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A captura neoliberal das lutas identitárias

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    Revista Pub
  • há 2 dias
  • 6 min de leitura

-FLAVIA D'URSO-


A crítica às pautas identitárias, que aqui se pretende, exige certa coragem no contexto em que a grande parte das forças progressistas as tem como inerentes a uma atuação, quer seja política, quer seja intelectual, alinhada a um compromisso de mudanças sociais.


É necessário, porém, problematizar os efeitos dessa centralidade identitária quando ela se converte no eixo exclusivo das reivindicações de direitos, resultando na fragmentação das lutas e na despolitização dos conflitos   estruturais. 


As razões pelas quais tal fragmentação pode não constituir a melhor estratégia emancipatória serão examinadas a partir do pensamento de Michel Foucault, Nancy Fraser e de Douglas Barros.


Michel Foucault, filósofo francês cuja obra se desenvolveu entre as décadas de 1960 e 1980, deslocou a compreensão do poder como mera repressão, concebendo-o como uma rede produtiva que atravessa discursos, corpos e instituições (FOUCAULT, 1999; 2008). Seus conceitos de biopoder e governamentalidade permitem compreender como práticas sociais e movimentos podem ser capturados pelas racionalidades de governo. A partir de Foucault, torna-se possível perceber que a administração da diferença — e não sua supressão — constitui uma forma sofisticada de exercício do poder, capaz de incorporar resistências e reinseri-las nos dispositivos que regulam a vida social.


Na década de 1990 e início dos anos 2000, Nancy Fraser aprofunda esse diagnóstico ao analisar como o capitalismo tardio absorveu seletivamente pautas identitárias, autonomizando o reconhecimento e dissociando-o de lutas redistributivas (FRASER, 2003). Para Fraser, essa fragmentação compromete a elaboração de projetos universalistas de justiça, uma vez que cada grupo identitário reivindica demandas particularizadas, facilmente administráveis pelo neoliberalismo. Em seus trabalhos mais recentes, Fraser (2019) nomeia essa articulação entre discursos de diversidade e racionalidade de mercado como “neoliberalismo progressista”, denunciando a maneira pela qual a inclusão simbólica pode coexistir com a intensificação das desigualdades estruturais.


Douglas Barros, pensador e ensaísta brasileiro contemporâneo, inscreve-se nesse horizonte crítico ao analisar as formas recentes de dominação nas democracias liberais. Sua reflexão sobre o identitarismo liberal — desenvolvida em O que é identitarismo? (2024) — propõe que as políticas identitárias, ao se afastarem da crítica social e do horizonte da luta de classes, tornam-se instrumentos de administração da diferença. Para Barros, o identitarismo não representa uma emancipação das minorias, mas a captura das lutas por reconhecimento dentro das engrenagens do neoliberalismo.


Em todos esses autores, há a percepção de que o poder contemporâneo não elimina a diferença, mas a administra como recurso produtivo e dispositivo de controle.


No contexto brasileiro, os movimentos identitários — como o movimento negro, o movimento feminista, o movimento LGBTQIA+ e o movimento indígena — emergiram historicamente como respostas legítimas à exclusão e à violência estrutural. Inspirados por lutas emancipatórias, esses movimentos desempenharam papel fundamental na ampliação de direitos, na construção de políticas públicas de reconhecimento e na transformação cultural. 


No entanto, a partir das últimas décadas, parte dessas mobilizações foi absorvida por instituições, ONGs e corporações, o que exemplifica o processo descrito por Barros e Fraser: a captura neoliberal das pautas identitárias.


Essa captura, segundo Barros (2024), não ocorre por negação das pautas identitárias, mas justamente por sua assimilação seletiva. As organizações que operam sob a lógica neoliberal convertem as reivindicações políticas em programas de gestão social, protocolos de diversidade, políticas de compliance e iniciativas de inclusão simbólica que deslocam a centralidade do conflito. O que antes se constituía como antagonismo social — mobilizado por categorias como exploração, classe, colonialidade e luta coletiva — transforma-se em demanda por reconhecimento administrável, capaz de ser atendida por meio de narrativas institucionais de representatividade. Douglas de Barros observa que esse processo converte as identidades em unidades administráveis, “insumos de governança” que podem ser contabilizados, medidos e celebrados nos relatórios anuais das corporações e nos indicadores de impacto das ONGs, sem que isso modifique as estruturas materiais que produzem desigualdade.


Esta é a armadilha: o envolvimento não se opera pela censura ou repressão das pautas, mas pela sua reinserção em dispositivos que neutralizam o potencial crítico. O neoliberalismo absorve a diferença como mercadoria discursiva, de modo que ONGs e empresas passam a se beneficiar da circulação simbólica dessas identidades. A sofisticação é de que elas agregam valor reputacional, legitimam práticas institucionais e reforçam a imagem de engajamento social, ao mesmo tempo em que evitam abordar as dimensões estruturais do capitalismo.


A diversidade, assim, torna-se um ativo, um “capital moral” que serve para estabilizar a ordem social, não para transformá-la. Nessa chave, Barros demonstra que a luta social é deslocada para uma gramática de performance identitária, enquanto as condições materiais que afetam majoritariamente essas populações — como desigualdade de renda, precarização do trabalho, violência estatal e ausência de políticas redistributivas — permanecem intactas. Essa é a essência da crítica barrosiana: o identitarismo liberal, ao ser capturado por ONGs e corporações, converte-se em técnica de governo que substitui o antagonismo social pela gestão da diferença.


