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O discurso que não fiz

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-CARLOS MARÉS-


Recebi o Título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Goiás dia 29 de abril. Nunca havia imaginado, nem nos meus melhores sonhos, ser agraciado com tão grande e honrosa homenagem. Quando, no final de outubro de 2021, a Professora Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega e o Professor Eriberto Francisco Bevilaqua Marin me chamaram a uma reunião eu não tinha a menor ideia do que seria, mas imaginava ser mais um dos importantes trabalhos que a Universidade promove em defesa dos povos indígenas, quilombolas e da natureza e que as vezes pedem para ouvir meus palpites. Qual não foi minha surpresa quando o professor Eriberto revelou que o Conselho Universitário havia aprovado a concessão do Título. Primeiro, não acreditei e talvez tenha sido até grosseiro com o professor ao imaginar que se tratava de uma brincadeira. Não era brincadeira, o Conselho tinha aprovado por unanimidade a honraria.

Passada a emoção, passei a pensar no que diria numa sessão de entrega de Título. Comecei a preparar um discurso substantivo, desses que se publica e se cita. Não sei se o discurso que preparei seria um dia publicado ou citado, mas jamais foi proferido. Não que não tenha sido realizada a sessão de entrega, mas o discurso foi outro, tudo o que havia sido traçado em linhas solenes e pensadamente elegantes ficou frio como gelo, gravado no papel e esquecido num canto da memória.

Marcada a data e anunciado o evento, com o discurso preparado e muito feliz, aguardei tranquilo a emocionante viagem e não tive a perspicácia de analisar o local onde ocorreria. Não notei que não seria no salão nobre, aquele de poltronas de veludo, almofadadas e com leve cheiro a mofo onde as vetustas Universidades proclamam títulos. Se eu tivesse lido com cuidado o convite teria me dado conta que o local era o Núcleo Takinahakỹ, no mesmo campus onde fica a Reitoria, mas completamente diferente. O Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena é uma parte da Universidade dedicada aos povos indígenas e formado por construções pensadas e discutidas com a arquitetura originária. O salão de eventos do Núcleo é uma construção aberta, muito parecida com uma oca sem paredes. Eu conhecia o local, mas nunca o tinha associado a passagens de minha vida. Quando cheguei na condição de homenageado, o discurso começou a se desmanchar. Não fazia nenhum sentido palavras elegantes, de efeito e solenes, racionalmente escolhidas. A realidade e a emoção foram tomando conta do ambiente, e a emoção, má conselheira como sempre, mandou enfiar o preparado discurso no mais fundo bolso do paletó surrado. Obedeci.

É que no começo da década de 90, logo após a promulgação da Constituição federal, um grupo de indígenas e intelectuais criaram o Núcleo de Direitos Indígenas. Um deles era Ailton Krenak que já mantinha o Núcleo de Cultura Indígena com a função de difundir e preservar a cultura indígena e aproximar os indígenas dos conhecimentos da sociedade hegemônica. O Núcleo de Direitos Indígenas, com sede em Brasília e o de Cultura em Goiânia, desenvolviam juntos uma importante luta pela formação jurídica de indígenas na clara intenção de que seriam eles mesmos a defender seus direitos. Houve, então, uma longa discussão com a Universidade Federal de Goiás para que ela admitisse, num sistema de cotas, ainda que sem esse nome, meia dúzia de indígenas no curso de Direito. A negação foi peremptória e apenas um dos seis pode ingressar e ser mantido a duríssimas custas no curso de Direito, não da Federal, mas na Católica de Goiás. Os dois núcleos mantinham assistência periódica ao estudante que se formou em 1996 como o primeiro indígena bacharel em Direito do Brasil, Paulo Pankararu. Eu era o diretor técnico do Núcleo de Direitos.

