LIRA PAULISTANA E SUAS CRIAS - ARRIGO BARNABÉ
- Revista Pub
- 6 de jun.
- 4 min de leitura
-RUI VIANNA-
Arrigo Barnabé tem várias características musicais profundamente marcantes. A mais lembrada delas talvez seja sua voz. Quem, conhecedor de uma pequena parte de sua obra, nem que seja apenas Clara Crocodilo, não tem na lembrança sua introdução, quase que aos gritos roucos, na música homônima: " São Paulo, 31 de dezembro de 1999. Falta pouco, muito pouco mesmo para o ano 2000..." Não? Então vamos relembrar, ou descobrir.

Arrigo foi um dos pioneiros do Teatro Lira Paulistana, e trazia um som absolutamente inclassificável (as más, muito más, línguas, o acusavam de plagiar descaradamente a música de Frank Zappa), com instrumentação bastante variada, naipe de metais, guitarra, baixo, bateria, teclados, percussão e um backing vocals feminino de primeiríssima qualidade. Contava histórias fantásticas e assustadoras, como a já citada Clara Crocodilo, um ser resultante de experiências realizadas por um laboratório farmacêutico, ou ainda Tubarões Voadores, peixes terríveis que circulavam pelos ares da grande metrópole, destuindo e devorando o que encontravam pela frente.
Mas contava também histórias como Diversões Eletrônicas, um panorama enfumaçado da noite paulistana, com seu refrão repetido interminavelmente "Era um balcão de bar de fórmica vermelha" e descreve em linhas breves uma desilusão amorosa, e a relação entre a mariposa e seu cafetão. Tem um amigo meu que incorporava o personagem, rodando por intermináveis bares do centro velho de São Paulo e adjacências, atormendando-se por amores impossíveis de diversas "mariposas" habitantes dos mais variados inferninhos da perdida década de 1980. Ou ainda a satírica "Neide Manicure Pedicure" do álbum Tubarões Voadores, onde o garotinho "...largou o caratê, largou o caratê, pra fazer balet."
Talvez o maior traço de união da música de Arrigo e sua Banda Sabor de Veneno seja a descrição crua e sem retoques de uma metrópole que em muito se assemelha às ruas imundas, úmidas, apinhadas, de Blade Runer. Violência, desilusão, amores impossíveis e o fantástico, tudo misturado num caldo ora indigesto, ora surpreendente, mas sempre inovador e de altíssima qualidade sonora.
O paranaense Arrigo Barnabé, nascido em Londrina em 1951, fez toda sua carreira em São Paulo, tendo sido aluno da ECA, USP, onde conheceu o parceiro Luiz Gê, que ilustra as capas dos seus dois primeiros álbuns. Tem uma discografia extensa e uma atuação diversificada em várias áreas das artes.
Mas, para mim, o mais sensacional desse músico e performista, sempre foi a memória que ele evoca. Um período de muita curtição, aventuras rocambolescas, algumas vezes perigosas, na noite paulistana e que, entre alguns amigos da SanFran, terminavam de forma nebulosa no Guarujá, na casa da família de um amigão, num desfecho às vezes inexplicável, com os 4 ou 5 perambulando pela praia da Enseada, de ressaca e mal dormidos, mas felizes e falantes.
Me lembro ainda de uma festa na ECA-USP, em um ambiente mal iluminado e sem ventilação adequada, que se assemelhava muito à uma caverna, com muita gente e aditivos, que, num determinado momento, com o som desligado, parou para receber o ídolo, aos gritos entusiasmados de :" Arrigo, Arrigo!". E o mesmo desfilou como um general romano em revista às tropas. E, uma curiosidade, atuou como ator de uma novela da Globo, Direito de Amar, em 1987, além de várias atuações em filmes.
Tudo isso trazia como trilha sonora a tempestade musical de Arrigo Barnabé e a sua indescritível banda Sabor de Veneno, que era composta por: Regina Porto (piano), Bozo (sintetizador e piano), Paulo Barnabé (bateria e percussão), Gi Gibson (guitarra e violão), Rogério (percussão), Otávio Fialho (baixo), Ronei Stella (trombone), Chico Guedes (saxofone e clarineta), Baldo Versolatto (saxofone e clarineta), Mané Silveira (sax e flauta), Félix. Em alguns shows, a banda também contou com outros músicos como Vânia Bastos, Suzana Salles e Ana Amélia (que substituiu Tetê Espíndola, vocalista original do disco "Clara Crocodilo").
É autor de uma impressionante discografia:
1986 - Cidade Oculta (trilha sonora)
1987 - Suspeito
1992 - Façanhas
1997 - Ed Mort (trilha sonora)
1998 - Gigante Negão
1999 - A Saga de Clara Crocodilo
2004 - Coletânea 25 Anos de Clara Crocodilo (inclui: Clara Crocodilo, Tubarões Voadores, Gigante Negão, A Saga de Clara Crocodilo e Uma Suíte a Quatro Mãos)
2004 - Missa In Memoriam Arthur Bispo do Rosário
2007 - Missa In Memoriam Itamar Assumpção
2008 - Arrigo Barnabé & Paulo Braga, Ao Vivo em Porto
2014 - De Nada a Mais a Algo Além - Ao Vivo No Sesc Vila Mariana
2017 - Trilha Sonora do Filme Oriundi - True Love is Timeless
2024 - Arrigo Visita Itamar (Ao Vivo)
2025 - Relicário: Arrigo Barnabé & Banda Sabor de Veneno (Ao Vivo no Sesc 1980)
E, como gran finale, uma recordação valiosa dos tempos da SanFran, nos estertores da ditadura. O Centro Acadêmico organizou um evento comemorativo, não sei precisar o motivo, que seria um grande acontecimento musical da época. Entre os artistas, Arrigo iria se apresentar. Neese mesmo período, a cantora Joan Baez estava de passagem pelo Brasil, onde pretendia realizar alguns shows, que seriam prontamente proibidos, sob a desculpa da não concessão de visto de trabalho para ela aqui.
Independente disso, por contatos internos na SanFran, conseguiram que ela viesse e lá se apresentasse, no dia do referido evento. Momentos antes de entrar no palco, ouvi, de passagem, os berros irados de Arrigo Barnabé, totalmente indignado com o fato de que ele iria se apresentar após (ou seria antes?) Joan Baez! Furioso. Quem não ficaria? Pano rápido.
Rui Vianna é advogado aposentado e associado do IBAP.
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