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Aprendendo jornalismo com Wladimir Herzog 

  • Foto do escritor: Guilherme José Purvin de Figueiredo
    Guilherme José Purvin de Figueiredo
  • há 4 minutos
  • 8 min de leitura

-Guilherme Purvin-

 

Nunca será possível reconstituir a história de tudo o que vivi há meio século. Lembro-me de fragmentos, passagens descontínuas, imagens, sensações. Inevitavelmente confundo datas, reconstruo uma causa inexistente para explicar um efeito. Procurarei ao menos imprimir um certo cunho de verossimilhança nas recordações de meus dezesseis anos até o ingresso na São Francisco.


Em 1974, o presidente da república era um velho rabugento, muito parecido com meu avô paterno. Ernesto Geisel havia tomado posse fazia três anos e ainda permaneceria no poder por mais dois. O povo não ia com a cara dele, a maioria preferia o antecessor, Garrastazu Médici, que era identificado com a conquista do tricampeonato e com as canções do Jorge Ben (País Tropical), Gilberto Gil (Aquele Abraço) e Os Incríveis (Eu te amo meu Brasil).


Acontece que naquele ano o Brasil deu um vexame em Munique. Empatou com Iugoslávia e a Escócia, vencendo apenas o Zaire nas oitavas. Depois nos encheu de esperança ao bater os gigantes Alemanha Ocidental e Argentina, mas na semifinal tombou diante da Holanda. Consumando a péssima campanha, não levou nem o terceiro lugar, perdendo para a Polônia. A final ficou entre a Holanda (que nos havia desclassificado) e a Alemanha Ocidental (que havíamos derrotado). A anfitriã foi a campeã e a geração de meus pais, que ainda guardava na memória a luta contra o Nazismo, naturalmente ficou aborrecida. No ano seguinte, para piorar, Geisel firmava um polêmico acordo nuclear com a Alemanha, para a construção da Usina de Angra dos Reis. Aquele sobrenome, Geisel, não dava margem a dúvidas. Por esse motivo, meus pais, politicamente alienados como toda a vizinhança do Ipiranga, não gostavam do novo presidente. Nada a ver com ditadura. Ninguém sequer cogitava que o antecessor havia sido mais brutal contra os opositores. A questão era mais de torcida de futebol.


Esse era o nível de consciência política típico das famílias do meu bairro, dos pais de meus colegas do Colégio Cardeal Motta, dos frequentadores do Clube Hispano Brasileiro, uma classe média na corda bamba, com medo de ficar mais pobre, sonhando com um Aero Willys zero quilômetro e a perspectiva de ir morar num quarteirão mais alto, longe das inundações de verão do riacho do Ipiranga.


Em 1975, eu estava no Colégio Anglo-Latino, uma escola que sonhava em se apossar de um espaço público municipal, o Parque da Aclimação, dirigida por uma família com vínculos com setores monarquistas. Benjamin Arcuri, professor de História, havia fundado a Falange Pátria Nova, juntamente com os integralistas Arlindo Veiga dos Santos e Plínio Salgado. Aprendíamos nas aulas do Anglo Latino que a República havia sido um malefício para o país e que o único presidente que se salvava havia sido Campos Salles, não por acaso tio dele. O colégio era dirigido por seu filho Sérgio, o mais truculento de todos, ligado à Polícia Militar e ao Movimento de 31 de Março. Sérgio tinha por hábito subir numa mureta no intervalo do recreio e gritar a todos os pulmões para que os alunos se calassem e formassem fila para voltarem para as salas de aula.


Até então, eu sonhava em ingressar na Poli ou na FAU. Tinha duas paixões. Uma eram os circuitos elétricos, resistências, capacitores, transístores, alto-falantes e baterias. Gostava de montar rádios transistorizados, teclados de órgão elétrico, pisca-piscas. A outra era desenhar cidades, ruas, avenidas, viadutos e estradas em grandes folhas de papel estendidas sobre a mesa da cozinha. O que havia de comum entre Engenharia Elétrica e Urbanismo era que os dois ofícios lidavam com conexões — elétricas e viárias.

Meus pais tinham um pequeno apartamento no Canal 1. Ficava a menos de 50 metros da praia do José Menino. Na esquina com a Avenida Presidente Wilson ficava o Brumar, um bar e restaurante popular relativamente novo (havia sido aberto em 1968). “Adivinhem quem eu vi tomando caipirinha, na esquina? O Erasmo Dias” — dizia minha mãe, sem noção do perigo que era a simples menção àquele homem. Tratava-se do secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, homem forte do governador Paulo Egydio, legítimo representante do que havia de mais sombrio na ditadura militar. Eu, porém, só estava interessado em minha banda de rock, em circuitos elétricos e planos urbanísticos.


