-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-
Certa vez, tive um sonho em que um sujeito passava por um campo cheio de sulcos, de onde brotavam miniaturas humanas, perfeitas e vivas. Não deixavam de ser miniaturas, algumas, com a conformação adulta, outras, com a conformação infantil, proporcionais umas às outras.
Tudo o que brota de uma terra com sulcos tem de ter sido antes semeado. Portanto, aquelas miniaturas tinham sido, antes, semeadas. Pouco importa, aqui, a lógica biológica: é de um sonho que se trata.
E, por certo, não fora ele que os semeara, porque, a rigor, eles iam brotando em um território ao qual ele estava chegando. Também não saberia dizer quem é que tinha arado o solo, se fora a mesma pessoa que semeara ou se fora pessoa diferente. Não seria ele, por certo, o proprietário da terra da qual brotavam aqueles minúsculos humanos, nem se saberia dizer, a rigor, a quem ela pertencia. As ações de arar e semear poderiam ter sido realizadas pelo proprietário, ou por alguém às suas ordens, ou mesmo por alguém que não estivesse a ele subordinado.
Na mitologia grega, há episódios de seres humanos que nascem depois de terem sido semeados: há o episódio de Cadmo e o de Jasão. Ambos araram a terra e ambos realizaram a semeadura de dentes de dragões que tinham matado. E em ambos os episódios nasceram soldados armados, com desejos de destruir. O primeiro planta os dentes para obter os auxiliares na construção da cidade de Tebas. O segundo planta-os em atendimento a uma tarefa que lhe impôs o rei da Cólquida para poder levar consigo o Velo de Ouro.
Cadmo e Jasão, nos lugares em que mataram os dragões, eram estrangeiros. O primeiro, percorrendo as terras banhadas pelo Mar Egeu, em direção ao Oeste, vindo da Fenícia, buscando resgatar sua irmã Europa, raptada por Zeus, disfarçado em touro, que nela engendraria Minos, o rei de Creta. O segundo, tendo percorrido o Mar Egeu, na direção nordeste, comandando o navio Argos, buscando conquistar para o rei Pelias o dourado pelego de Crisómalos, o Velo de Ouro, guardado pelos citas da Cólquida, à margem do Mar Negro. O primeiro vai no cumprimento de uma missão familiar, na qual fracassará, entretanto, e terá de abandonar, por instrução do Oráculo de Delfos (Apolo), mudando a missão para a construção de uma cidade no lugar em que encontrasse uma novilha com uma mancha em forma de lua no pelo. O segundo, no cumprimento de uma missão de saque, na qual sairá vitorioso.
As circunstâncias da morte dos dragões são bem distintas: Cadmo mata um dragão que impedia a quem quer que fosse, inclusive ele mesmo, Cadmo, de saciar a sede em uma fonte consagrada a Ares, em combate leal, arriscando a sua própria vida. Jasão conquista o coração de Medeia, a filha do rei da Cólquida, grande conhecedora de feitiços e poções, que administra um sonífero ao monstro, possibilitando ao comandante do Argos liquidá-lo sem risco. Jasão não é, pois, nem de longe, já ao início do mito, o que corresponderia ao herói dos romances de cavalaria: o primeiro passo para chegar ao cumprimento de sua missão é uma trapaça, elimina o adversário durante o sono.
Ambos aram a terra, logo após a morte dos dragões e semeiam os respectivos dentes. Nascem soldados com ânimo belicoso em ambos os mitos, e em ambos eles crescem até o tamanho normal de um adulto. Tanto Cadmo quanto Jasão não se empenham em combater os guerreiros nascidos da Terra. O primeiro aguarda, pacientemente, que eles combatam entre si: sobram apenas cinco, com os quais, já cansados da luta, consegue juntar esforços para erigir, ao lado da fonte, a cidade de Tebas. O segundo, a partir de um aconselhamento de Medeia, atira uma pedra à cabeça de um dos soldados, de tal sorte que eles se entrematam, sem que sobre nenhum.
