-CARLOS MARÉS-
A primeira Constituição de Bolívia, escrita sob encomenda por Simón Bolivar após a derrota final dos espanhóis na América do Sul, em 1826, estabeleceu que seria uma república presidencial, com a nomeação de um presidente vitalício que ao fim de seus tempos deveria escolher o sucessor. Bolívar tinha consciência de que os povos indígenas e africanos escravizados na América teriam grande dificuldade para implantar e manter direitos de liberdade e igualdade se deixassem as elites dominarem os poderes do Estado. Sabia, até por experiência própria, que as elites eram prenhes de colonialidade, sabia que as artes da política e do direito são capazes de transformar liberdade em opressão, igualdade em discriminação e legitimidade em mentira. Por isso não poderia deixar a escolha do presidente ao sabor das artimanhas das elites colonizadas.
Não deu certo! Apesar da escolha do vitalício ter recaído sobre o Marechal Sucre, um dos grandes generais libertadores de América, não deu certo. Durou no cargo dois anos e meio. A reforma constitucional seguinte acabou com a vitaliciedade do presidente e nem a liberdade nem a igualdade foram marcas dos governos que se sucederam. Bolívar tinha aprendido em suas andanças pela América Latina que as elites não permitiram jamais que indígenas e africanos pudessem ter um país para si.
O legado de Tupac Amaru e Tupac Katari, porém, que corria no sangue do povo marcou para sempre a Bolívia como um país de resistência e, por isso mesmo, violência contra o povo para submetê-lo. As elites, nestes quase duzentos anos de independência, passaram a maior parte do tempo no poder, sempre violento, repressor e marcado pela colonialidade. Os poucos períodos que estiveram fora do poder passaram conspirando e organizando o próximo golpe, violento sempre. E a Bolívia passou a viver em permanente instabilidade. As elites sempre prontas para um golpe, uma guerra, uma artimanha para que a maioria do povo não promovesse a estabilização dos governos e do poder. Várias vezes tiveram que ceder, mas nunca se conformavam e articulada as forças promoviam novo golpe.
No século XX o povo chegou a tomar ou controlar o poder algumas vezes, escreveu mais de uma constituição, impôs sua vontade em alguns momentos, mas as forças da elite torceram, violaram, deslegitimaram cada lei promissora e conseguiam restabelecer a violência, o racismo, a colonialidade. É verdade que tem sido uma espiral, cada nova reconquista do povo vem com mais brilho e clareza e cada retomada ardilosa das elites mais violenta, mais rasteiramente traidora. 2019 comprova a tese!
Em 1938, somando amplos movimentos populares, indígenas, camponeses e mineiros e o baixo oficialato do exército revoltado com as elites belicosas, a Bolívia escreveu uma das mais belas constituições da América comparável à mexicana de 1917. Mais uma vez a constituição proclamaria e garantiria liberdades e igualdades. E, na Bolívia, liberdade e igualdade significam autonomia, autodeterminação, direitos territoriais, existência coletiva, vida associada à natureza, à pacha mama, significa terra, água e o ralo ar das altitudes. Significa povos, homens e mulheres em sua plena dignidade cultural. Significa vida coletiva oposta ao capitalismo e ao colonialismo que o sustenta. E isso não agrada às elites. O artífice da constituição e primeiro presidente eleito por ela, Germán Bush, foi vítima de um estranho suicídio um ano depois. Começava um período de duras lutas mas também de crescimento da consciência do povo a partir de sua ancestralidade.
Catorze anos de instabilidade se encerraram com a Revolução de 1952. Mais uma vez o pacato povo das altitudes desceu para corrigir injustiças e pôr o país nos trilhos, reclamando a aplicação da Constituição e das leis. A elite não aceitara que o presidente eleito assumisse o cargo. E nem era um indígena, o povo veio às ruas e praças para dar posse a Víctor Paz Estenssoro, o presidente eleito que a partir daí governou com certa tranquilidade, escrevendo uma das mais importantes Leis de Reforma Agrária da América Latina.
Apesar disso, o século XX não foi fácil para os povos da Bolívia. Uma sucessão de golpes de estado, ardis, massacres, levantes populares entrega das riquezas nacionais a estrangeiros ávidos e traiçoeiros, que levavam os lucros e desprezavam o povo. Mas a reação incansável à pilhagem, ao colonialismo e ao racismo patriarcal se fazia sentir permanentemente. As elites tentaram de tudo. Até velados acordos como a escolha de um vice-presidente indígena, Vitor Hugo Cárdenas. Mas era apenas discurso, simulação. Excluído Vitor Hugo da vice-presidência voltaram os governos anti-povo. No ano de 2000 o Banco Mundial exigiu (ou as elites exigiram que o Banco mundial exigisse?) que fosse privatizado o serviço de água, caso contrário cobraria um empréstimo de 25 milhões de dólares. Esta conduta em mesa de bar é chamada de chantagem, como se chamará nos salões da política internacional? O preço da água subiu vertiginosamente e foi impedido o acesso da população às fontes tradicionais. Começou a guerra da água. Guerra dura e penosa. Hugo Banzer, o presidente que privatizou a água, dizia que eram os traficantes que insuflavam os granjeiros a lutar contra o exército. Mas o povo venceu mais uma vez e da longa luta acabou por colocar na presidência Evo Morales, em 2005. De 2005 a 2019 foram catorze anos de aparente tranquilidade e estabilidade, o oposto dos anos 40 do século XX.
Mas, enquanto a governo ia implantando uma liberdade e igualdade digna do povo da Bolívia, com contradições, é claro, mas com uma Constituição nova e respeitada no mundo inteiro, as elites brancas, ricas, racistas, impregnadas de colonialidade, conspiravam. Não era aceitável o Estado Plurinacional. Mas o golpe de 2019 em Bolívia, que ainda não se consolidou, tem características estranhas, são as mesmas forças, a alta cúpula do Exército e seus auxiliares policiais e os políticos representantes do poder econômico nacional e internacional. Mas ninguém assumiu a cadeira de presidente, ninguém vestiu a carapuça de golpista. Todos sabem da ilegitimidade da Sra. Jeanine Áñez, mas todos cumprem suas ordens de reprimir, prender e matar. Recebem ordens, como fiéis militares, e as cumprem sorrindo e negam ter participado disso.
A imprensa ligada aos capitais festejou o golpe e insinuou, e o disse quanto pode, que a direita colonialista estava aliada a antigos apoiadores de Evo. De fato, Evo começava a ter uma oposição de esquerda que o criticava por não aprofundar ações anticapitalistas e anticolonialistas, mas não aceitariam mais um golpe de estado. O golpe foi urdido, pensado e violento. As elites bolivianas são violentas. E foi contra todo o povo.
Como será o dia seguinte do golpe se ele se consolidar? É claro que não haverá eleições. E a água, as florestas, os animais? serão privatizados? Por quanto tempo? A Constituição será rasgada? Não é possível prever. Mas a história nos mostra que a tentativa de espoliar o último recurso do povo que era a água, no ano 2000, gerou a eleição de Evo Morales e a aprovação plebiscitária da Constituição Plurinacional, avançando acima de todos os avanços da Bolívia. Como estará a Bolívia daqui a cinco anos? É impossível prever mas as elites colonizadas não tem nada a oferecer ao povo. Então, o espírito de Tupac Katari poderá ser evocado uma vez mais e, quem sabe, a partir de então poderá descansar em paz junto com seu povo redimido.
Carlos Marés, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e diretor do IBAP.
Excelente abordagem da história boliviana. É sempre uma satisfação ler os artigos do Professor Marés.