Regularização Fundiária de Grandes Glebas na Amazônia Legal e a Função Social Autônoma da Propriedade Pública
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IBRAIM ROCHA[1]

1 Introdução
Honorato e Honorato (2025) defendem que imóveis de até 2,5 mil hectares poderiam ser regularizados na Amazônia Legal sem gerar concentração fundiária, afirmando que tal limite seria compatível com as “peculiaridades produtivas” da região. Essa tese, contudo, suscita questionamentos relevantes quando confrontada com o marco constitucional, o regime jurídico da propriedade pública, a estrutura do módulo fiscal amazônico e a fragilidade ecológica do bioma.
Este artigo busca demonstrar que a regularização ampliada de grandes áreas públicas viola a destinação constitucional das terras devolutas, incentiva a grilagem e aprofunda a degradação ambiental — incompatibilidades já estruturadas na literatura agrária e ambiental.
2 O módulo fiscal amazônico e a falácia das “médias propriedades”
Os autores sustentam que áreas de 2,5 mil hectares representariam propriedades de porte intermediário, o que não se confirma à luz da legislação agrária. O módulo fiscal na Amazônia varia entre 70 e 100 hectares, enquanto no Sul e Sudeste costuma estar entre 12 e 20 hectares, refletindo diferenças na fertilidade dos solos e condições climáticas.
Assim, 2,5 mil hectares equivalem a aproximadamente 25 a 30 módulos fiscais, enquadrando-se como grande propriedade rural nos termos da Lei n. 8.629/1993. A caracterização como “médio porte” desconsidera a própria lógica do módulo fiscal, cuja função é adaptar a noção de propriedade familiar às condições agronômicas regionais.
3 Degradação ambiental e ocupação extensiva: evidência empírica na Amazônia
A literatura ambiental demonstra que a Amazônia não suporta modelos extensivos de baixa produtividade. Como registra Loureiro (2025, p. 54):
“Segundo estudo feito em 2016 pela Embrapa, a área de pastos abandonados em decorrência da pobreza dos solos amazônicos em poucos anos de mau uso, como ocorre na pecuária extensiva, era já de 10 milhões de hectares, extensão que corresponde aos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná somados.”
Esse dado revela o colapso estrutural das grandes glebas destinadas à pecuária extensiva. A ocupação tradicional de grandes áreas públicas tem produzido: desmatamento, empobrecimento do solo, abandono produtivo, especulação fundiária e ciclos de grilagem.
Veja então que quando os autores usam o argumento da reserva legal de 80% para justificar a necessidade de regularização grandes áreas, na verdade esquecem justamente esse contexto histórico e natural da Amazônia, pois já existem bastantes áreas abertas e aptas a atividades de uso intensivo do solo, o que não justifica alienar mais áreas na Amazônia, que ainda tem remanescentes florestais para formação de grandes propriedades, cuja destinação é exatamente o uso alternativo do solo.
A regularização ampliada, ao invés de corrigir tais problemas, os cristaliza no regime jurídico, convertendo em direito subjetivo estruturas fundiárias que historicamente geram degradação e conflitos.
4 Fundamentos constitucionais e o regime restritivo da terra pública
A Constituição estabelece regras claras para a destinação das terras públicas e devolutas: Art. 188, §1º – prioridade absoluta à reforma agrária; Art. 186 – definição da função social (aproveitamento racional, preservação ambiental, justiça social), o que no contexto amazônico impõe que a terra pública não está disponível para privatização indiscriminada, menos ainda em dimensões próximas a 2,5 mil hectares e com destinação a atividades de uso intensivo, mas deve ser direcionado a atividades que dialoguem com a floresta.
5 A função social autônoma da propriedade pública
Em artigo doutrinário (Rocha (2024)) formulei o argumento da função social autônoma da propriedade pública, segundo a qual a terra pública possui finalidade constitucional própria, distinta da lógica privada, dado o seu regime constitucional derivado do contexto histórico brasileiro, onde ainda não se realizou a reforma agrária, e por isso, as as terras públicas devem ser prioritariamente destinadas para a promoção da Reforma Agrária e da Política Agrícola, o que na Amazônia deve priorizar os modelos que favoreçam a preservação florestal especialmente no contexto de mudanças climáticas.
Com efeito é preciso se destacar, que : terra pública não integra o mercado fundiário privado; sua destinação deve priorizar agricultura familiar e povos tradicionais; a regularização de grandes glebas viola o interesse coletivo que fundamenta a propriedade estatal.
Assim, a regularização de imóveis de até 2,5 mil hectares conflita com a função social autônoma, pois converte patrimônio público estratégico em ativo apropriado por grupos privados e cujas atividades tem papel dissonante com a vocação da floresta.
6 A crítica institucional e os argumentos do Ministro Flávio Dino
Nesse sentido, corretos os argumento do Ministro Flávio Dino, no debate referente a Lei n⸰ 13.465/2017 que alterou o limite original de regularização de 15 módulos fiscais, ampliando-o para até 2,5 mil hectares, objeto de impugnação nas ações diretas de inconstitucionalidade da Lei nº 13.465/2017 (ADI 5.771, 5.787, 5.883 e 6.787), de que a titulação de grandes áreas incentiva a grilagem estruturada; amplia conflitos territoriais e compromete a gestão ambiental.
Segundo Dino, a regularização de grandes glebas não reduz conflitos, mas institucionaliza a disputa fundiária a favor do ocupante mais forte. Sua análise converge com a doutrina que impede a privatização de terras públicas sem rigoroso controle constitucional no contexto amazônico põe em risco o mais rico ativo ambiental brasileiro.
7 Conclusão
A proposta de regularização fundiária de imóveis de até 2,5 mil hectares na Amazônia Legal é incompatível com: a estrutura do módulo fiscal amazônico; a evidência empírica da degradação das grandes propriedades extensivas; o regime constitucional da terra pública; a função social autônoma da propriedade pública e os alertas do STF sobre grilagem.
A Amazônia exige políticas fundiárias restritivas, voltadas à agricultura familiar, aos povos tradicionais e ao manejo florestal sustentável. A regularização de grandes glebas, longe de solucionar problemas, os institucionaliza, agravando a degradação socioambiental e violando a Constituição Federal.
Referências
HONORATO, Marcelo; HONORATO, Sinara Paese. Por que regularizar até 2,5 mil hectares na Amazônia Legal? Consultor Jurídico, 2025.
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. A Floresta em Pé: Utopia ou possibilidade? Manaus: Editora Valer, 2025.
ROCHA, Ibraim. Princípio da função social autônoma da propriedade pública: caracterização da posse de terras públicas e sua defesa. In: SOEIRO, Bruno; DOMINGOS, Francisco Nicolau; OLIVEIRA, Frederico Antônio Lima de; VIEIRA, Iracema de Lourdes Teixeira (org.). Direito Público Contemporâneo. Londrina: Thoth, 2024. v. 4. p. 207-225.
ROCHA, Ibraim; CAMARGO, R. A. L.. 'Retrocessos' do ordenamento jurídico-econômico brasileiro, em especial quanto à propriedade agrária - um diálogo com Hegel. REVISTA DE DIREITO E POLÍTICA, v. 25, p. 161-183, 2019.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária.
Ibraim Rocha - Doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente – UFPA, Procurador do Estado do Pará. Escreve todo o dia 21 do mês.










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