liberdade de cátedra, a cultura. O busto em seu pedestal foi perdendo importância, passou a ser um mobiliário urbano a mais. É provável que quem passasse por ele nem sequer o reparasse. Não, não era bem assim! Muitos sabiam da história e se incomodavam com ela, afinal, ainda se convivia com as consequências da lei.

Demorou 30 anos para o movimento estudantil, liderados pelo Levante Popular da Juventude e outras organizações, agir contra aquele incômodo. Em 1º de abril de 2014, no que se chamou a descomemoração dos 50 anos do golpe de 1964, o busto foi novamente derrubado. Voltava o pedestal desnudo ser o símbolo da universidade livre. A memória existe e se mantém de geração em geração.

Em 2020, dezembro, durante a pandemia, com a universidade vazia e triste, nas sombras, o busto foi reconstituído e, pela terceira vez, recolocado no pedestal. Está lá agora, íntegro, para não deixar ninguém esquecer da história. Podem ser esquecidos os personagens, mas não os fatos. Pode-se até esquecer o nome do reitor, do ministro e da lei, mas não há de se esquecer da repressão e da violência praticada em nome da lei. O busto no pedestal é um incômodo, mas quem sabe fique lá, incomodando, até o dia em que uma autoridade sensata o tome tão somente como uma obra de arte e o aloque em um museu que faça o mérito do artista Arlindo Castellani de Carli e não do retratado que não traz boas lembranças a quem caminha pelas calçadas e corredores da Universidade, sejam setentões saudosos da geração do Vitório, sejam trintões da geração do Levante Popular, sejam as gerações que estão e estarão na Universidade. A memória não se apaga e os pedestais não carecem de bustos.

 

Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e associado da APRODAB e do IBAP.


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