-IBRAIM ROCHA-
Em redes sociais e em diversas reuniões presenciais pelo país foram registrados pedidos de Impeachment do Presidente do STF Dias Toffoli e do Ministro Gilmar Mendes. Estes pedidos têm claras conexões com a linha politica do Presidente de ultradireita Jair Bolsonaro. E, quando se vê a razão destes pedidos, verificamos que basicamente decorrem do Julgamento da Suprema Corte referente a interpretação do Art. 5o, inciso LXIII, e que acabou por permitir a libertação do Ex-presidente Lula.
Obviamente que estes fundamentos não podem levar a um impeachment de um Ministro da Suprema Corte, mas, infelizmente, a própria apresentação destes argumentos em praça pública, com apoio de setores do parlamento, alinhados políticos do presidente e sua milícia digital, revelam que este instrumento constitucional tem cada vez mais assumido o contorno de instrumento de vendetta politica. No Brasil tivemos 2 casos de impeachment, e curiosamente, somente contra presidentes da República. O que se verá, difere bastante da prática estadunidense. >>>
>>> Por isso resgatamos o uso deste instrumento nos EUA, para entender melhor a sua origem, de onde foi copiado para o constitucionalismo brasileiro, a partir das lições de Cass R. Sunstein, vez que esse autor, longe de se apegar a uma análise dogmática, apresenta as linhas sociais de sua origem e seu significado para a estabilidade da democracia americana.
Este é o primeiro ponto. O impeachment no modelo estadunidense não é fonte de instabilidade politica, pelo contrário, é símbolo de normalidade institucional do papel do Congresso Estadunidense de fiscalizar os poderes para a proteção dos cidadãos e sobretudo da Constituição, muito ao contrário do Brasil, em que o processo de impeachment é, em todas as análises, fonte de instabilidade institucional.
Cass R. Sunstein, no livro Impeachment: a citizen´s guide,USA: Penguin Books, 2019, ao presentar um guia simplificado ao cidadão estadunidense sobre o instituto do impeachment, inicia e encerra o seu raciocínio pelas bases sociais que motivaram a criação do procedimento: o desejo da comunidade de se evitar que a jovem nação pudesse ser governada por um governo tirano, uma vez que a revolução americana se movia contra o autoritarismo da monarquia britânica, e tudo que ela representava nos seus privilégios e diferenças entre os homens, uma vez que todos nascem com igual dignidade, para construir uma nação que se pautasse na democracia e igualdade.
Isto permite indagar : como se cria objetividade no processo de impeachment, na sua prática, já que este princípio de evitar a tirania é tão vasto ? A resposta vem fácil quando se observa que do total de 19 casos de impeachment processados, a maioria absoluta das autoridades processadas foram Desembargadores de Cortes Federais, no total de 13. E, qual a causa ? Por serem acusados de tratar desigualmente os cidadãos pela não aplicação imparcial da Lei, fonte de toda a igualdade e origem da proteção da dignidade dos cidadãos. E nem de longe se pode afirmar que o modelo americano não é sólido na garantia da independência do Poder Judiciário.
Este princípio é reforçado quando se verifica que um dos primeiros casos de impeachment, aberto em 1804, foi contra o Ministro Samuel Chase, da Suprema Corte Norte Americana, acusado de agir arbitrária e opressivamente na condução processual, inclusive por agir como acusador invés de juiz imparcial, sendo que dos 8 casos que resultaram em afastamento do cargo, sete foram de magistrados acusados de abuso de autoridade, que é o ponto comum com os casos presidenciais, embora naqueles casos em nenhum foi questionada a natureza do conteúdo das decisões judiciais, sequer a respeito das mais controversas questões constitucionais, dado o extremo zelo do congresso para não violar a independência do Poder Judiciário.(SUSTEIN, 2019, 107, 115).
Quando, no capítulo 7, Sunstein apresenta 21 hipótese e os divide entre casos fáceis e difíceis, a justificar a abertura de impeachment ou não, ele sequer coloca entre os fáceis o cabimento a investigação do conteúdo das decisões judiciais, que está fora de qualquer parâmetro do modelo de independência e harmonia dos poderes, e destaca entre os casos fáceis de não abertura de processo de impeachment contra o presidente, quando este atua com base em razoável crença e argumentos racionais que usa sua autoridade, atuando com boa fé, por agir segundo os seus poderes constitucionais (SUNSTEIN, 2019, 117).
