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CHILE, A ENCRUZILHADA DA DEMOCRACIA

Atualizado: 3 de nov. de 2019

-CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO-


Um milhão de pessoas nas ruas do Chile. É muita gente! No começo da década de 70 do século passado o Chile tinha 8 milhões, hoje tem 17, e as manifestações de rua juntavam algo em torno de 500 mil pessoas, o que é praticamente o mesmo.


Mas há uma diferença entre as de hoje e as de quase 50 anos atrás: o povo chileno ia às ruas apoiar as medidas tomadas pelo governo de então, presidido por Salvador Allende. E que medidas eram aquelas? Reforma agrária com a criação de centenas de cooperativas e fazendas coletivas, nacionalização das minas de cobre e consequente aumento de número de empregados, universalização da saúde e das escolas, reforma urbana com a aplicação da função social da propriedade e, portanto, ocupação das moradias vazias, melhoria das condições de aposentadorias e pensões, melhorias das condições de trabalho, etc.

Allende dizia que estava construindo a via pacífica e eleitoral ao socialismo. E estava! Havia sido eleito com 35% dos votos e nas eleições intermediárias já havia alcançado mais de 40%, o povo o apoiava e ia para ruas demonstrar o apoio de tempos em tempos, as eleições presidenciais de 1975 trariam ainda mais avanços. O caminho estava sendo trilhado apesar do forte boicote econômico que sofria. Faltava tudo, comida, transporte, remédios, peças automotivas. Quanto mais havia boicote mais o povo entendia o confronto e se organizava para distribuição social das mercadorias e para apoiar as medidas que eram tomadas. Confronto dificílimo mas que apontava para uma vitória cada vez mais certa de Allende. No dia 11 de setembro de 1973, sem alternativa eleitoral, a CIA, milícias e Exército chileno deram um golpe feroz que abateu o Chile em pleno voo. Tinha que ser feroz, tinha que ser mortal, aniquilante. Foi o mais violento da América Latina. Mais de 3.000 mortos, milhares de prisioneiros torturados, mais de 200 mil forçados a exilar-se. Não foi fácil calar o povo chileno e arrancar-lhe o direito de ir a rua indicar o caminho a seguir. Na propaganda da ditadura implantada se dizia que haveria uma "reconstrução nacional".

Salvador Allende resistiu ao golpe dentro do Palácio de la Moneda, sede do Governo, que foi bombardeado por canhões e pela força aérea durante horas, incendiado, intencionalmente desfigurado para não servir de símbolo da resistência. Allende foi assassinado. A ditadura durou formalmente de 1973 a 1990. A "reconstrução nacional" foi implantado com o apoio dos "Chicago Boys" e consistiu numa fórmula simples, reprivatizar a terra e os imóveis urbanos, cobrar caro pelo ensino e educação, devolver as minas às multinacionais, substituir o regime de aposentadoria por um sistema de capitalização em bancos privados, transformar o atendimento à saúde em seguro privado, privatizar totalmente a água, telefonia, eletricidade, diminuir os direitos na relação de emprego, etc. Entregar ao capital o que ero do povo.

Politicamente a ditadura promulgou uma nova Constituição e entregou o poder a civis em 1990 depois de perder um referendum nacional em 1988 quando o povo disse que não queria a continuidade do governo de Augusto Pinochet. Durante dois anos foram tomadas todas providências para que os governos civis que viriam não pudessem alterar as regras econômicas da sociedade. O Chile foi cantado em prosa e verso como o capitalismo neoliberal que deu certo na América Latina. Era mentira! Todos diziam isto menos a população chilena que empobrecia dia a dia, que já não podia manter seus filhos nas escolas, não podia se aposentar porque a capitalização a final só deu grandes lucros aos bancos e pouco rendimento, que tinha que pagar caro pela água, pela eletricidade e telefone e via os salários baixarem sem nenhuma garantia de emprego.

Em 2006 os estudantes secundaristas foram à rua reclamar contra as más condições de ensino e a Presidenta Michelle Bachelet acedeu a algumas reformas, insuficientes, consideraram os estudantes. Em 2012 novo levante estudantil, então sob a presidência do mesmo Piñera de hoje, contra o ensino em geral, inclusive universitário, contra o pagamento dos juros altos dos empréstimos bancários para financiar os estudos. 700 mil estudantes foram à rua. Poucas reformas pontuais foram feitas, como a baixa dos juros dos empréstimos.

O paciente, culto e instruído povo chileno esperou mais sete anos para que os governos revertessem a lógica neoliberal. Não fizeram, ao contrário, aprofundaram a concentração de renda, aumentaram a pobreza, diminuíram os direitos trabalhistas, aumentaram juros de empréstimos e rebaixaram os de capitalização de pensões, afinal o país dava mostras de crise e, na cartilha neoliberal, quem deveria pagar seriam exatamente os mais pobres, mais uma vez.


Vista aérea de manifestantes reunidos em Santiago, no Chile, na sexta-feira (25) — Foto: Pedro Ugarte/AFP

Outubro de 2019. Um milhão de pessoas nas ruas sob violenta repressão do exército, o mesmo exército, sem medo, pedindo o país de volta e não as pequenas mudanças pontuais mais uma vez prometidas. Tudo dá a entender que o povo chileno cansou de esperar e resolveu reconstruir o país com as próprias mãos. Ficou claro em trinta anos pós ditadura que a alternância no poder e eleições livres não são suficientes para fazer uma democracia, a participação do povo nas mudanças estruturais são fundamentais.

Que caminho seguirá o Chile nesta encruzilhada?

 

CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO (PR) - Professor de Direito Socioambiental PUC-PR, é membro do Conselho Consultivo do IBAP, foi Procurador Geral do Estado do Paraná.


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