Aquela fora uma luta sofrida e aparentemente derrotada nos anos 90. Nem cotas, nem cursos, nem direitos. Mas no século XXI, já encerradas as atividades do NDI, a mesma Universidade que havia negado ingresso aos seis indígenas reabriu seu Curso de Mestrado em Direito Agrário com forte ênfase ao uso da terra com sua função de provedora das sociedades humanas e da natureza, com estreita ligação com quilombolas e indígenas. Em abril de 2007 abrigaria a primeira turma especial de Direito financiado pelo Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), no Campus da Cidade de Goiás, para filhas e filhos de assentados e moradores do campo enfrentando uma disputa judicial com Ministério Público que achava que Direito não tem nada a ver com Reforma Agrária. Em 2006 abrira o curso de licenciatura em Educação Intercultural e em 2014 inaugurou o prédio que abriga o Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena (NTFSI), com a oca onde seria realizada a cerimônia. Nada disso estava no discurso solene que havia preparado e tudo tinha relação com minha vida e, certamente, com a homenagem que estava sendo prestada.

Mas a vida é estranha e bela. No longo e elogioso parecer emitido pela comissão encarregada pelo egrégio Conselho Universitário da UFG para analisar a concessão do Título não constam essas coincidências, e nem poderiam constar. O parecer descobriu histórias que eu mesmo não lembrava, como um elogio público que me foi dirigido por Paulo Freire em conferência que proferiu em Curitiba, logo ele que foi detentor de pelo menos 35 Títulos de Doutor Honoris Causa concedidos por Universidades do mundo todo. Mas não constava do parecer essa minha ligação e frustração com Goiás e a Universidade que depois redimiria todas as lutas. Mas os pareceristas não poderiam saber daquelas informações que não existiam no mundo duro da razão, não estavam documentadas e expostas, habitavam o mundo da emoção, do sentir, do saber de algumas pessoas que a tinham vivido e que talvez não lembrassem nem mesmo numa roda de conversa descontraída. E a emoção, embora despertada pelo anúncio da concessão do Título, só brotou para essas lembranças no exato momento em que vi a oca do Núcleo Takinahakỹ e com o começo da cerimônia envolvida num turbilhão emotivo convulsionando os neurônios, a razão e a ordem. A emoção não me permitia ler o discurso, não só porque as lágrimas poderiam turvar a vista, mas porque já não fazia sentido a razão e o discurso era razão. Naquele momento o mundo era pura emoção.

Não há palavras para descrever o que ocorreu. As pessoas presentes representavam aquela vida, não a do relatório, do curriculum, mas das emoções, das lutas, das conquistas, da vida vivida sem catálogo, sem lenço e sem documento. Ali estavam a cantora com canções para emocionar, as alunas que vieram de longe para ouvir o discurso que nunca foi proferido, rostos gentis de bacharéis do Pronera, representante da Pastoral da Terra, indígenas e sua arquitetura e amigas e amigos. Ali, naquele local, naquele portal de saberes, a razão estava submissa aos encantados e a vida fluía sem precisar de explicações.

O discurso falaria da Universidade, sua importância, sua necessária ação junto aos povos. Trataria do Direito Agrário, da terra e da natureza. Trataria também da onça e do tamanduá, das abelhas e dos insetos. Mas trataria de gentes, sobretudo de gentes. Talvez a audiência gostasse, aplaudisse e elogiasse. Mas não foi esse o discurso proferido, quem ouviu, ouviu apenas o relato da emoção de descobrir trinta anos depois que as sementes plantadas haviam gerado sombras e frutos. E ouviram a emoção não de um homenageado, mas de quem tinha, naquele momento, a plena consciência de que apenas representava, emprestava o nome e o curriculum, àquelas e àqueles que trinta anos antes davam continuidade a uma longa e interminável luta por direitos e plantavam uma semente na Universidade.

O não discurso proferido foi um canto de vitória emitido como uma pequena pausa para o recomeço da luta. E as palmas aos jovens de trinta anos atrás!

 

Carlos Frederico Marés de Souza Filho é membro do IBAP, Professor de Direito Socioambiental da PUC-PR. Foi Procurador Geral do Estado do Paraná por duas vezes.




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