A maior parte das pessoas gostaria de identificar-se a Cadmo, enfrentando com bravura o dragão, despertando a admiração pelo heroísmo, juntando o destino dos guerreiros sobreviventes ao seu próprio, ao ponto de eles se virem a tornar seus genros.
Cadmo, pela morte do dragão, guardião de Ares, é obrigado a servir a este, como no Genesis teve Jacob de servir a Labão sete anos. Entretanto, por sua bravura, esposará a filha de Ares com Afrodite, Harmonia, irmã de Eros, Demos e Fobos. Gerará uma vasta descendência que viverá alguns dos infortúnios mais célebres do teatro grego: Édipo dela faz parte, e bem assim o deus Dionisos. Jasão será protegido por Medeia, que irá romper com o respectivo pai e o esposará, dando-lhe dois filhos, que serão, contudo, mortos pela própria mãe ainda crianças, em vingança: ele repudiará a esposa bárbara e os filhos para casar-se com a princesa de Corinto, Glauce, que também será eliminada pela esposa ultrajada.
A maior parte das pessoas gostaria de identificar-se a Cadmo, enfrentando com bravura o dragão, despertando a admiração pelo heroísmo, juntando o destino dos guerreiros sobreviventes ao seu próprio, ao ponto de eles se virem a tornar seus genros. Entretanto, o instinto de autopreservação e de busca do menor esforço presente em Jasão tem sido considerado, pela maior parte dos que se dispuseram a enfrentar o tema da “natureza humana”, como um traço mais característico do comum dos mortais: este não é normalmente corajoso, altruísta, mas autocentrado, egoísta, mesmo.
Cadmo pertence a um mundo em que se está passando de um estado de natureza, em que a força e a astúcia são os únicos meios por que cada qual pretende fazer valer seus interesses, para um estado civil, do qual ele é o construtor. Tudo, em seu mundo, está por fazer, e o arredar as soluções marcadas pelo voluntarismo, pelo arbítrio, é o escopo principal, para evitar que a convivência dos habitantes daquele determinado espaço geográfico dependa tão-somente das boas disposições de ânimo de cada um deles e da sorte nos combates. Mas, matador do dragão e semeador de seus dentes, chegará o dia em que ele e Harmonia terão de ser transformados em dragões, quando o rei de Tebas, seu neto, vier a ser despedaçado pelas bacantes por haver duvidado da condição divina de Dioniso. Harmonia, como seus irmãos, é filha da traição perpetrada contra Hefaistos por Afrodite, e os infortúnios que se abatem sobre a sua descendência decorrem do colar como presente de casamento dado a ela e Cadmo pelo deus artesão, que o confeccionara.
Jasão já é integrante de um mundo em que o emprego da violência já não se torna inexorável, em que já existem instituições que se apresentarão como preferíveis ao emprego da força pura e simples, e reserva a linguagem da força aos não integrantes do universo grego: é na condição de grego que repudiará Medeia, a bárbara, proveniente de um povo que tem fama de antropófago, e desprezará (até o momento da morte deles) os filhos que com ela teve, e buscará casar-se com a filha do rei de Corinto. E este, mesmo sabendo do risco que efetivamente corre (e se concretizará) ao permitir a Medeia que se demore para organizar a partida, assume-o, precisamente porque o exercício da força, puro e simples, não se justifica onde já se tenha implementado o Estado, e não se justifica contra quem quer que seja. A própria Medeia pagará um preço alto pela sua vingança, pelo seu desejo de fazer o mal a quem a ultrajou: a eliminação dos próprios filhos. Medeia, pois, produz o retorno ao mundo com que Cadmo rompera, “os rios remontam à nascente”, como diz o coro na tragédia que Eurípides dedicou à matricida.
Ninguém quer ser “homúnculo”, ninguém quer ser “medíocre”, ninguém quer ser integrante daquilo que Nietzsche chamava de “rebanho”, todos querem, como dizia Álvaro de Campos, ser “príncipes”, e paradoxalmente a maior parte busca a tranquilidade.
