-IBRAIM ROCHA-
Lucindo Rabelo da Costa (1908 – 1988) ou simplesmente Mestre Lucindo é figura inolvidável da cultura paraense.
Nascido em Marapanim, vila de Água Boa – Rio Cuiuba, cidade ao nordeste do Pará, cerca de 160 km de Belém, o pescador-compositor foi um dos responsáveis por ajudar a construir um dos principais elementos da identidade do Carimbó, ritmo paraense com forte marcação de tambor e instrumentos de corda. Nele, a construção das letras relata coisas simples da esplendorosa natureza amazônica.
Uma das mais de 300 letras que compôs registra os hábitos da piriquitamboia, uma das raras espécies de serpente do gênero Corallus caninus da Amazônia. Toda verde, ela se confunde muitas vezes com a mata e com as periquitas da floresta. Daí o nome. A letra da música declama:
Piriquintabioia pendurada no caminho.
Piriquitamboia pendurada no caminho.
Pra comer, comer o passarinho.
Olha a cobra passarinho xô xô
(AQUI)
A piriquitamboia tem o dorso verde com barras transversais branco-amareladas e região ventral amarela. Ser exuberante e ofídio endêmico da Amazônia, é muito valorizada pelo tráfico de animais. Não é peçonhenta, possui hábitos noturnos, pode alcançar até 1,50 metros de comprimento. Costuma passar longos períodos enrolada nos troncos das árvores, onde, camuflada, pega as suas presas desavisadas, especialmente pássaros, pequenos roedores e répteis.
Pode-se observar na letra de mestre Lucindo que ele não se refere ao local onde está pendurada a piriquitamboia, no caminho, à espera do passarinho. Além da licença poética, existe um outro elemento que justifica a sua descrição: é que para um homem nascido às margens de um rio amazônico, as árvores da florestas são sempre guardiãs do caminho.
Certamente uma serpente com tais hábitos não teria como ser atropelada na densa floresta amazônica, onde as árvores se entrelaçam, e cujo verde é fonte da evolução dessa espécie de cobra, com a sua cor e hábitos de caça. Mestre Lucindo bem espelhou essa mágica relação da floresta implícita na descrição da realidade, tão presente no ambiente, onde destaca o acidental de como os demais seres vivos se movem e envolve nela, a soberana floresta.
Mas a floresta está em risco e, por ação humana, já não permite aos seres viverem na sua exuberância. O grau deste risco foi acelerado especialmente a partir da década de 70, com os governos militares. Recentemente, pude, infelizmente, testemunhar o improvável verso triste não escrito por Lucindo, quando realizava uma trilha de bike:
Piriquitamboia atropelada no caminho.
Piriquitamboia atropelada no caminho.
Tentou, tentou achar um caminho
Tentou, tentou achar um caminho
Mas não tem mais árvores meu Senhor, Senhor.
Mas não tem mais árvores meu Senhor, Senhor
A fonte de inspiração de mestre Lucindo vai assim sendo destruída por uma humanidade que se vangloria de viver a democracia, mas que na verdade é uma grande ditadura do capital, que só considera belo o que dá lucro e esquece que logo, logo, não será só a piriquitamboia que não vai mais achar o caminho.
IBRAIM ROCHA - Procurador do Estado e Doutor em Direito.
Belo texto Ibrahim. É isso mesmo, assim continuando nem a piriquitamboia, nem ninguém mais vai achar o caminho. Nem o caminho fará sentido. É triste isso!