Naquela época eu começava a me interessar cada vez mais em realizar um novo tipo de conexões: não de ruas ou de correntes elétricas, mas de letras, palavras, frases, orações. Já fazia algum tempo que frequentava a banca de jornal do Carlos, um rapaz umbandista de 20 anos de idade com quem fizera amizade e que me deixava por vezes ficar tomando conta de seu estabelecimento quando ia tomar café num bar da Avenida Dom Pedro I. Por conta disso, acabei me tornando leitor assíduo do Rolling Stone, onde conheci o Mr. Natural, personagem de quadrinhos de Robert Crumb.  


Em setembro daquele ano, aconteceu de eu me reunir com alguns colegas do segundo colegial da área de exatas. Lembro-me ainda hoje de seus nomes: Cassio, Eloy, Marquinhos, Mônica, Paquito, Rosângela, Tânia, Tomás. Por influência do Cassio, um rapaz absolutamente inexpressivo, mas que se gabava de conhecer pessoalmente o radialista Ney Gonçalves Dias, resolvemos criar um jornal. Ney tinha alguma relação na época com a Faculdade Casper Líbero e Cássio traria uma entrevista exclusiva com ele. Eu cuidaria da datilografia. Trocamos ideias e decidimos batizar nosso projeto de “O Lixo”. O nome vinha da influência pelos quadrinhos de Crumb satirizando a sociedade de consumo norte-americana.


Mas os meus colegas do segundo colegial eram lerdos demais. Haviam enviado pequenos textos inexpressivos, dicas sobre como tirar manchas persistentes das roupas, sobre jardinagem ou sobre as perspectivas profissionais para quem pretendia cursar Engenharia Aeronáutica no ITA — nada que ocupasse mais do que meia página de papel datilografado. Então resolvi eu mesmo preencher as lacunas, redigindo uma crônica sobre os gritos do diretor Sérgio, a que dei um título horrível: “Os irracionais aulidos autoritários”. Escrevi também sobre a banda Aphrodite’s Child, de quem era fã ardoroso, mas se desfizera já fazia três anos.


Era sábado, dia 25 de outubro de 1975 quando eu, diante da máquina de escrever, datilografava cuidadosamente no estênsil, folha matricial para impressão mimeografada do jornal “O Lixo”. E então ouvimos os noticiários: o diretor de jornalismo da TV Cultura havia se suicidado na véspera, por motivo desconhecido. Aquela notícia me causou espanto. Lembrei-me imediatamente da aula de Literatura Brasileira na semana anterior sobre o Arcadismo e a morte do poeta Cláudio Manoel da Costa. Então, tomando todo o cuidado para não errar na datilografia, escrevi esta nota num espaço disponível da última página do jornal:


Quando terminávamos de fechar esta edição de estreia do jornal O Lixo, recebemos a notícia da morte do jornalista Wladimir Herzog.  


Na segunda-feira, levei as matrizes de estêncil para imprimir trinta cópias na papelaria da japonesa da esquina da Rua Muniz de Souza. No dia seguinte, voltei à papelaria, paguei pela impressão, grampeei os exemplares, quatro folhas impressas de um só lado, pois o álcool borrava o verso dos papéis e, emocionado com essa primeira experiência jornalística, saí distribuindo “O Lixo” na hora do recreio para os colegas da classe.


Não havia se passado nem meia hora quando fui chamado para a diretoria. Assustado, sem saber o que se passava, entrei na sala do Sr. Sérgio. O homem, com uma camisa branca abotoada até o pescoço, apertada a ponto de fazer com que os botões saltassem de suas casas, tinha um revólver sobre a sua mesa, do lado direito.


Você é que distribuiu isto para os alunos? — perguntou, agitando um exemplar do jornalzinho na mão. Respondi que sim, que era um jornal feito pela classe. Por toda a classe ou só por você? Não, eu não era o único autor, havia diversas colaborações. Por exemplo, o Caio havia trazido a entrevista com o Ney Gonçalves Dias. Não me interessa essa entrevista, quero saber quem escreveu que o Wladimir Herzog morreu. Essa notícia fui eu que escrevi, é que estávamos planejando entrevistar professores das faculdades de jornalismo. O Ney é da Casper Líbero, o Herzog era da ECA USP. Eu achei que a conexão era importante. E esse artigo sobre os latidos irracionais? Essa também era de minha autoria. A da banda Aphrodite’s Child também. Você vai me trazer todos, absolutamente todos os exemplares desse lixo para mim. Só foram impressos 30, professor Sérgio. Foram todos distribuídos. E não tem nenhum em sua casa? Para o seu bem, é melhor que você fale a verdade. Não, eu só tenho um exemplar meu. Você trate de pegar suas coisas na classe e volte para cá. Acabo de telefonar para sua casa e chamei seu pai para resolvermos isto.


