- Guilherme Purvin -
Na manhã de sábado, dia 30 de novembro, o Cineclube José Eduardo Ramos Rodrigues (IBAP / APRODAB) exibiu o filme Vergonha, de Ingmar Bergman. Realizado em 1968, o filme transcorre na Ilha de Faro, onde o mais famoso cineasta da Suécia vivia e onde também dirigiu Através de um espelho (1961), Persona (1966) e A Paixão de Ana (1969).
Eva (Liv Ullmann) e Jan (Max von Sydow) formam um casal que se refugia numa ilha para fugir de uma guerra. Os dois são músicos, mas a orquestra em que trabalhavam não existe mais, foi desmontada em razão da crise que ocorre no país. A inspiração é a Guerra do Vietnã. Todavia, Bergman não está preocupado em realizar qualquer tipo de reconstituição histórica e sim em analisar o comportamento das pessoas em meio à loucura armada. Toda guerra é igual - mudam as tecnologias, os discursos, as pessoas, mas não o essencial: a irracionalidade, a violência, a desumanidade.
A primeira parte do filme transcorre com uma lentidão quase exasperante: o jovem casal sobrevive da plantação de sua pequena horta e sonha com o dia em que a guerra terá um fim e eles poderão, finalmente, ter um filho. Eva tem 28 anos de idade e aparenta ser mais decidida e forte do que Jan. A aparência rígida de Eva, contudo, rapidamente se desfaz num sorriso apaixonado diante das declarações de amor de Jan.
E então, o ritmo lento, marcado por um telefone e um rádio que não funcionam (isolando o casal na ignorância da realidade política), é violentamente interrompido pelo ruído ensurdecedor de aviões de guerra bombardeando a ilha. O medo difuso transforma-se em pavor e certeza de que nada voltará a ser como antes. Acaba a vida civil, tem início o pesadelo militar. Ressalto aqui a figura do personagem Jacobi (Gunnar Björnstrand), uma pequena autoridade local e que tanto se assemelha à legião de adesistas amorais que sempre surgem nos momentos de crise civilizatória. Eva e Jan são abordados por soldados do exército invasor, Eva é entrevistada por eles e diante de uma câmera, é obrigada a responder a perguntas sobre a situação política do país. Ela, assim como Jan, nada sabe responder. Não entende de política: o aparelho de rádio está quebrado. A entrevista chega às mãos do governo, que imediatamente convoca o casal para prestar depoimento. E o que é exibido não passa de grosseira montagem: outra voz sobrepõe-se à de Eva e faz afirmações de regozijo diante da chegada do exército "libertador". Eva protesta, afirma que jamais disse aquilo.
É impossível a nós deixarmos de comparar esta cena com a profusão de fake news e montagens de falsas declarações nas redes sociais. Visto 50 anos após seu lançamento, Vergonha é quase que um retrato do Brasil contemporâneo. Quando tudo parece caminhar para um irremediável fuzilamento, porém, o casal é libertado: Jacobi, a autoridade local, afirma haver constatado que a entrevista era uma montagem, uma falsificação. O que teria levado um governo a falsificar uma entrevista e, logo em seguida, contar às vítimas que acabara de concluir que aquilo era uma impostura? O casal é absolvido: o governo age com "justiça" e agora é imperativo que o casal sirva-o incondicionalmente - inclusive sexualmente.
No meio do filme, Eva diz a Jan algo mais ou menos assim:
"Às vezes sinto como se estivesse num sonho. Não, porém, um sonho meu, mas o de outra pessoa, de uma pessoa que ao despertar sentirá muita vergonha do que sonhou".
O comentário de Eva cala fundo a todos nós, os brasileiros que subitamente, fomos atirados no vergonhoso pesadelo político de pessoas desprovidas de qualquer senso ético ou de sensibilidade artística - que insistem em transformar o país num palco de guerra constante, na qual as vítimas são as mulheres, os índios, os negros, as pessoas que não frequentam suas igrejas, os trabalhadores, os poetas, cineastas, atores de teatro, a comunidade LGBT.
Somos violentados a participar de um sonho que não é nosso, um pesadelo de orgiástica violência. E, a cada dia, menos esperanças podemos depositar nas instituições que acreditávamos serem os garantidores da democracia: os meios de comunicação (rádio, TV, jornais, revistas de grande circulação), o Ministério Público, os Poderes Judiciário e Legislativo. >>>
>>> Resta saber se, ao acordarmos deste pesadelo, aqueles que com tanta falta de pejo aderiram às mentiras do poder instalado nesta nossa Ilha de Vera Cruz, pessoas com quem até há tão pouco tempo convivíamos pacificamente, sentirão vergonha por todos os danos que causaram à democracia brasileira tão duramente conquistada em 5 de outubro de 1988. Neste momento, vivemos ainda a primeira parte do filme. Mas não é inevitável que se passe ao pesadelo vivido por Eva e Jan. Afinal, nossos rádios e telefones ainda funcionam. <<<
Mais sobre "Vergonha", de Bergman:
Ingmar Bergman se arrisca em drama de tom político, de Cássio Starling Carlos
Crítica - Vergonha (1968), de Luiz Santiago
"A Vergonha" de Bergman, de Sao Reino
Guilherme Purvin, graduado em Letras e Direito pela USP, é Doutor em Direito Ambiental, escritor e advogado.
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