- Carlos Marés -
Sete prisioneiros estavam no camburão do exército. Dois soldados muito jovens vigiavam, armados e tensos. Na boleia mais três militares. O camburão era seguido por um jipe com mais soldados armados de fuzis e metralhadoras. Juca tinha sido o último a ser preso e estava espremido entre um soldadinho e um prisioneiro. Ninguém falava. Na primeira parada os dois soldadinhos desceram e ficaram, de fora, apontando as armas: “Fiquem aí! Fiquem aí!” foi tudo o que disseram. Um dos prisioneiros disse baixo “Delegacia de Ñuñoa”. Foi tudo. Em poucos minutos os soldadinhos voltaram a subir e reiniciaram a marcha. Pressionados, explicaram que a delegacia estava lotada. Juca tinha alguma dificuldade com o idioma, mas entendeu que seriam levados para uma delegacia. Não sabia porquê. Depois da terceira tentativa de delegacias lotadas se depararam com um tiroteio. Não que estivessem atirando contra eles diretamente, mas ao dobrar uma esquina encontraram grupos trocando tiros. Deram a volta e desistiram daquele caminho, sempre sob as ordens vindo do jipe.
Pararam duas vezes para os militares conferenciarem. Ouviram dizer que precisavam desovar os prisioneiros rápido, estavam perdendo muito tempo com eles. Resolveram levar para o quartel dos carabineiros de Las Condes. Não puderam se aproximar do quartel porque havia resistência e o exército o tinha cercado e mantinha forte ataque. Juca entendeu o tenente dizer que precisavam se livrar dos inimigos e voltar para apoiar a ocupação do quartel. Sentiu a esperança renascer entre os prisioneiros, havia resistência ao golpe.
Andaram sem destino por muito tempo com algumas paradas indecisas em que os militares conferenciavam em voz baixa. Numa estradinha sem asfalto, visivelmente nervosos os soldados ataram vendas improvisadas nos olhos dos prisioneiros. Juca sentiu um cheiro desagradável de graxa velha e certo incômodo com o roçar do pano grosseiro na face, conseguia ver um pouco de luz, mas não sabia onde estava. Retirado do camburão foi conduzido pelos soldados a um ponto em pleno sol. Sentiu a seu lado um dos prisioneiros tão próximo que tocavam os cotovelos. Foi então que entendeu o que estava acontecendo, nesse exato momento sentiu o companheiro ao lado orar baixinho, jogou o corpo para trás e ouviu a voz forte do tenente gritar “fuego!”, perdeu o equilíbrio. Tudo ao mesmo tempo. Vários estampidos quase simultâneos e o rajar de uma metralhadora. Silêncio.
Não tocou imediatamente o solo, flutuou no ar. Teve certeza que tinha morrido e sua alma descia aos infernos. Foram menos do que frações de segundos, mas sentiu a longa descida para o infinito e lembrou quando o pequeno portão de ferro bateu com mais violência que o normal e a porta se abriu com grande ruído. Lembrou que foi agarrado pelos soldados e arrastado até o camburão. Lembrou que ouviu tiros e temeu pelos outros brasileiros que moravam na pequena casa da Calle Michimalongo, onde estava hospedado. Enquanto caia e pensava, movia os braços e a mão direita tocou o líquido gelado que logo se espalhou pelas costas. Demorou um pouco a sentir a dor e logo o frio. Muito frio. Por um momento pensou que tinha subido a cordilheira e chegado na silenciosa paisagem branca onde sonhava ir um dia. Demorou a entender que estava vivo e só tomou consciência quando ouviu a voz do tenente quebrar o silêncio “Vamos, vamos, rápido!”. Um suave rumor de águas escorrendo era tudo o que se podia ouvir. Teve medo. Um medo que nunca tinha sentido antes. E ficou imóvel, com frio e dor.
