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Todos temos preconceitos

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-ELIZABETH HARKOT DE LA TAILLE-


Todos temos preconceitos, mas nem todos discriminamos [1]. O Museo Memoria y Tolerancia é único no planeta. Situado na cidade do México, propõe-se a “[d]ifundir a importância da tolerância, da não violência, da memória e dos Direitos Humanos”, por meio de exposições permanentes e temporárias que sensibilizam, promovem conscientização e almejam levar à reflexão e à ação social. Contém uma seção “Memória”, dedicada aos genocídios do século XX (conforme a definição da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948), outra chamada “Tolerância”, abarcando temas como diálogo, discriminação, Direitos Humanos, poder dos meios de comunicação, realidades intoleráveis, atos que inspiram etc., um setor educativo interativo para crianças e a seção temporária atual, sobre as pessoas com deficiência, face a seus muitos desafios.


Meu objetivo, todavia, não é contar sobre esse extraordinário museu, que você pode conhecer um pouco pelos links citados e deles seguir a outros. Será uma excelente experiência, garanto. Hoje, concentro-me na insígnia empregada como título e em ideias suscitadas pelo texto de Rui Vianna, publicado aqui mesmo, há alguns dias. Em Conta bancária celestial (Heavenly bank account), o autor resgata a canção homônima de Frank Zappa, cuja letra discorre sobre um pastor milionário, super astro da TV, e critica as relações entre religião, poder político e econômico, principalmente o uso da primeira como meio de obtenção dos dois últimos. E partindo de Zappa, Rui Vianna reflete acerca do contexto brasileiro atual.


O artigo é forte e certeiro e me fez pensar em outras canções de rock sobre a manipulação da fé alheia. Lembrei-me de uma, de 2007, que me foi apresentada por meus filhos, Praise the Lord and Pass the Ammunition, de Serj Tankian, vocalista do extinto System of a Down, ou SOAD, banda de Heavy Rock ainda bastante apreciada. É possível ouvi-la aqui e constatar a atmosfera angustiante que a voz ora lancinante, ora aflitiva, e os instrumentos em aparente algazarra constroem. A letra é de difícil tradução, pois usa expressões do inglês coloquial, raramente correspondentes às primeiras definições de dicionários. Como seu título anuncia, seu foco recai sobre a associação de religião e guerra.

Eis sua primeira parte, três estrofes, que traduzo livremente, porque as traduções a que tive acesso na Internet não fazem muito sentido.

Praise the Lord and Pass the Ammunition

Come lay it down (won't you) Come burn it down (can't you) Lay it down (the guns above) above the ground Come lay it down (won't you) Come burn it down (can't you) Lay it down (the guns above) above the ground

Nlelith is a prophet From the prophet came the king From the king came the pauper From the pauper came the swing From the swing came creation From the creation came love You dont know what this love is all about

Praise the Lord and pass the ammunition Praise praise the Lord and pass the ammunition Life affirming and our spiritual trust


Louva a Deus e passa a munição

Vai, atira para matar (anda!)

Vai, incendeia (não dá?)

Atira (as armas acima) acima do chão

Vai, atira para matar (anda!)

Vai, incendeia (não dá?)

Atira (as armas acima) acima do chão

Nlelith é um profeta

Do profeta veio o rei

Do rei veio o pobre

Do pobre veio o swing

Do swing veio a crença na criação

Dessa crença veio o amor

Você não sabe o que é esse amor

Louva a Deus e passa a munição

Louva a Deus e passa a munição

Com otimismo e nossa confiança espiritual

...


