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“DOIS PAPAS” E O FARISAÍSMO

-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-


Foto - Divulgação Netflix

Visto o filme "Dois Papas", de Fernando Meirelles, a despeito de saber que há, dentre os que professam a fé católica, quem o considere manifestação de heresia, na minha condição de não-católico e admirador do Papa Francisco, tenho-o como uma realização de ótimo nível, em que o menor dos benefícios traduziu-se nas atuações brilhantes de Anthony Hopkins e Jonathan Pryce. A imagem do Papa Francisco enquanto um renovador da Igreja, no passo de João XXIII, sai reforçada, e os diálogos sobre o encontro fictício entre Bento XVI e Jorge Bergoglio, pondo tanto os temas teológicos e filosóficos quanto, mesmo, o próprio passado tenebroso deste último, no período da ditadura argentina, passado, este, que procurou redimir de todas as formas ao seu alcance, estão dentre os melhores que já foram levados à tela, no nível de roteiros como o de "O vento será tua herança" e o de "O homem que não vendeu sua alma". Se há heresia ou não, decidam-no entre si os que professam a religião Católica Apostólica Romana. Nós, não católicos, apreciamos a película como uma obra cinematográfica, do mesmo modo que o fazemos com um filme de Ingmar Bergman, de Vittorio de Sica ou de Fred Zinnemann.


Nos tempos atuais, ainda é preferida a linha de argumentação à base da afirmação da própria fé do que a discussão das bases das conclusões. O problema é que a afirmação da própria fé somente se torna eficaz entre pessoas que, cumulativamente, compartilham os mesmos dogmas e que tomam a estes como medida de todas as coisas. Os que amam suas irrefutáveis certezas dão ao substantivo "conversa" o sentido de "troca de palavras entre conversos do mesmo culto". Quando constato quão forte é nas pessoas a certeza das próprias verdades, deixo-as realizando os respectivos monólogos. A conversa torna-se inviável. Não precisamos fazer com que os donos das certezas se sintam ofendidos pelo fato de elas não serem tidas como evidentes por si.


Se há algo que me intriga é o quanto pessoas religiosas falam no Amor Divino e, ao mesmo tempo, não perdem a oportunidade de mostrarem sua infinita capacidade de odiar e destruir. Por mais que se reporte a experiência da URSS, em especial sob Estaline, com seus expurgos, e que se aponte para a reação do Ocidente livre ao nazi-fascismo, e se argumente com os Estados teocráticos do Oriente Médio como uma ameaça aos valores da liberdade, o regime franquista não pareceu perturbar o Ocidente livre, sem deixar de ser eminentemente fascista e teocrático. Proclamar a morte da inteligência e a necrolatria não foi considerado um preito de homenagem à barbárie, uma consagração da brutalidade, talvez porque não foi acompanhado de ações voltadas à colonização do mundo civilizado. Quando se fala em "genocida de estimação", para se minimizar o "legado" nazifascista em face das proezas da URSS, em especial sob Estaline, lembro que o Generalíssimo Franco, que se fez Ditador em nome da defesa da Fé Católica, e governou em caráter plenipotenciário, dispensando mesmo uma Constituição – algo que nem seu homólogo português, Salazar, cogitara, vez que o Estado Novo português tinha como documento-base a Constituição de 1933 – , foi feito parceiro privilegiado dos EUA em 1959. O então Presidente dos EUA, Dwight David Eisenhower, que comandara as tropas aliadas durante a Guerra, teve esta compreensão de um indivíduo que tomou o poder com o apoio, sobretudo aeronáutico, de Hitler e Mussolini. Vale recordar que, mesmo que o caráter autoritário do regime na Espanha tenha terminado com a morte de Franco e ali esteja em vigor a Constituição de 1978, os seus sucessores (reis de sangue Bourbon) são precisamente os que por ele foram indicados. Claro que haverá quem invoque em prol do Generalíssimo a passagem de Romanos, 8:33, quanto a justificar tudo o que se faz em nome de Deus. Às vezes, o nome d'Este é invocado em vão.


É comum a evocação da frase do personagem Ivan, no romance Os irmãos Karamazov, de Dostoievsky, quanto a tudo ser possível, se Deus não existir, para apontar uma tendência viciosa maior em descrentes e virtuosa maior em crentes em Deus. Conheço pessoas que crêem em alguma Divindade e vêem a possibilidade de fazerem o Bem como uma barganha para evitar o sofrimento pós-vida, e outras que não crêem que são capazes de fazer o Bem pura e simplesmente. Qual, de acordo com a própria moral adotada no contexto cristão-ocidental, seria mais louvável: o que tem a expectativa de benefício futuro ou o que não tem nenhuma expectativa? Personagens comuns a Eça de Queiroz e Monteiro Lobato – observadores de seu tempo tão atentos quanto Dostoievsky - são os religiosos que vivem orando enquanto fazem maldades a pessoas sob seu poder.