Abriu os olhos. A venda havia se deslocado um pouco e viu o céu. Sentiu que estava deitado sobre água e pedras. A água gelada corria. Quando tentou se mover sentiu uma forte dor nas costas e no peito e ao apoiar o cotovelo esquerdo para sustentar o corpo uma dor lancinante o derrubou de volta a água. Com muito esforço se moveu para uma parte mais seca, tirou a venda, levantou a cabeça e viu o horror ao seu lado. Os seis companheiros do camburão estavam mortos, emborcados na água. Pensou ver um movimento em um deles, mas era a água que movia a cabeleira negra. O sangue ia formando uma bamboleante linha vermelha dentro do rio. Não os conhecia e jamais saberia porque foram presos e fuzilados, imaginou que, como ele, apenas sonhavam com um mundo melhor. Não chorou, mas sentiu a solidão tomar conta de seu corpo, mente e alma. Tinha chegado ao Chile há poucos dias, com sonhos, esperanças e planos. Tinha reencontrado companheiros e certezas. Agora estava só, como nunca estivera antes. Olhou o rio, os mortos, as pedras, o alto barranco ao seu lado. Ao longe a cordilheira imóvel, vestida de branca que chegava até a ela pela água gelada. Estava só num mundo desconhecido e inóspito. Controlou as dores e o frio. Ficou imóvel, ainda havia sol.
A noite foi descendo, borrando contornos, escondendo movimentos. O rio, que naquela mesma noite saberia que era o Mapocho, refletia a pálida claridade de uma lua apagada e distante. Resolveu sair dali, mas não sabia para onde, atravessou para a outra margem, mas não conseguiu escalar o barranco mais baixo. Começou a andar seguindo a correnteza, pelo menos seria mais suave. Não sabia como subir o barranco, costas e ombro esquerdo doíam muito, mas tinha que subir. Chegou a uma ponte, havia uma espécie de escada, subiu com dificuldade. Caminhou por entre arbustos, com medo de ser notado, até um conjunto de casas, foi se esgueirando pelos muros. Viu as luzes de um carro vindo lentamente e saltou um pequeno muro escondendo-se, o carro passou devagar, era uma viatura, ameaçadora, com armas para fora das janelas. Esperou muito tempo deitado atrás do muro. Mais uma vez lembrou o portãozinho de ferro batendo forte e a porta se abrindo. Mais uma vez pensou nos companheiros da casa e nos desconhecidos do rio. Que fazer? Dor, frio e solidão voltaram fortes.
Escondido atrás do muro baixo, agachado, reparou o pequeno jardim mal cuidado, a porta e as janelas da casa simples, nenhuma luz ou som que indicasse presença humana. Cachorros latiam a distância. Conferiu os bolsos, tinha sido despojado de tudo, dinheiro, documentos, cigarro, fósforos. Que fazer? Talvez pudesse dormir ali, atrás do muro, e no dia seguinte caminhar até o centro de Santiago. Para que lado ficava o centro de Santiago? Como caminhar desapercebido pelas ruas, ferido e sangrando? Como pedir informações ou dar explicações sem denunciar o forte sotaque brasileiro?
Resolveu pedir ajuda naquela casa. Desolado, o pior que podia acontecer era acertarem o próximo tiro. Bateu levemente na porta. “Tenho cinquenta por cento de chance”, pensou. Silêncio. Bateu um pouco mais forte com os nós dos dedos endurecidos e doídos pelo frio. Silêncio. Tomou a decisão, bateria uma vez mais, se não atendessem iria a outra casa e outra e outra, até atenderem. Escutou um pequeno ruído e uma voz feminina perguntou quem era. “Sou um brasileiro perdido”, respondeu em um castelhano que dispensava dizer que era brasileiro. A porta se abriu devagar, mas ele foi sugado para dentro por uma mão invisível e poderosa que em nada combinava com a voz suave da primeira pergunta. Atrás, a porta se fechou suavemente. O homem que o havia agarrado o fez sentar exigindo silêncio. Há algum tempo o observavam da janela escura.
Dois homens e duas mulheres escutaram a história contada em meia voz, no escuro e num castelhano que muitas vezes não era mais do que português errado. Juca teve que repetir várias vezes algumas passagens e reafirmou muitas vezes que não tinha como descrever os companheiros fuzilados mais que superficialmente, nem onde nem por que foram presos. De um canto escuro veio uma nova voz, baixa e imperativa, “temos que ir por eles”.