O movimento negro brasileiro, por exemplo, cuja base está na denúncia do racismo estrutural e na busca pela reparação histórica, vem enfrentando o desafio de ver sua pauta reinterpretada por discursos corporativos de diversidade racial que, muitas vezes, substituem o enfrentamento da desigualdade econômica pela representatividade simbólica. Essa lógica ilustra o que Douglas Barros denomina “gestão empresarial da diferença” (Zero à Esquerda, 2024) e o que Foucault (2008) caracterizaria como uma técnica de governamentalidade — a transformação da resistência em instrumento de regulação. Nancy Fraser (2003) explica esse fenômeno como a autonomização do reconhecimento em relação à redistribuição: as empresas incorporam o discurso antirracista sem modificar as estruturas materiais da exploração.


Situação análoga ocorre com o movimento feminista. A vertente liberal do feminismo, fortemente difundida pelos meios de comunicação e pelas empresas, tende a traduzir a emancipação das mulheres em termos de ascensão individual e sucesso profissional, apagando as dimensões de classe, raça e sexualidade que estruturam as desigualdades. Foucault (1999) veria nesse processo a produção de um sujeito feminino “empoderado” que se autogerencia conforme as normas de produtividade e eficiência; Barros (2024) denuncia a neutralização da luta feminista pelo identitarismo liberal; e Fraser (2019) aponta que esse feminismo de mercado é a expressão mais clara do neoliberalismo progressista, no qual a retórica emancipatória se alia ao capital.


O movimento LGBTQIA+, que conquistou avanços importantes no campo dos direitos civis e da visibilidade social, também se tornou alvo de processos semelhantes. A pauta da diversidade sexual é amplamente utilizada por corporações e governos como símbolo de modernidade e inclusão, ao mesmo tempo em que persistem a precarização laboral, a violência e a marginalização das pessoas LGBTQIA+ em contextos populares. Essa dissociação entre visibilidade e transformação material ilustra o que Barros (2024) chama de “politização sem política”, e o que Foucault (2008) caracteriza como a produção de sujeitos governáveis por meio da liberdade. Fraser (2019), por sua vez, identificaria nesse fenômeno a captura da crítica cultural pelo neoliberalismo, que transforma a diferença em mercadoria simbólica.


Por CalliandraDysantha - Obra do próprio, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=109923584
Por CalliandraDysantha - Obra do próprio, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=109923584

O movimento indígena, por outro lado, oferece um contraponto relevante dentro desse cenário. Embora também sujeito à institucionalização e ao enquadramento burocrático, ele frequentemente mantém uma dimensão de resistência anticapitalista e anticolonial que desafia as lógicas neoliberais de gestão da diferença. A crítica indígena à mercantilização da terra e da vida ressoa tanto com a genealogia foucaultiana do biopoder quanto com a defesa fraseriana de uma justiça que articule redistribuição e reconhecimento. Nessa perspectiva, o movimento indígena pode ser visto como um dos poucos espaços em que a diferença ainda se opõe ao sistema, e não é inteiramente administrada por ele.


Ao analisar esses movimentos, torna-se evidente que as categorias teóricas de Michel Foucault, Nancy Fraser e Douglas Barros ajudam a compreender os paradoxos das lutas identitárias no Brasil contemporâneo. Se, por um lado, elas representam conquistas inegáveis em termos de direitos e visibilidade, por outro, revelam-se vulneráveis à captura pelas estruturas de poder que pretendiam combater.


Pode-se dizer que em chave foucaultiana, trata-se da transformação da resistência em parte do próprio regime de governo; em termos de Barros, da conversão da política em reconhecimento; e, sob a ótica de Fraser, da fusão entre neoliberalismo e progressismo.


Em todos os casos, o poder moderno fabrica sujeitos autônomos apenas para melhor governá-los. As políticas de diversidade e inclusão funcionam como técnicas de integração: “a diversidade é incorporada como mercadoria simbólica, e a diferença, tornada produto de consumo, reforça as fronteiras que pretende dissolver” (Barros, 2024). No contexto brasileiro, isso se traduz na coexistência de discursos de inclusão com a intensificação das desigualdades materiais e da violência estrutural.


Compreender os movimentos identitários brasileiros é reconhecer que a emancipação política exige rearticular as dimensões de reconhecimento e redistribuição, além de recuperar a centralidade da luta de classes. Caso contrário, a diferença, em vez de subverter o poder, será permanentemente administrada por ele — e a política, reduzida a uma técnica de governo.


Referências

Barros, D. (2024). O que é identitarismo? São Paulo: Editora Hedra.

Foucault, M. (1999). História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.

Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes.

Fraser, N. (2003). Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange. Londres: Verso.

Fraser, N. (2019). The Old Is Dying and the New Cannot Be Born: From Progressive Neoliberalism to Trump and Beyond. Londres: Verso.

Le Monde Diplomatique Brasil. (2024). Miscelânea #3 – O que é identitarismo? 

Zero à Esquerda. (2024). Afinal, o que é identitarismo?

O Liberal. (2024). Extrema-direita é ultraidentitária.



Flávia D'Urso é mestre em Direito Processual Penal e Doutora em Filosofia, na linha de pesquisa política, pela PUC/SP.  Foi procuradora do Estado e Defensora Pública. Dirigiu a Escola da Defensoria Pública de SP. Integra o Conselho Consultivo do IBAP.



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