Era o dia 27 de outubro de 1975. Subitamente eu começava a entender que aquela morte não era, evidentemente, um suicídio. Ninguém reagiria da forma como Sérgio Arcuri havia reagido diante de trinta folhas de papel mimeografadas e distribuídas para trinta alunos do segundo colegial de exatas. Meu pai apareceu no colégio por volta do meio-dia, sem entender a razão daquela convocação urgente. Teria o filho sido flagrado fumando maconha? Afinal, era plenamente sabido que o colégio estava incrustado no parque da Queimação, como costumávamos dizer. Mas não, a acusação era muito mais grave, dizia respeito a terrorismo. Ao saber que meu pai era natural da Rússia, o diretor compreendeu plenamente o quadro: família de comunistas soviéticos! Meu pai negou com veemência, nascera por acaso na “Rússia Branca”, não na “Vermelha”. E repudiava o comunismo, tanto que, como todos os jovens portugueses, foi alferes do exército e nunca se esquecera do Hino da Juventude Salazarista: Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim, pela voz do som tremendo das tubas, clangor sem fim. Saímos da sala com o compromisso solene de eu nunca mais escrever absolutamente nada e de recitar, ao final do ano, a Oração aos Moços, de Rui Barbosa. De cor.


Os colegas do jornal, chamados para depor, foram unânimes em dizer que toda a responsabilidade era minha. Ninguém havia autorizado a publicação do jornal, eu havia feito aquilo à revelia deles. E todos os textos com algum conteúdo contestatório haviam sido redigidos por mim. Prometeram solenemente não mais dirigirem a palavra a mim.


Em novembro, o jornal Ex- publicava um dossiê sobre a morte de Wladimir Herzog. Na capa, estampado em letras garrafais, o refrão de outro hino, o da República odiada por Benjamin Arcuri: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Tenho comigo até hoje uma réplica desse jornal.


No ano seguinte decidi mudar de área. Passei para o terceiro colegial de humanas, com aulas de Latim, Francês e Inglês, Literatura, Redação e Estilística, História e Geografia. No meio do ano, levado por minha prima Terezinha, fui pela primeira vez na vida a um teatro universitário, ver a peça “A vida de Galileu”, de Bertold Brecht, encenada por estudantes da Faculdade de Biologia da USP. Conheci então o diretor de teatro peruano Lino Rojas, com quem ela viria se casar. No segundo semestre, prestes a registrar na Fuvest minha opção por Jornalismo na ECA, aparece minha irmã em casa, acompanhada de três amigos da São Francisco: Caio Giannini, Márcia Holanda e Zé Roberto. Convidam-me para ir na noite de sexta-feira com a minha irmã a uma festa no Centro Acadêmico XI de Agosto. Vejo à direita das escadas que descem o porão da Rua Riachuelo dois barbudos de avental azul, Clóvis e Ronaldo, diante de máquinas impressoras, imprimindo jornais estudantis em escala cem vezes maior do que o meu pobre jornal do Anglo Latino. Então decido: é para lá que eu vou.


Manhã de sábado, março de 1977, conduzidos pelas veteranas Silvana Abramo e Doralice Sumida, entramos no XI de Agosto para decidir o nome do jornal do calouro. Umberto, Cássia, Tatuí, Freitas, Crivelli, Cristina, Beatriz, Lúcio, Mauro, Marisa, Brasinha, Flávio, Fátima, Luciana, Fritz, Marcelinho. Fazendo jornalzinho, imitando Herzog.

 


PS: Por vezes, sonho que meu diploma do Anglo Latino foi invalidado. É que jamais cumpri a determinação de decorar a Oração aos Moços.

 

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Guilherme José Purvin de Figueiredo, professor de Direito Ambiental e Procurador do Estado/SP Aposentado, é graduado em Direito e Letras pela USP, Doutor e Mestre, Pós-Doutorando junto à FFLCH-USP, desenvolvendo pesquisa no âmbito da Geografia, Literatura e Arte. Membro do IBAP. Escreve regularmente todo o dia 24 do mês.



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