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Chomsky, OTAN e Batman

Atualizado: 5 de dez. de 2023

- Guilherme Purvin -


Acabo de ver um novo episódio de "Porta dos Fundos" no qual Batman captura o Coringa e leva uma surra intelectual do inimigo de Gothan City, recebendo como lição de casa a leitura de um livro de Chomsky que explicaria por que motivo Bruce Wayne é o principal gerador de criminalidade no mundo. O quadro pode nos fazer rir por diversos motivos, mas o principal certamente é a inversão de expectativa: o super-herói é um dândi com uma estranha tara de sair pelas ruas fantasiado de homem-morcego, para colaborar com uma polícia reconhecidamente inepta e ser servido por um velhinho em regime de semi-escravidão.


A piada deixa de funcionar se a audiência tem plena capacidade de compreender que não houve ali nenhuma inversão de expectativa: é óbvio que Bruce Wayne é uma figura desprezível que só pode servir de modelo para uma plateia de imbecis ao estilo Deltan-Moro. Ou, para sermos mais precisos, uma plateia de imbecis que vê em Deltan-Moro uma dupla dinâmica a serviço do saneamento social da cidade. Pois Deltan & Moro, é preciso reconhecer, estão muito longe de ser imbecis. Trabalham para a audiência em busca de proveito pessoal.

Os últimos dias têm sido extremamente tensos em termos de Política Internacional e as atenções estão voltadas quase que exclusivamente para as relações Moscou / Kiev. Nesse contexto, somos bombardeados por comentários que ocupam 2/3 dos noticiários das redes de TV voltada à classe média e alta (as demais continuam com suas "Cidades Alertas", Batmans e Coringas locais). O lastimável é que, por mais prolongados que sejam os noticiários, não há aprofundamento de absolutamente nenhuma questão crucial. A ordem é: condenar com veemência o sanguinário ditador Vladimir Putin por querer impor à Ucrânia que se abstenha de ingressar na OTAN.

Para que estudamos tantas matérias como História, Geografia, Matemática, Literatura, Química, Física, Artes, Biologia, Filosofia e Sociologia antes da faculdade? E para que fazemos uma faculdade? Faz algum sentido decorar a data de 22 de abril de 1500 para sabermos em que dia Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil? Ou sabermos que o Cabo das Tormentas passou a ser conhecido como Cabo da Boa Esperança depois da passagem de Vasco da Gama?

A resposta automática e risonha é: sim, tem razão, isso tudo é uma inutilidade total. Para quem estudou Medicina ou Engenharia Civil, esse tipo de conhecimento - efemérides, grandes heróis da história nacional ou internacional - é absolutamente desprezível. Mas esse conhecimento não seria desprezível se nos ensinassem a relacionar os fatos. De fato, pouco importa decorar o dia 22 de abril de 1500 se não soubermos que se trata apenas de uma data em que Portugal veio apossar-se juridicamente da porção de terras que julgava caber a si na repartição da América do Sul. Da mesma forma, mudar o nome do cabo que separa os Oceanos Atlântico do Índico é totalmente irrelevante se não conjugarmos a informação sobre essa pitoresca mudança de nome - Cabo da Boa Esperança - com a conquista de novas rotas comerciais para que Portugal chegasse às Índias e à China, onde implantou possessões como Goa e Macau.

Voltemos a Chomsky. Além da referência a esse renomado intelectual no "Porta dos Fundos", uma frase sua começou também a circular pelas redes de WhatsApp, uma pergunta que ele teria feito em 2014:

"Precisamos nos perguntar por que motivo a OTAN continua existindo depois de 1990. Durante a guerra fria nos disseram que existia para nos proteger das tropas soviéticas. A missão da OTAN mudou. A missão não é mais proteger a Europa dos soviéticos, é controlar a energia no mundo. Eles controlam as rotas marítimas e dutos de óleo e gás. São uma força interventora dos Estados Unidos".

Os longos e rasos comentários visando a estabelecer um consenso ideológico estúpido em prol da OTAN e das posições políticas do comediante fascista atualmente no poder em Kiev objetivam reduzir a nossa capacidade de associar ideias, de perceber que há muito o que se aprender com as Navegações Portuguesas do Século XVI , no contexto da decadência daquele império efêmero.

Qualquer discussão sobre estes segundos que no separam da Hora Zero que não inclua um debate sério sobre as relações econômicas entre EUA e China, sobre o aviltamento político energético da Alemanha, beneficiária direta de uma parceria com a Rússia, estará fadada a ser uma fantasia da Marvel Comics.

Não é preciso ler a obra de Chomsky (ainda que isso seja altamente salutar) para se compreender um pouco do que acontece no mundo neste momento. Às vezes, umas apostilas de cursinho servem muito bem para desembrutecer a opinião do público da Globo News.

 

Guilherme Purvin, escritor e ambientalista, é doutor em Direito e graduado em Letras pela USP. É editor-chefe da Revista PUB e Presidente do IBAP.



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