-ELIZABETH HARKOT DE LA TAILLE-
“As viagens formam a juventude”, diz um ditado francês. Alargam horizontes, desenvolvem sensibilidade em relação a outros modos de viver, pensar e agir, enriquecem o conhecimento humano. Bonito e em parte verdadeiro. Mas e quando quem viaja é adulto, em um frenesi de compras e selfies tomados até mesmo diante de obras de arte, tornando a obra mero cenário para a imagem pessoal posteriormente publicada em mídias sociais? Penso que nem todo viajante viaja, que muitos se comprazem em saltar de lugar em lugar, de cidade em cidade, em comprar souvenires e em se manter impermeáveis às experiências diversas de seu hábito, ou habitus, recorrendo a Bourdieu.
Voos longos são um pequeno laboratório humano. Por vezes, tento imaginar as histórias que a tripulação conta em seus círculos sociais. Sugiro-lhes que as reúnam, seja em um livro, um blog ou um canal de vídeo. A coletânea, além de humorística, poderia também ser educativa. Bem, talvez tudo isso já exista, talvez, por exemplo, Rita Von Hunty <aqui> inclusive já tenha postado sobre o tema, ou faço-lhe a sugestão.
Uma vez eu lamentava em silêncio o pouco espaço de que dispunha na classe turista, jocosamente apelidada por alguns francófonos de classe “tout risque” (todos os riscos), quando vi passar pelo corredor todo um time masculino de vôlei, uma sucessão de homens altos e fortes, um após outro, andando curvados, dada a altura da aeronave; “que sorte ter o meu tamanho!”, pensei. Outra vez, sentei-me ao lado de um homem grande e obeso, um passageiro de uma delicadeza ímpar que se esforçava em vão para ocupar apenas o espaço vertical relativo a seu assento. Cruzava os braços com força sobre o peito, mas o encosto de minha poltrona continuava compartilhado. Pedi à tripulação que o acomodasse melhor. Uma comissária mudou-me de lugar, deixando-lhe os dois assentos, e até hoje me arrependo de não lhe ter dito nada.
A limitação do espaço, porém, é apenas uma parte das tribulações que podem se colocar ao viajante.
Noutra ocasião, todos embarcados, o avião, ao invés de seguir normalmente, dirigiu-se à oficina para um pequeno reparo. Explicações dadas, paciência pedida e concedida – afinal, quem preferiria partir antes do conserto de um problema detectado? -, todos esperamos em tranquilidade, naquela possível, quando se sabe que algo mecânico estava errado, antes de um voo transoceânico. Uma hora mais tarde o piloto nos agradeceu pela paciência, informou que a aeronave estava em condições perfeitas e anunciou: “Agorra, estamus prrontus parra a descolagem!” Risos de apreensivos a tranquilos preencheram o ambiente.
“Nem tudo são rosas!”, como diz o provérbio português. Em meu primeiro longo voo, há muito, muito tempo, daqueles com escala em Dakar para reabastecimento e sequência à Europa, sentei-me numa poltrona que dava para o corredor. Tinha 16 anos. Na fileira à direita, também dando ao corredor, um homem de meia idade me olhava com insistência descortês. Após o jantar, luzes ainda acesas, seu olhar em minha direção se tornou agressivamente fixo, enquanto um jornal dobrado sobre suas pernas se movia na cadência de seu braço direito. Perplexa, procurei ajuda junto às comissárias. “Fique tranquila, ele satisfeito não vai mais importuná-la”. Insisti e me mudei de lugar. No desembarque, investi em evitar proximidade com o sujeito, inquieta se seria melhor sair na frente, no meio ou ao final.
Pensei que ela muito provavelmente votara no cujo e continuava convicta. Lamentei ter acabado a leitura de “O que será?”, de Jean Wyllys, e que o livro estivesse no fundo de minha mala. Desejei tê-lo em mãos como modo de incomodá-la.
Já presenciei um passageiro, irritado com o choro de um bebê, levantar-se e jogar água no pequenino. Fácil conceber a comoção causada e sua retirada para outro setor.
Também já assisti a alguém se recusar a conservar seu encosto ereto durante a refeição, alegando em voz pastosa estar sendo vítima de discriminação – também retirado. Em outra circunstância, passageiros afoitos após o pouso abriram o compartimento superior e uma mala caiu sobre mim. Doeu um pouco, nada de grave, muitos pedidos de desculpas.
Em meu último voo longo, após, 24 horas da partida de Lund, Suécia, com esperas dilatadas, embarquei para casa em Amsterdam. A passos lentos na fila, cheguei ao número de minha poltrona. O compartimento superior de bagagens tinha uma mochila meio vazia deitada, ocupando quase dois terços do espaço. Levantei-a, a pessoa que vinha atrás me ajudou, pegou minha mala de bordo e tentou guardá-la, mas uma rodinha enganchou na alça da mochila. Retirou a mala e eu, a mochila, que reacomodei após a mala. Mala e mochila de volta, fechamos o compartimento. Sentei-me, procurei a coberta e o travesseiro usuais, não os encontrei. Como o avião estava em abastecimento, peguei meu Zweig (Les très riches heures de l’humanité), capítulo “Le génie d’une nuit”, sobre a composição do hino da França, La Marseillaise, e me concentrei na leitura por um pouco.
