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VAMOS AO QUE REALMENTE IMPORTA

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-ADRIANA ABELHÃO-


Aos trinta anos fui demitida de um cargo da controladoria de uma empresa familiar, produtora de café. Havia guardado dinheiro por três anos, das longas horas extras, viradas de noite, trabalhando para por em ordem uma contabilidade caótica, produto de desmandos típicos do empresariado perverso e incompetente que existe neste Brasil. Praticamente tivemos que “inventar” a contabilidade. A empresa acabara de ser adquirida por um grupo holandês e pressionada por um executivo que mal falava o português, entreguei (na verdade ele o arrancou de minha mão) o relatório dos custos do Marketing, e lhe disse que era obra de ficção. Indignado, foi direto para a sala do Diretor da Controladoria, um cara jovem e mimado, que falava inglês fluentemente, mas que era incapaz de acertar uma crase ou uma concordância nominal. Saí de lá doída, mas aliviada. Poderia por em ação meu plano de finalmente me dedicar ao jornalismo.


Com um pouco de recursos, consegui enfrentar a “ajuda de custo” que passei a receber trabalhando na Assessoria de Imprensa da TV Cultura, TV Estatal da Fundação Padre Anchieta em São Paulo e meses depois, quando surgiu uma vaga na produção de jornalismo, consegui convencer a gerente da área de que meus conhecimentos de economia poderiam ajudar em algo. Então, fui ocupar o “último emprego de pauteiro” do Brasil, título dado à minha posição pelo Editor Chefe do Jornal Conversa Afiada de Paulo Henrique Amorim.


Foram anos de convivência com o jornalista, editor, articulista, que nunca deixou de ser o grande repórter afiado. Logo pela manhã, que para mim começava as seis, quando eu já dava conta de ler todos os jornais possíveis, na era do impresso e telefone, Paulo Henrique dava aquela ligada para a redação lá pelas sete, para perguntar o que eu tinha de pauta para o dia. Eu exagerava, apresentava pelo menos cinco ou seis sugestões, ele ouvia, muitas vezes ainda tomando o café da manhã e para minha decepção diária e aprendizado, derrubava todas as pautas e dava o roteiro prévio do que seria o Conversa Afiada do dia. Afinal, dizia ele, um bom repórter não precisa de “pauteira”.


O Conversa Afiada era um grande texto de 30 minutos, onde as imagens, informações, interferências afiadas, dados, entrevistados, formavam uma obra literária. “Olá tudo bem?” era o bordão de abertura, seguido de: “Vamos ao que realmente importa”. Todas as reportagens e informações eram costuradas na arte da palavra, como prosa e verso, dados da bolsa, declarações de ministros e entrevistas, o terreno muitas vezes árido da economia, numa linguagem mais que precisa, franca, esclarecedora e independente. A maioria dos entrevistados que passaram pelo Conversa Afiada, fariam parte do Ministério de Lula mais tarde, e o próprio foi várias vezes entrevistado. Mas isso não impediu o jornalista de fazer duras críticas ao governo Lula-Dilma.

Mas uma TV Estatal tem suas idiossincrasias... principalmente políticas... Na época a TV Cultura já passava por uma grande crise, onde eu, produtora e pauteira, quase enfartava, lidando com fitas mascadas e reaproveitadas ao máximo, com carros sem manutenção e sem gasolina, arquivo desorganizado e funcionários insatisfeitos. Mas a qualidade do Conversa, ao vivo diariamente, era de nível “Global”, como diziam com ironia os opositores ao jornalista que trabalhavam na estatal.


Mas foi na internet, como blogueiro, que Paulo Henrique afiou definitivamente a navalha do Conversa e seu corte penetrou em cheio no coração da “Casa Grande”, o que lhe custou o recente afastamento da TV Record. Neologismos como “intervenssão”, “reforma da previdênssia”, “Justissa” e “PIG – Partido da Imprensa Golpista” podem ser conferidos no ABC do Caf, glossário que tem também: “Urubóloga”, para Miriam Leitão, ou “Desembagrinhos”, aos supostos desembargadores do TRF da 4ª Região.

Em sua carreira brilhante, prêmios, sua produção, livros, entrevistas, como repórter, correspondente internacional, âncora e blogueiro, sua independência sempre lhe custou o coração. Em março de 2018, por uma “mudança” nos algoritmos, o Facebook, diga-se Mark Zuckerberg, derrubou seus mais de 1 milhão de inscritos em sua página, para algo como 100 mil, em franca demonstração de censura contra a liberdade de expressão. Não adiantou. Nesta terça-feira, dia 09 de julho de 2019, véspera do falecimento de PHA, o Conversa Afiada no YouTube estava novamente prestes a alcançar a marca do 1 milhão de inscritos.


Em dezembro de 2017, Paulo Henrique relata no Conversa Afiada que recorreu à Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à OEA – Organização dos Estados Americanos, diante das dezenas de processos judiciais ao qual estava sujeito por “delitos de opinião”, os quais não poderia numerar, pois variavam a cada semana.


Sabemos que os poderosos estão protegidos, disse ele: “tantas são as ressalvas previstas na própria constituição, que os poderosos, supostamente ofendidos, acabam por prevalecer na justiça brasileira” e por meio de constrangimentos financeiros, políticos e morais, contra os jornalistas independentes, “funciona de fato no Brasil uma censura, uma censura à liberdade de expressão, uma censura à palavra, uma censura ao pensamento”. Entre tantos ataques, denuncia a “perseguição judicial de funcionários da Polícia Federal que me obrigam a viajar Brasil afora para se defender de acusações estapafúrdias”.


Neste último domingo, o carioca Paulo Henrique Amorim foi com a família ao Maracanã de “Serginho Cabral, e suas insuperáveis falcatruas”. Citou Nelson Rodrigues, Brasil, Pátria em Chuteiras, e tirou um sarro, um sarro maravilhoso, “inexcedível” do Bozo/Médice, sendo vaiado por uma multidão no Maraca. Lá estava ele, o repórter, no lugar certo, na hora da notícia. E não faltaram farpas para atual “seleção”.


E o que fazer? Responde Paulo Henrique: “Torcer para a pátria vestir as chuteiras de novo e torcer para o povo cantar o hino com entusiasmo”. O Conversa Afiada se despede, com a imagem de seu jornalista afiadíssimo, cantando o Hino Nacional em meio à multidão do Maracanã. Haja coração.


“Boa noite, boa sorte...”

 

Adriana Abelhão é ambientalista, de Itapecerica da Serra/SP


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