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Glosas ao comentário do Professor Washington Peluso Albino de Souza sobre “Democracia e exclusão social”

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    Revista Pub
  • 1 de ago.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 4 de ago.

-Ricardo Antonio Lucas Camargo-


Uma observação que sempre se fez, em relação ao perfil do brasileiro bacharel em Direito, é a sua tendência em tratar as hierarquias sociais e as desigualdades como uma imposição da ordem natural, a dar o status quo como uma reprodução da harmonia do universo a ser protegida a qualquer custo, a dar como expressão da desordem e mesmo da destruição do mundo o que quer que, no mínimo que seja, reduza as distâncias e mitigue essas mesmas hierarquias.


Por isto, vale a pena trazer, aqui, um verdadeiro contra-exemplo desse tipo de postura, sabidamente majoritário nesta ex-Colônia portuguesa do sudoeste do Atlântico, em que tantos descendentes de europeus se identificam mais com seus antepassados de além-mar do que com os seus compatriotas.


Em 21 de agosto de 1999, na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, o Professor Friedrich Müller, da Universidade de Heidelberg, foi chamado para fazer uma conferência, tendo como debatedor o introdutor do Direito Econômico no Brasil e Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais Washington Peluso Albino de Souza (1917-2011).



Por Fabiana de Menezes Soares, Rosali Ramos Diniz, Gabriela Godoy Corrêa de Araújo, Lucas de Oliveira Gelape, Marco Amaral Mendonça - https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/321, CC BY 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=155192357
Por Fabiana de Menezes Soares, Rosali Ramos Diniz, Gabriela Godoy Corrêa de Araújo, Lucas de Oliveira Gelape, Marco Amaral Mendonça - https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/321, CC BY 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=155192357

A riqueza da intervenção deste rendeu ensejo a que fosse, mais tarde, convertida em estudo que viria a compor, como último capítulo, a sua Teoria da Constituição Econômica, publicada pela Editora Del Rey, de Belo Horizonte, em 2002, e comparece como um documento valioso para a reconstituição de um período em que a ruína do muro de Berlim era erguida como justificativa para a implementação do denominado “Estado Gerencial” e, em nome da “inserção na globalização”, para agilizar o fluxo de capitais entre os países, programas de privatizações, reduções de efetivos de servidores e desregulamentações de relações econômicas entravam na ordem do dia.


O saudoso Mestre mineiro chamou a atenção para o papel das emendas constitucionais em desfigurar o texto original da Constituição brasileira de 1988. Elas não se limitaram a atualizá-lo. Elas, na realidade, funcionaram como uma espécie de vingança daqueles setores que tinham ficado derrotados por ocasião da elaboração do Texto Maior.


A expressão “vingança” tem a sua razão de ser, já que se trata de um texto que, mesmo partindo de um anteprojeto elaborado por uma comissão cujos membros eram denominados “notáveis”, e que teve como órgão responsável pela sua confecção um Congresso que cumulou as funções de Assembleia Constituinte, foi redigido também com a participação direta da população, com a apresentação de emendas populares, muitas delas acolhidas pelos parlamentares.

 

A distinção da empresa brasileira e da empresa brasileira de capital nacional trouxera para o âmbito do direito constitucional, justamente, a ideia de que ao cabo nós temos a figura da empresa transnacional, que tem a nacionalidade que lhe convém: é brasileira quando lhe convém, é inglesa quando lhe convém, é americana quando lhe convém, é alemã, é francesa. Por isto havia a distinção entre a empresa brasileira e empresa brasileira do capital nacional, assegurando a esta determinadas vantagens que compensariam uma desigualdade material decorrente da maior desenvoltura da transnacional em mobilizar recursos financeiros e contornar ônus de toda natureza. Aí, veio a emenda constitucional número 6 de 1995 e escoimou a distinção. Por quê? Porque se pretendia, à época, a chamada “inserção na globalização”.