A religiosidade merece respeito quando se apresenta como forma do indivíduo relacionar-se com as potências que lhe pareçam estar por detrás do surgimento e funcionamento do mundo, mas deve ser objeto de preocupação quando se põe como meio de justificar a submissão de uns indivíduos a outros, em especial quando se afirma por qualquer tipo de violência. Quando se vê que as preocupações de tantos residem mais na frequência a cultos religiosos e na liturgia do que em usar o nome de Deus como justificativa para impor sofrimento aos semelhantes, não admira que entre pessoas de elevado sentimento ético arrefeça a fé (Mateus, 23:27). Vem a pelo renovar o que eu disse acerca da religiosidade, quando analisava a obra Doutor Fausto, de Thomas Mann:


Em vários momentos, põe o escritor teuto-brasileiro na boca do narrador, Professor Serenus Zeitblom, a expressão de meus pensamentos com as palavras que eu gostaria de haver escrito.

Por exemplo, minha posição em face da religiosidade está admiravelmente posta nesta passagem, em que o narrador recorda os tempos em que com o protagonista, o compositor Adrian Leverkühn, estudou teologia em Halle, trazendo, de quebra, a questão das lutas sectárias:

‘Não sou irreligioso, não. Pelo contrário, compartilho a opinião de Schleiermacher, outro teólogo de Halle, e que definiu a Religião como ‘o senso e o gosto do infinito’, vendo nela um ‘fato constituinte’, inerente ao homem. Por isso, a Ciência da Religião deveria lidar não só com axiomas filosóficos senão também com um fato psíquico, inerente às pessoas. [...] A religiosidade, que em absoluto julgo alheia a meu coração, é certamente diferente da religião positiva, ligada a uma confissão. Não teria sido mais indicado abandonar o ‘fato’ desse senso humano do infinito ao sentimento piedoso, às Belas-Artes, à livre contemplação e até à pesquisa exata, que sob forma de cosmologia, astronomia, física teórica pode servir a tal senso, dedicando-se de modo perfeitamente religioso ao mistério da Criação – ao invés de fazer dele uma ciência espiritual à parte e de alicerçar nele um edifício de dogmas, cujos adeptos se combatem cruelmente por causa de um verbo auxiliar?’[ MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 126-7].

Note-se que, nesta passagem, para o fim de iniciarmos os debates em torno da relevância deste romance para a compreensão da temática da sobrevivência do Estado de Direito, o próprio sentido da divergência de entendimentos como apta a gerar os conflitos em torno da concepção de vida, e a conversão do engajamento em tais ou quais correntes, sejam religiosas, sejam políticas, como apta a levar a distorções. Essas divergências em busca do que cada qual entenda como o melhor não só parasi quanto para o meio em que vive, inexoravelmente, tenderiam a explodir em disputas” [CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Adrian Leverkühn, o Anti-Parsifal. , acessado em 6 jul 2016].


Aos críticos de Woodstock e tantos movimentos de contestação da década de 70: lembremos o belo exemplo que davam os religiosos moralistas que bombardearam aldeias com napalm e apoiavam desaparecimentos e torturas. Mesmo que não se concorde com os caminhos que o protesto veio a tomar -- como eu mesmo não concordo --, não é possível negar que quantos dele participaram tinham toda a razão para se sentirem enganados por aqueles que estavam a ser contestados. Por isso, negaram os valores que seus enganadores defendiam.


Se existe algo que pode comprometer em muito a respeitabilidade de qualquer convicção religiosa, é a frequência com que seus seguidores se consideram os únicos merecedores da existência e titulares da prerrogativa de permitir ou não que os demais ocupem espaço no mundo. E temos visto não poucos a se comportarem – quando não a enunciam expressamente – de acordo com a seguinte máxima: "Bom cristão sabe que o conforto e o dinheiro são índices de graça divina e que o pobre só pode existir como oportunidade para se fazer caridade".


Por isto, só posso externar minha admiração pelos hercúleos esforços do Papa Francisco em erradicar o crescente farisaísmo na Igreja de que é o líder .

 

RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP)


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