- Nicole Ayres -
Cachorra! Em plena pandemia, onde já se viu? Ter que trabalhar porque Deus me livre a madame pegar numa vassoura, acho que a mão dela cai! E, ainda por cima, passear com a cachorra. A cachorra da patroa. Só rindo mesmo. Rir pra não chorar. Pobre só se fode nessa merda.
Dona Sarí fazia as unhas em casa – a manicure, coitada, outra necessitada. Que diferença faz unha feita no confinamento? Sério, quem é que vai ver isso? Mas é cada uma... Estava torcendo apenas pro Miguel se comportar. Ele andava muito levado! Saía correndo, não obedecia suas ordens, chorava por qualquer coisinha. Assim não dava! Já havia conversado com o filho, ele estava grandinho pra entender as coisas. Cinco anos. Logo seria alfabetizado. Mirtes sempre explicava a importância da escola, de estudar e ser alguém na vida. Alguém com um futuro melhor que o dela: era o que desejava pro filho. Só que pra isso ele teria que deixar de ser tão malcriado e tomar tento!
Tadinho. Devia ser chato pra ele acompanhar a mãe no trabalho. “Só por hoje, filho”, ela dizia, toda vez que a avó não podia ficar com ele e não tinha mais com quem deixar. Como havia crianças na casa dos patrões, às vezes ele brincava com elas. Naquela manhã, se distraiu com a menina, que tinha a idade mais próxima da sua. Era bom, mas ao mesmo tempo Mirtes não queria que ele invejasse os brinquedos caros dos filhos dos patrões. Aquela não era a sua realidade. Será que era por isso que estava ficando tão rebelde?
Quando a patroa pediu pra ela passear com a cadela, os meninos quiseram ir junto. Eles estavam impossíveis naquele dia! Por isso não deixou. “Fiquem aí que eu já volto”. Custava ele ficar?
O passeio não durou muito. Até porque ainda tinha vários serviços pra fazer na casa, então não queria demorar. Lerê lerê... Então, apressou a bichinha quando ela quis fazer cocô. Catou com o saquinho, como se deve. Limpeza era o seu segundo nome! Recolhia até a merda dos outros, quer dizer, do cachorro dos outros. E olha que aquela família era cheia de podres! O patrão era prefeito, sabe como é político no Brasil... Quem não se suja não se elege. Ela sabia bem disso, mas ficava quieta porque precisava do emprego. Não queria cuspir no prato que comia, até porque seria ela mesma que teria que lavar depois.
Observou o povo na rua. Gente sem máscara, multidões em filas de banco, idosos circulando por aí... Brasileiro não tem mesmo jeito. Ninguém respeita nada nesse país, nem mesmo a morte! Se o próprio presidente dizia que era uma “gripezinha”, imagina... Todo dia o número de mortos só aumentava, ela via nos noticiários. Gripezinha, só se for a espanhola. Imagina se ela pegasse aquele troço! Nem plano de saúde tinha. Ia perder o emprego, com certeza. Os patrões eram muito bonzinhos, até a segunda página. Jamais exporiam os filhos. Ela se expunha e expunha o filho dela, mas eles não! Deve ser isso o que chamam de “privilégio”. E se ela ficasse doente... Ah, não queria nem pensar nisso! Miguel precisava dela. Não queria decepcioná-lo. Mas chega de besteira! Essa pandemia mexe mesmo com a cabeça da gente.
Quando voltou ao prédio, notou que o porteiro estava agitado. Perguntou o que era. “Alguém caiu, Dona Mirtes! Lá de cima”! Que horror! Mas caiu quem? Se jogou? Suicídio? O porteiro disse que não sabia, mas logo entrou outro funcionário: “Foi um menino! Um menino caiu de um andar alto! Já ligaram pra emergência”. O coração de Mirtes gelou. Correu pro pátio, querendo saber o que aconteceu. A cachorra se soltou e correu na sua frente.
Ao ver o pequeno corpo estirado no chão, paralisou. A cachorra lambia seu rostinho e ele não reagia. Tomou coragem e se aproximou. A cada passo, uma pancada no peito. Então se agachou, virou bem devagar o corpinho da criança e sussurrou. “Filho, a mamãe tá aqui”. E acrescentou, acariciando seus cabelos: “Não me deixa”. Verificou, com cuidado, que o menino ainda tinha pulsação e respirava. Graças a Deus!
Permaneceu ao lado de Miguel até a ambulância chegar. Nenhum pensamento. Só queria vê-lo bem, brincando, aprontando de novo. Era só o que importava agora. O resto se vê depois. Se houvesse um depois... Não houve.
Miguel morreu a caminho do hospital. O coração de Mirtes também parou de bater. Talvez nunca mais volte. De início, não conseguiu sentir nada. Nem raiva nem tristeza, nada. A dor era tão profunda que a deixava anestesiada. Demorou até conseguir chorar. Estava tão acostumada a ser forte. Por ele. Agora era uma morta-viva.
Quando soube do que aconteceu e conseguiu assimilar alguma coisa, seu primeiro pensamento foi: “E se fosse a filha dela”? E se fosse o contrário? Se ela, Mirtes, tivesse colocado a menina no elevador e ela caísse do nono andar? Provavelmente já estamparia a capa de todos os jornais. Assassina! Monstra! Não teria direito a fiança. Passaria uns bons anos na cadeia, isso se não fosse linchada. Mas Dona Sarí conseguiu responder em liberdade por vinte mil reais. Muito provável que nem fosse presa. Podia pagar bons advogados. Ela era rica, branca, importante.
Vinte mil reais. Muito, muito mais do que Mirtes ganhava em um ano limpando privada. Estava cansada da merda daquela gente! Estava cansada daquela gente de merda! Vinte mil reais era o valor da vida do seu filho? A carne negra é a mais barata do mercado mesmo.
Recebeu uma carta de perdão da patroa. Podia, devia mesmo estar com ódio, mas só conseguia sentir nojo e desprezo. Cuidara dos filhos dela por anos! Ela fora incapaz de ter alguns minutos de paciência com o seu. Será que sentia alguma culpa? Será que sentia alguma coisa? Conseguia ainda dormir em paz depois disso? Senão, pelo menos as unhas estava bem feitas.
Nicole Ayres Luz é graduada em Letras (Português/Francês) pela UERJ. Mestra em Teoria da Literatura pela UERJ, é Professora de Francês.
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