Demoram para perceber que ele sentia dor, frio, fome e sede, e exagerando em desculpas o levaram ao fundo da casa. Sob uma luz pálida, recebeu roupa seca, água, comida e curativos. Alguém que parecia ser médico constatou uma costela trincada e um tiro superficial no ombro esquerdo, “nada que preocupe”, disse sorrindo. A mulher pousou suavemente a mão em seu ombro direito, não disse nada. Juca sentiu um calor reconfortante sair da mão carinhosa e sentiu ternura. Não estava só. Não se conteve e chorou. Chorou convulsivamente e quanto mais lhe afagavam, mais chorava, como se todos os demônios escorressem com as lágrimas, como se tudo se resumisse naquela casa pobre da periferia de Santiago, como se todos os males do universo pudessem ser lavados por um gesto de carinho. Como se todos os mortos se reconciliassem em um mundo justo.
A sopa quente mais o analgésico e o afeto o fizeram cair em um sono agitado. Antes de dormir ouviu pessoas saírem furtivamente da casa, teve certeza que encontrariam os fuzilados e, pela primeira vez no dia, teve um estranho sentimento de paz.
Na manhã seguinte vieram lhe acordar muito cedo. Já estava desperto e tenso. A moça do afago lhe entregou uma jaqueta limpa. Vestiu-a, tomou uma xícara de chá e saíram caminhando pela rua como um casal indo às compras. Iam à Igreja. Quase tão modesta como uma capela, tinha uma pequena porta dupla na frente, entraram e ela o forçou a ajoelhar-se sem dizer uma só palavra. Havia tensão nos gestos e apreensão no olhar. Certificada de que a Igreja estava vazia e ninguém os seguia, ela o levantou e se dirigiram apressadamente a uma porta lateral. Um pequeno corredor levava à casa paroquial. Encontraram a porta aberta e sem ser visto do exterior aguardava um padre de olhar tranquilo e mãos nervosas. “É o brasileiro”, disse a moça, e o padre assentiu com a cabeça e estendeu a mão úmida e fria. A moça ia se retirando mas voltou e beijou a face do brasileiro pousando suavemente, mais uma vez, a mão em seu ombro direito, com ternura. Nenhuma palavra foi dita, levantou o punho esquerdo fechado, virou-se e se retirou rapidamente. Juca guardaria para toda sua vida a lembrança daquela mão pequena e terna e o gesto jamais repetido.
O padre ofereceu um copo d’água, o convidou a sentar e falou sem rodeios que tinha chamado o embaixador sueco para levá-lo. Contou, falando rápido e interrompido algumas vezes pelas incompreensões de Juca, que o embaixador recolhia pessoas em perigo para dar asilo. “E vocês, padre? Os companheiros da casa?” O padre sorriu baixando a cabeça. “A luta continua, tem que continuar”, disse. “Então fico com vocês!” O padre negou, não tinham como esconder ou dissimular um estrangeiro, pressentia a resistência longa, duríssima e letal.
O volvo verde escuro entrou no estacionamento posterior da Igreja ostentando duas bandeiras azuis cortadas por uma cruz amarela em ambos para-lamas dianteiros. Os dois homens foram ao encontro do elegante senhor que descia do carro. Uma freira de rosto redondo e doce, emoldurado por túnica e véu sorriu para eles. Juca entrou no carro e seguiu para a longa noite do exílio. Chovia naquela manhã de setembro em Santiago.
Carlos Frederico Marés de Souza Filho é professor titular de Direito Socioambiental da PUC-PR e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Foi por duas ocasiões Procurador Geral do Estado do Paraná.
O texto narra uma sobrevivência, "por um golpe de sorte", a uma das tantas execuções clandestinas que costumam ocorrer no início dos golpes de Estado na América Latina, uma sobrevivência que se manifesta, mais, como um renascimento, e um renascimento para além da dimensão da brutalidade, pois, ao ser resgatado, o protagonista se depara com uma das facetas humanas que pareciam haver desaparecido. Seu choro não é o da autocomiseração, mas sim o do reencontro com a sensibilidade, uma purificação real pela presença da compaixão num mundo em que ela parecia banida para todo o sempre. Belíssimo conto.
Belo texto, mas triste pela perspectiva que traz de vivermos novamente algo parecido em nosso país.
A crônica transcorre suave e instigante! Muito bom!