Tudo isto, para dizer que são heróis praticamente antípodas os que semeiam os dentes do dragão. E, por outro lado, os seres que foram semeados nos mitos são guerreiros, que chegam ao tamanho natural de um adulto com a vontade de destruir, embora no primeiro se convertam em construtores, enquanto no segundo se entre-aniquilam. De qualquer modo, as características dos semeadores não se comunicam, nem em um mito, nem no outro, aos seres que brotam da terra.
No sonho, os seres que brotam são miniaturas. Quem preparou a terra e quem os semeou, não produziu outra coisa que miniaturas, seres que não crescerão, que ocuparão menor espaço. Terá sido desejado tal resultado, a produção dos liliputianos, ou terá ocorrido a despeito dos desígnios de quem os produziu? Os seres que brotam do solo como seres diminutos, como seres pequenos, seres mesquinhos, por um defeito de preparação, seja intencional ou não, do solo que os nutriu. Seres pequenos tendem a convergir em torno de um grande, no qual depositam suas esperanças.
Entretanto, quando o grande não pretenda servir-se dos pequenos, estes por vezes identificam o não aproveitamento dessa oportunidade como fraqueza. Embora os liliputianos se sirvam de Gulliver para vencer Blefescu, a outra nação de miniaturas, em sua guerra motivada pela divergência entre as miniaturas humanas sobre a forma de quebrar ovos, o que quer que faça não lhe retirará a condição de indesejável. Ele não pertence àquele lugar, tal como Jasão não pertence a lugar algum, e diferentemente de Cadmo, que, saído de seu lugar de origem, vai lançar as bases de uma comunidade politicamente organizada, retira-se e prossegue viagem. O herói de Swift prefere retirar-se a ceder, outrossim, à tentação, justificável, no seu caso, de esmagar os homúnculos, simplesmente.
Os liliputianos estavam ali antes de Gulliver chegar, e permanecem à sua partida. Ao contrário de Cadmo e Jasão, não contribuiu para o advento dos homúnculos, nem mesmo os viu nascer, seja pelo parto, seja da terra. Ainda assim, como os soldados que nascem da terra, são belicosos. E são hostis ao que quer que lhes pareça estranho, ao que quer que não lhes pareça familiar.
Em seu filme Alexandre Nevsky, de 1938, Sergei Eisenstein compõe uma cena que, mesmo referindo-se a um dado histórico, dá a impressão de os mujiques, ao saírem de suas casas subterrâneas para irem combater, sob a liderança do personagem-título, as forças da Liga Hanseática, brotarem do solo. Os camponeses são hostis, são belicosos, diante de um invasor, e se reúnem em torno da liderança do militar Nevsky. Não são miniaturas, como os liliputianos, e não são soldados experimentados, a despeito de irem enfrentar os invasores, enquanto, na banda sonora, um coro misto canta os versos “Levanta-te, povo russo”, musicados por Sergei Prokofiev.
E os homens pequenos do famoso texto de Wilhelm Reich Listen, little man, vertido ao português como Escuta, Zé Ninguém, que seriam os “homens comuns” cujo crescimento se daria a partir da contínua autonegação, cuja sobrevivência seria decorrente da alienação, cuja tranquilidade decorreria de uma sincera imersão na áurea mediocridade?
Ninguém quer ser “homúnculo”, ninguém quer ser “medíocre”, ninguém quer ser integrante daquilo que Nietzsche chamava de “rebanho”, todos querem, como dizia Álvaro de Campos, ser “príncipes”, e paradoxalmente a maior parte busca a tranquilidade. E quem quer que, de algum modo se destaque, para os “homúnculos”, vem a colocar em perigo algo que corresponde ao que “sempre foi, é e sempre será” e, por isto, deve ser neutralizado e trazido ao nível da mediocridade, sob pena de destruição. Nada mais grave do que essa usurpação de prerrogativas divinas chamada “afirmação da própria individualidade”, a menos que tal afirmação seja provada útil ao conforto dos “homúnculos”: “só poderás existir na medida em que tua existência me servir para alguma coisa; do contrário, estás a ocupar espaço vital escasso para aqueles que realmente merecem existir, por determinação da natureza das coisas”.
