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Poema para João Gilberto

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-ANDRÉ MALTA-



(a) Obra pouca, de quem fez muito o pouco.

João Gilberto, contra muitos que a torto e a direito, grava lúcido, e bissexto, repertório.


(b) Obra nova, por ciosa da memória.

Foi buscar nos rincões de canções corriqueiras suas belezas: fez assim com Ary, com Caymmi e outros tantos, desvelando-lhes cada ponto luminoso.


(c) Obra arguta, que rebusca outro ritmo.

João Gilberto quer o ritmo imprevisto: pôr o acento noutra sílaba da palavra escandida; quer o ritmo incisivo: pôr a voz por um fio, procurar na canção suas fibras, repetindo-a, até a bossa que a entranha viva: o samba.


(d) Obra simples, em que extingue-se o acessório.

Ele não se esparrama quando canta; ele não se inflama com seu canto; o seu canto é o mesmo canto seco, que rebrilha por ir mesmo contra a chama, e propaga-se porque não se derrama; é o mesmo canto seco monocórdio, que surpreende com ir sempre contra o alarde do gogó, e desdobra-se com a sua nota só.


(e) Obra própria, mesmo quando se está fora.

João Gilberto, quando canta noutra língua, não se priva da sua língua, seu sotaque brasileiro: ao invés do falsear corriqueiro, se desveste da impostura e incorpora ao que é nosso mesmo aquilo que é alheio; seu Cole Porter não nos soa estrangeiro, seu inglês não almeja ter acento escorreito; “La mujer”, em sua voz, torna nosso o espanhol; e em “Estate”, o italiano nunca esteve sob um sol tão baiano.


(f) Obra-mestra: muitos levam-na em sua testa.

Sua maneira de cantar ensinou o que é ser obstinado, o levar o essencial para o palco, o ser anti- incendiário; sua maneira de cantar ensinou-nos bom riscado: o rigor extremado, mesmo se mal-humorado, mesmo se antiaplauso; sua maneira de cantar ensinou o que é voz e violão (e que é só), a batida que antes não; sua maneira de cantar ensinou-nos a com ele ensinarmo-nos toda vida, a com ele afiarmos nosso ouvido, fazer deste nosso crivo, como um filtro.


(Poema originalmente publicado em 2010 no livro "A hesitação do verso")

 

ANDRÉ MALTA é Professor de Grego antigo da FFLCH-USP. Colaborador da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares desde sua primeira edição.


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