O modelo constitucional estadunidense sobre impeachment inclui entre as suas hipóteses de abertura os altos crimes e má-condutas/contravenções (high crimes and misdemeanor), o que poderia ser fonte de largas interpretações políticas, entretanto, o zelo pelo respeito ao processo de escolha do Presidente, e a necessidade de garantir-lhe a autonomia para o cumprimento dos seus deveres, tem levado a se evitar a abertura, quando se pode encontrar uma interpretação razoável da ação presidencial. Este entendimento sobre os poderes do Presidente foi reforçado quando Corte Suprema decidiu no caso Myers vs United States, 1926, que apesar do Congresso aprovar uma lei que exigia do presidente que a dispensa de seus ministros devia ser autorizado pelo Senado, isto seria contrário ao desenho constitucional de autoridade do presidente.(SUSTEIN, 2019, 106 e 124).
Um outro elemento importante, é que Sunstein destaca que apesar da regra de que os crimes cometidos pelo presidente devem ser realizados quando em exercício, não tem dúvidas de afirmar que certamente não faria sentido que a Constituição autorizasse que a nação fosse governada por um assassino, mesmo que este crime ocorresse por razões pessoais, e obviamente se o assassinato ocorresse por razões políticas, a afetação negativa de dignidade do cargo seria fonte para autorizar o impeachment (SUNSTEIN, 2019, 134).
Do ponto de vista normativo, poder-se-ia afirmar que a constituição brasileira é mais objetiva que a constituição americana, quando esta define no Art. 85 que são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: a existência da União; o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do País; a probidade na administração; a lei orçamentária; o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Entretanto, a prática tem revelado, que o impeachment tem se sido um instrumento que depende muito mais do interesse e vontade política contra o agente a ser processado do que o fundamento constitucional, nem se esconde mais este argumento. Quando, por exemplo, no impeachment da Presidente Dilma, se incluiu “o conjunto da obra”.
Contraditoriamente, sem que se enxergue qualquer viabilidade política de uso do impeachment no atual horizonte político, hoje temos no mais alto posto da República, um presidente que não se cansa de declarar diretamente ou por meio de seu Ministro da Justiça, que a decisão da Suprema Corte foi errada, e que irá buscar por todos os meios esvaziar o julgamento sobre a constitucionalidade de uma cláusula pétrea, inclusive propondo Emenda Constitucional, como se isto fosse possível, como se posicionou o IBAP a respeito, em nota publicada dia 14/11/19 (aqui a íntegra):
"Há poucos dias, o STF tão somente corrigiu gravíssima distorção na aplicação de um dispositivo do Código de Processo Penal que reproduzia quase que literalmente os termos da Constituição Federal. Logo após esta sensata decisão, teve início junto a setores do Poder Legislativo Federal movimentação visando a esvaziar a orientação da Suprema Corte – algo semelhante ao que já havia sido feito há alguns anos, por ocasião do julgamento da constitucionalidade da lei da vaquejada no Ceará." >>>
>>> Entendemos que não faz qualquer sentido afirmar que o Parlamento tem autonomia para legislar sobre o tema e revisar o Código de Processo Penal por meio de um projeto de lei, esvaziando a garantia constitucional insculpida no inc. LXIII do art. 5º.
Este mesmo Presidente age descaradamente em obstrução da Justiça, sem ser incomodado, quando declarou que pegou gravações que poderiam lhe implicar no assassinato da Vereadora Marielle Franco, e, devido a este mesmo evento, o seu Ministro da Justiça acena com a federalização do caso, como se este fosse uma deliberação sua, particular, o qual aliás, apesar de acusações fortíssimas de agir de forma parcial para condenar o líder da oposição, segue absolutamente sem nenhuma investigação, o que bem revela a nossa fraqueza institucional.
Este quadro revela então que o problema do instrumento do impeachment no Brasil, é que este não foi construído sob a argumentação de um princípio democrático, mas foi se conformando em mero processo politico. Quando Sustein afirma que o modelo americano jamais admitiria a revisão de decisão do Congresso num processo de impeachment pela Suprema Corte, ressalta que a solidez da Constituição e autonomia dos Poderes, segundo o modelo de checks and balances, impõe que se o presidente comete uma clara ação de impeachment o Congresso Estadunidense é obrigado a afastá-lo, e, neste momento, somem as divisões partidárias, entre democratas e republicanos.(SUNSTEIN, 2019, 194) >>>
>>> Conclui-se que é preciso se reconstruir os fundamentos da democracia brasileira, pois um modelo que admite uma dispersão partidária e criação de bancadas a partir de interesses corporativos imediatos, como a bancada da bala ou a evangélica, não pode ter a consistência para levar a estabilidade institucional necessária ao jogo democrático. Isto permite que governos tiranos cresçam sob a aparência de legitimidade constitucional, como vivemos hoje no Brasil, em plena desfiguração do modelo constitucional de 1988. <<<
IBRAIM ROCHA - Procurador do Estado do Pará, Doutor em Direito pela UFPA.
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