“A senhora mexeu na minha bagagem!”, ouvi.
“Ãnh, falou comigo?”, perguntei, segurando o livro.
“A senhora mexeu na minha bagagem!”, repetiu minha vizinha à esquerda.
“A mochila? Ela estava deitada e ocupava quase todo o espaço, levantei-a para acomodar minha mala”.
“Ela tem coisas que quebram, cheguei cedo e peguei o lugar!”, disse-me.
“Sua mochila, deitada, ocupava mais espaço do que o necessário, levantei-a para ao lado caber minha mala”.
“Não, a senhora retirou minha bagagem de onde eu tinha posto e colocou a sua no lugar!”
“Sua bagagem está aí em cima, eu apenas a reacomodei de modo a caber a minha.”
“A senhora que chegasse cedo, como eu cheguei, acomodei minha bagagem ali porque tem coisas que quebram.”
“Movi sua mochila exatamente porque não poria minha mala em cima dela.”
“Não caberia em cima, não estava deitada, a senhora é muito sem educação.”
“Senhora, a gravidade tem o poder de fazer coisas mudarem de posição, estava deitada.”
“A senhora que chegasse cedo, como eu cheguei, tem coisas que quebram”, repetiu.
“Por favor, olhe se quebrou algo, faço questão de pagar.”
“A senhora é muito sem educação! Como pôde mexer em minha bagagem?”
“Senhora, não mexi em sua bagagem, apenas acomodei sua mochila para caber minha mala.”
“É muita falta de educação sua. A senhora não tem educação!”
“A senhora não me conhece, como pode afirmar isso? Peço-lhe desculpas se ajeitar sua bagagem a ofendeu, mas sua mochila ocupava muito mais espaço do que o necessário!”
“A senhora é muito mal-educada. Mexeu na minha bagagem.”
“Por fa-vor”, destaquei as sílabas, exasperando-me, “ve-ri-fi-que se al-go foi da-ni-fi-ca-do, faço questão de lhe pagar por qualquer dano que eu tenha causado, se is-so o-cor-reu.”
O som anunciava que seguíamos para a decolagem. Ela me olhou fixamente e disse:
“Não vou olhar agora!”
Recostei-me. Pensei que ela muito provavelmente votara no cujo e continuava convicta. Lamentei ter acabado a leitura de “O que será?”, de Jean Wyllys, e que o livro estivesse no fundo de minha mala. Desejei tê-lo em mãos como modo de incomodá-la. Se pudesse, eu o pegaria para reler trechos, no lugar do Zweig em minhas mãos. Fechei os olhos.
Com frio, no meio do voo, procurei uma comissária e pedi coberta e travesseiro. Descansei como se pode fazê-lo em voos na classe “tout risque”. De manhã, ao aterrissarmos, filas precipitadas se compondo no corredor, minha vizinha se levantou e abriu um compartimento superior. Nele havia uma grande sacola, imediatamente resgatada, em cuja sequência ela, minha vizinha, guardou travesseiro e coberta e o fechou. Achei estranho – quem, num avião, guarda travesseiro e coberta usados e que são recolhidos para lavagem? Do compartimento ao lado, recuperou o que era seu. Abriu um a um cada zíper de sua mochila, examinando minuciosamente seu conteúdo. Eu insistia em ler, mas acompanhava seus movimentos meio de soslaio, meio no campo lateral de visão. Como não me dirigiu a palavra, deduzi que seus pertences estavam em ordem.
A fila começou a andar. Levantei-me, peguei minha mala e, sei lá o que me deu, abri o compartimento aberto e fechado por ela: dois cobertores, além de travesseiro(s). Minha vizinha, que me censurou e acusou de falta de educação por ocupar espaço de bagagem que queria só para si, pegou também o cobertor que seria “meu”, sem nada dizer, e permaneceu com ele, também sem nada dizer. Nesse momento, cruzei o olhar com uma comissária, que me sorriu meio sem graça, como que pedindo desculpas pela vizinha que tive. Dei de ombros e lhe sorri de volta.
Cheguei com nariz, ouvidos e garganta doendo. Experienciei no frio e no corpo um índice da falência civilizacional instalada nesta pátria mal-amada, cada vez menos gentil.
ELIZABETH HARKOT DE LA TAILLE escreve todo dia 2 de cada mês na Revista PUB. É Doutora em Semiótica e Lingüística Geral pela USP e Professora Associada Livre Docente da Universidade de São Paulo nas áreas da Língua Inglesa e Linguística.
Adorei!!!
Tomei suas dores contra esses viajantes “sem noção bem educação”.