VER NO ESCURO
- Revista Pub

- há 12 minutos
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-FLAVIA D'URSO-
Há momentos históricos — guerras, pandemias, colapsos institucionais — em que o mundo perde a direção, como se a superfície lisa da vida cotidiana se rompesse de súbito, revelando um terreno irregular, instável e imprevisível. Esses momentos funcionam como câmaras de revelação capazes de expor não apenas as fragilidades humanas, mas também os débeis sistemas de sustentação que chamamos de sociedade.
É precisamente nesse território de ruína e descoberta que se inscreve o espetáculo “(um)Ensaio sobre a cegueira”. Longe de se limitar a uma adaptação literária, a montagem opera como um ato de percepção, um exercício radical de desnudamento do humano diante da adversidade extrema. A cegueira que se instaura em cena não é apenas metáfora — é processo, contágio e colapso; é o limite que convoca o espectador a espelhar-se naquilo que vê e, paradoxalmente, naquilo que não pode ver.

A encenação cria um ambiente de desorientação sensorial cuidadosamente arquitetado: uma iluminação rarefeita que parece hesitar entre o surgimento e o apagamento, pausas que suspendem a respiração do tempo, corpos que se movem como quem tateia a própria existência. Nesse espaço estético, a cegueira deixa de ser apenas condição dos personagens e torna-se experiência compartilhada com o público. O espectador não assiste ao colapso; ele o habita. Há, aliás, uma convocação pelos atores, antes do início da apresentação, para que integrantes da plateia participem desta experiência no palco.
A fragilidade deixa de ser um traço da narrativa e passa a ser uma espécie de espelho ético, onde cada um é levado a reconhecer a precariedade que prefere ignorar no conforto da normalidade.
É justamente no instante em que o verniz social desmorona que surgem as camadas mais cruas da humanidade. O espetáculo evidencia que a regressão à brutalidade não é aberração moral nem exceção histórica, mas possibilidade sempre latente, pronta a emergir quando desaparecem os dispositivos de contenção social: a lei, os costumes, o olhar do outro. A cegueira coletiva libera a violência como forma primária de organização, fazendo aflorar disputas por recursos, imposições arbitrárias de poder, hierarquias improvisadas e um medo que coloniza corpos e mentes. Essa regressão não surge como falha humana, mas como revelação: o colapso social é também desvendamento político.
Ainda assim, entre o estrondo e o silêncio, algo insiste em permanecer. Há, no meio da escuridão, gestos mínimos que resistem à devastação. Partilhar um pedaço de pão, conduzir um corpo inseguro, escutar o desamparo do outro — gestos que, embora frágeis, delineiam uma ética possível. O espetáculo parece sugerir que é justamente na escuridão, quando os suportes visíveis se rompem, que o cuidado se revela como último território de humanidade.
A travessia realizada pelos personagens só encontra sentido quando eles percebem que caminhar juntos não é uma escolha, mas uma condição necessária de sobrevivência moral. A solidariedade, longe de ser virtude espontânea, aparece como construção frágil e, ao mesmo tempo, urgente; uma decisão política que só se torna visível quando tudo o mais se desfaz.
Nesse percurso de desconstrução e reconstrução, destaca-se a sátira impagável dirigida a militares e figuras associadas à extrema direita. Aqui, o espetáculo toca uma ferida contemporânea: o fascínio difundido por discursos autoritários que prometem ordem, disciplina e segurança justamente quando o mundo parece escapar das mãos. A cena devolve a esses personagens carimbados um espelho grotesco: suas poses marcadas, sua retórica inflada, sua crença cega na hierarquia e no comando surgem como caricaturas de um poder que, no limite, é tão cego quanto os personagens que pretende controlar. Ao ridicularizar tal performance, a peça desmonta o encanto da autoridade e expõe a infantilização estrutural que sustenta essas figuras — um autoritarismo que não produz ordem, mas humilhação; não oferece segurança, mas violência; não garante estabilidade, mas o aprofundamento do colapso.
O que permanece, então, quando a cegueira nos atravessa? Talvez a resposta esteja menos na restauração do mundo anterior do que naquilo que emerge do escuro. A experiência da montagem sugere que o desmoronamento dos vínculos sociais expõe a nudez do humano e seus impulsos mais contraditórios, mas também abre espaço para a reinvenção ética. Ao ser privado da visão, o indivíduo descobre não apenas o limite da autonomia, mas a necessidade radical do outro. O espetáculo ensina, assim, que a verdadeira percepção não é individual, mas compartilhada e coletiva; que a travessia não se faz sozinho; que o sentido — se ainda é possível encontrá-lo — nasce do encontro entre corpos igualmente vulneráveis.
Em última instância, “(um)Ensaio sobre a cegueira” não nos fala apenas sobre uma sociedade que colapsa, mas sobre o perigo real de nossas próprias formas de cegueira cotidiana: cegueira diante da desigualdade, da violência política, das promessas fáceis do autoritarismo, da fragilidade dos vínculos que sustentam a vida comum. A encenação transforma a pergunta de Saramago em desafio contemporâneo: o que resta de nós quando o mundo perde o caminho? A resposta, insinuada nos momentos mais delicados da peça, talvez seja esta: resta o cuidado, resta o outro, resta a possibilidade — ainda que tênue e hesitante — de reconstruir sentido no escuro.
Flávia D'Urso é mestre em Direito Processual Penal e Doutora em Filosofia, na linha de pesquisa política, pela PUC/SP. Foi procuradora do Estado e Defensora Pública. Dirigiu a Escola da Defensoria Pública de SP. Integra o Conselho Consultivo do IBAP. Escreve todo dia 09 do mês.










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