Um sonho destes, com miniaturas nascidas da terra, sempre belicosas, com semeaduras, evocando a saída da barbárie e as promessas não cumpridas da civilização conduzindo ao retorno à lei da força e da astúcia, trazendo, também, a associação com a “mediocridade” como condição de “submissão” e, ao mesmo tempo, como portadora da “promessa de paz e tranquilidade”, poderia, a um escritor de mais talento e criatividade, fornecer material para um conto ou poema, ainda mais com a recorrência da atração pela selvageria, em especial no contexto brasileiro, em que os próprios fundamentos da civilização passam a ser questionados, ao “argumento” de que só servem para enfraquecer aqueles que lutam diariamente para que o Bem vença o Mal. Seres diminutos são menos visíveis, e segue como regra, onde a liberdade humana seja vista como concessão de hierarcas superiores, o “quem não é visto, não é lembrado”: a confusão, em meio ao rebanho, a doce mediocridade, como aconchego, como escudo em relação aos beleguins. Mas nem sempre não ser visto é não ser lembrado e estar seguro: basta recordar a visita, de que não saiu vivo, que Vladimir Herzog fez ao DOI-CODI em São Paulo, mesmo se mantendo discreto e longe da militância.
E que dizer, então, do sujeito que passa e simplesmente observa as miniaturas vivas brotarem da terra? Poderia, num exercício extremo de imaginação, ser equiparado à própria comunidade universitária, que tem o saber ali guardado e produzido como algo mais do que o senso comum próprio da raia miúda. Esta, contraditoriamente, queixa-se daquela tanto por lhe imputar esnobismo e alienação quanto por lhe imputar a prática de insuflar a desordem e a destruição dos valores sagrados que fundamentam a família e definem as pessoas honestas e ordeiras. E mostra-se, inclusive, pouco disposta a receber mesmo provas de que sua percepção pode ser preconceituosa, vez que o esnobismo, de fato, não é raro – embora não unânime – na comunidade universitária, e nem sempre os temas que afloram ali têm a sua importância apreensível pelo público e, por outro lado, toda atitude de contestação, justificada ou não, tende a ser vista como ilegítima por quem acredita na “promessa de paz e tranquilidade”.
“Egg head” – “Cabeça de ovo” – era a denominação pejorativa que os beleguins do macartismo reservavam aos sempre suspeitos intelectuais, tidos como antiamericanos quando fugiam do simplismo exigido pelo senso comum puritano nos EUA dos tempos de Truman e Eisenhower. Mesmo a exposição de ideias pouco ortodoxas vem a ser equiparada ao consumo de substâncias psicotrópicas, à destruição de bens públicos e privados e, mesmo, a agressões físicas. Por outro lado, anseiam pelas comodidades que a ciência e tecnologia propiciam. O grande paradoxo será a convocação, pelo produto da ciência – pelas vias eletrônicas -, dos autos-de-fé. Já não se difunde, por este meio, o “terraplanismo”?
Poderemos ignorar os seres minúsculos, liliputianos, que brotam do solo? Quais serão seus reais problemas? Eles têm consciência desses problemas? Nós temos como ajudá-los? Sua situação, no mundo, será mais desvantajosa que a nossa? Suas crenças são realmente baseadas em ilusões? E, se forem, haverá alguma vantagem, para eles, em tê-las destruídas? Quais são os laços que os unem entre si? Ou nada os une, salvo a circunstância aleatória de terem nascido em um mesmo espaço geográfico, terem brotado do mesmo solo? Mais: será que nós somos algo diferente dos liliputianos? Ou não passamos de miniaturas que se puseram sobre pernas de pau, pretendendo andar e ver mais longe?
RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO escreve todo dia 4 de cada mês na Revista PUB. Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP)
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