Ela começa numa ambientação de desvario em tensão crescente, num encorajamento para a ação de combate, como diante de hesitação e necessidade de estímulo por parte de quem deve impingir a morte, disparando tiros e lançando fogo. Segue uma estrofe explicativa, mas em sequência tão rápida e sincopada que não deixa tempo para reflexão. Freneticamente, ela evolui de causas a consequências, conectando, de maior a menor importância, profeta, rei, pobre, música, religião e amor, um amor que não é o que parece. Mantendo o tempo apressado, mas não as síncopes, entra a terceira estrofe, recuperando o ar de angústia e ligando profeta, religião, estranho amor e o atiçamento à ação mortífera da primeira estrofe. A voz e os instrumentos sugerem atos encadeados mecânica e ritmadamente, conjugando louvor a Deus e movimentos repetidos de passar adiante a munição, junto da recomendação de pensar positivo e manter a confiança espiritual. Um profundo teor crítico à associação da fé com a guerra instala-se e permeia toda a canção.


Serj Tankian é de origem armênia e vive nos EUA. Pacifista, costuma ter papel ativo em manifestações contra guerras, pelo meio ambiente, por Direitos Humanos.


Ouvindo a canção, conhecendo a campanha que se difundia em favor do reconhecimento do massacre armênio perpetrado pelo Império Otomano como o primeiro genocídio do século XX - que em seu centenário foi assim assumido por Papa Francisco, em 2015, – e acompanhando as notícias das ações e consolidação do Estado Islâmico, na época, rapidamente compreendi a letra como crítica às guerras e aos atentados de responsabilidade do fundamentalismo islâmico.


No fim de semana, ao inserir num buscador “Praise the Lord and pass the ammunition”, para resgatar a canção e pensar neste artigo, deparei-me com uma imagem, para mim, inesperada:


Ouvi aqui uma canção patriótica americana, de 1942, de autoria de Frank Loesser, publicada em partitura no mesmo ano por Famous Music Corp. Composta em resposta ao ataque de Pearl Harbor, rapidamente tornou-se um sucesso e vendeu 450.000 cópias em dois meses. Entre 1942 e 1943, foi gravada por vários músicos distintos que alcançaram classificações entre as “10 primeiras”, em diferentes listagens, chegando a número 1. Loesser doou os royalties para a Navy Relief Society.


Conta-se uma história sobre a motivação para a composição, talvez uma lenda, embora tenha sido confirmada por oficiais do navio USS New Orleans: no navio sob ataque, um capelão, responsável pela equipe de manejo das armas, preocupado com o moral dos soldados sob seu comando durante a batalha andou pelos soldados, dando-lhes tapinhas nas costas e repetindo o bordão “praise the Lord and pass the ammunition”.


Lembrei-me do museu mexicano.


Se eu tivesse me aventurado a fazer um videoclipe para a canção de Serj Tankian, não teria hesitado um minuto em colocar homens barbados de turbante louvando a Alá e passando adiante a munição. Eis que conhecendo um pouco mais sobre ela, aprendo que a letra tem apoio na história de um capelão, que prega que Deus é amor.


Ocupando o lugar de quem incita ao ataque em nome de Deus, encontrei não um fanático do islamismo, mas um membro de fé cristã, do Deus de amor e bondade.


Fui preconceituosa, de fato. Necessariamente, tratamos pessoas e fatos novos com nossos conhecimentos, o que não justifica fazermos uma leitura do mundo estática, sempre igual a si mesma. Podemos compreender mais e melhor, não há dúvida. Entrementes, o que está realmente ao nosso alcance sempre são nossas escolhas sobre como agir em relação a outrem.


Se é verdade que “todos temos preconceitos”, também é verdade que “nem todos discriminamos”, que podemos não discriminar.

[1] Todos tenemos prejuicios, pero no todos discriminamos, divisa encontrada no Museo Memoria y Tolerancia e título de uma conferência de Diana Luz Pessoa de Barros, professora emérita da FFLCH.

 

Elizabeth Harkot de la Taille escreve todo dia 2 de cada mês na Revista PUB. É Doutora em Semiótica e Lingüística Geral pela USP e Professora Associada Livre Docente da Universidade de São Paulo nas áreas da Língua Inglesa e Linguística.

Obs: Este artigo foi excepcionalmente publicado no dia 3.7.2019 e não no dia 2, por motivos de ordem técnica.


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