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SESSÃO DE TERAPIA

- Ricardo Antonio Lucas Camargo -

- Estou cansado, doutor. É este o motivo da nossa consulta. Foi por isto que minha mulher me encaminhou ao senhor.


- Como cansado?


- Já advogo há mais de trinta anos. Estou muito cansado.


- Por quê? Conheço muitos profissionais bem sucedidos na advocacia que estão há mais de trinta anos e estão em pleno vigor.


- Sim. Mas muitos deles tiveram de aposentar ou os escrúpulos ou os sentimentos. Penso que, nisto, falhei miseravelmente. E isso não é dito em termos de sucesso profissional, não.


- Então, qual é o problema?


- Ontem assisti a um julgamento no Tribunal Regional do Trabalho*. Despediram um professor por justa causa. Ele ajuizou a reclamação trabalhista, que foi julgada improcedente. E o Tribunal manteve. Sabe qual era a justa causa? “Doutrinação comunista”. Em que consistiu a “doutrinação comunista”? Foi ter dado para os alunos fazerem a ficha de leitura do “Morte e vida severina”, do João Cabral de Mello Neto.


- Não conheço o livro. Mas, mesmo que seja uma injustiça – não tenho elementos para dizer que seja -, isso é motivo para ficar deprimido?


- Doutor, sabe o que significa isto? Significa abrir o caminho para, em situações semelhantes, quebrar a liberdade de cátedra, a liberdade que todo professor tem de cumprir o programa pedagógico da forma que lhe parecer melhor. Essa decisão é injusta por si mesma, independentemente do teor do livro pedido, que, a bem de ver, é obra consagrada, de um dos maiores poetas brasileiros, e que foi até musicada pelo Chico Buarque de Hollanda.


- Hum, hum...


- Ando perdendo o sono, e minha mulher tem se queixado de que estou muito irritadiço. Talvez, ao contrário de muitos dos meus colegas, eu tenha ficado cansado de provocar o choro de inquilinos em ações de despejo ou de ver o sujeito a debochar da mulher ao reduzir a pensão paga ao filho sob a guarda dela, embora já tenha, em outros tempos, sido motivo de regozijo a vitória sobre o adversário dos meus clientes. Isto, embora me machuque um pouco, hoje, ainda está nos limites do suportável. Mas como é que posso ficar tranquilo quando vejo um caso em que o Tribunal do Trabalho vê justa causa na escolha de um livro que, a seu ver, seria “doutrinação comunista”, vejo um cliente meu, numa ação de danos morais contra um indivíduo que o acusou falsamente de uma desonestidade, ver rejeitado o seu pedido ao argumento de que, por ser ele de esquerda, não tem honra e a desonestidade, nele, é presumida, até prova em contrário? As ações em que defendo empresas têm sido bem sucedidas. Aquelas em que defendo pessoa física que não tenha posições políticas ou religiosas conhecidas, também. Quer dizer, o Estado, juiz, aqui está a negar o direito a pessoas menos em razão do caso do que das posições políticas, filosóficas ou religiosas dessas pessoas. Isso não é de deprimir?


- Só um minuto, por favor. Tenho de ir ao banheiro.


- Está bem, doutor.


- Aqui está o valor, para preencher o cheque. Ah, o interfone está tocando! Alô? Sim, pode mandar subir, por favor, fui eu que chamei. Nós vamos, a partir de hoje, encerrar as nossas sessões. Você acabou de me informar que, diferentemente da maior parte de seus colegas de profissão, tem simpatias comunistas perigosas e, por isto, é cúmplice de uma rede de corruptores de crianças. De onde eu tirei isto? Muito simples. Você ficou deprimido pelo fato de um professor ter sido despedido por justa causa, já que fez as pobres criancinhas ficharem um livro de poesia comunista. Tanto era um livro comunista que o perigoso vermelho Chico Buarque de Hollanda pôs música naqueles versos. Já que você fica tão deprimido quando a justiça humana coincide com a Justiça Divina, a polícia já está na porta para o levar para se solidarizar com os monstros de que você tem tanta pena e, na cadeia, você vai descansar. Em nome de Jesus, podem levá-lo. Nada de pegar o telefone, isso, segurem bem firme o braço dele! Confessou que fez apologia de corrupção de menores, com certeza. Foi o que disse o Delegado, que é meu amigo, meu irmão de fé. Deus tenha pena de sua alma.


* O Tribunal do Trabalho no conto não é nenhum específico. A inspiração, aqui, volta-se em especial aos efeitos da campanha “Escola sem Partido”, que se disseminou pelo Brasil, intensificando-se em especial a partir de 2016.

 

Ricardo Antonio Lucas Camargo é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.

 

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