O Professor Washington faz essas observações, também, chamando atenção para um outro dado que normalmente é negligenciado: o modelo do mercado libérrimo supõe agentes em situação de igualdade, em que um tem a capacidade de resistir aos avanços das manifestações de vontade do outro. E não é bem assim que as coisas funcionam. Isso já era percebido na época da Segunda Guerra Mundial, mesmo por juristas mais desiludidos com o abalo da pretensão de permanência do Código Civil francês de 1804, como Georges Ripert e Louis Josserand. Com a queda do muro de Berlim, os intelectuais do lado dos vencedores resolveram que isso não existia, que essa desigualdade seria, na realidade, uma invencionice dos inimigos da liberdade individual, dos destruidores da afirmação do ser humano sobre o mundo. E nós sabemos, entretanto, que existe: quando o ministro Luís Roberto Barroso, Presidente do Supremo Tribunal Federal, diz que tem que acabar com essa infantilização do trabalhador, que ele tem que poder negociar normalmente com o empregador, ele está supondo que o empregado está em situação de igualdade. Agora, caso alguém diga ao sr. Joaquim que o Zezinho que varre o chão da mercearia dele está em posição de igualdade, qual será a sua resposta? “Negativo, eu pago esse moleque para fazer o que eu mando”. Não é isso que o sr. Joaquim vai responder?  Esta é a grande questão que se põe quando se pretende apelar para a ampla desregulamentação das relações entre partes de poderes desiguais. 


E por outra banda, chama o Professor Washington a atenção para o dado inarredável de que, quando referimos “exclusão social”, nós estaremos justamente falando acerca da exclusão de direitos daquele que não seja titular do poder econômico. Ou seja, a condição de sujeito de direitos e deveres – a condição de pessoa – passa a ser graduada segundo a pujança econômica de que seja dotado o indivíduo: a famosa compreensão do “dinheiro como passaporte, não só da honra, como da própria condição humana”. A situação em que não somente os parlamentares, no exercício do poder de emendar a Constituição, vão desfigurando o Texto original, como também vão sendo adotadas, no âmbito judicial, interpretações que aprofundam as desigualdades entre as regiões e as próprias classes sociais, o que vai exemplificado com a decisão que considerou o conceito de juros reais que estava previsto na redação original do artigo 192 da Constituição brasileira de 1988 – recordando que foi escoimado pela Emenda Constitucional n. 40, de 2003, no ano seguinte ao que foi publicado o livro de que faz parte o capítulo que é agora comentado, e já aos tempos da Presidência de Luís Inácio Lula da Silva - dependente de definição em lei complementar. 


Os alertas do Mestre Mineiro soavam quando ímpetos revisionistas explodiam, incensados pelas empresas de comunicação social, que mal disfarçavam a saudade dos tempos em que o acesso aos direitos políticos era uma questão de titularidade de um patrimônio mínimo, reduzida a noção de “povo”, em nome do qual o poder seria exercido, aos “felizes proprietários” (beati possidentes, para quem gosta de latim).


Sua fala, longe de lamentosa, era um chamado a que despertássemos para o papel que estavam a desempenhar os tradicionais porta-vozes do interesse dos superincluídos em aumentar a exclusão, convertendo a quantos não tivessem musculatura patrimonial suficiente para o enfrentamento das crises em seres humanos descartáveis, para que fossem enfrentados, entretanto, nos limites da racionalidade, uma vez que o exercício da violência somente serviria para fazer com que aqueles que tinham algo a perder, ainda que fosse pouco, viessem a aplaudir qualquer medida mais drástica, em termos de negação de direitos.


Era a fala de quem buscava realizar o diagnóstico adequado do contexto político-econômico nacional, permitindo identificar a inequívoca ausência de qualquer sintoma de “comunismo” em Governos que, antes, buscaram arrefecer o ânimo combativo dos sindicatos, por um lado, e tornar-se confiáveis aos donos do capital, por outro, que, mesmo não levando a cabo privatizações, não reverteram nenhuma das que já se tinham verificado e, inclusive, puseram os créditos bancários à frente dos créditos fiscais e dos créditos trabalhistas acima de 150 salários mínimos, alargaram ao máximo as exceções em que seria permitida a presença de capitais estrangeiros no âmbito da saúde e chegaram a realizar leilões de bacias sedimentares no âmbito petrolífero.


Era a fala de quem seguramente teria identificado, entre 2016 e 2022, a tentativa de ressuscitar a política econômica da “República Velha”, inclusive com a reescritura, mesmo no campo jurisprudencial, do Texto de 1988 como se fosse o de 1891, como mais uma das manifestações da vingança dos setores derrotados quando da redação da Constituição brasileira atualmente vigente, bloqueando-lhe a eficácia.


Entre outros feitos, entre outros escritos, entre outras falas, o comentário que é trazido à glosa dá uma dimensão do tamanho da perda que sofremos naquele início de inverno de 2011: parafraseando Shakespeare, abateu-se sobre nós “o inverno da desolação”.



Ricardo Antonio Lucas Camargo - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP – membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul. Escreve todo o dia 01 do mês.



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