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O IDEALISTA

- Ricardo Antonio Lucas Camargo -


Tício Mevio Junqueira do Prado estava feliz. Desde o seu ingresso na Faculdade de Direito, acalentava um sonho, que agora se concretizava: tornar-se juiz do trabalho, para promover uma revolução. Seu idealismo se revoltava quando sabia que, mais uma vez, um empregado tinha conseguido obter uma condenação contra uma empresa, perseguida com tanto furor pelos vermelhos trabalhistas. Tentaram enganá-lo com uma história furada, de que a legislação trabalhista era fruto de um inimigo do comunismo, de que era uma tentativa de subtrair os argumentos dos comunistas. Qual! Ele, proveniente de família tradicional no Direito, que estudara nos melhores colégios da capital, muito religioso, que sabia muito bem que não se deve violar a propriedade alheia nem dizer o nome de Deus em vão, que é natural ser a liberdade de cada um limitada pela liberdade do outro, não entendia por que as pessoas não eram capazes de respeitar a Vontade Divina, não eram capazes de querer do mesmo jeito que Deus queria as coisas. Ah, por que o Judiciário era tão intolerante com as medidas que qualquer pessoa que pretendesse sobreviver no mercado tomaria, de economizar dinheiro, não realizar gastos inúteis com equipamentos de proteção individual e tantas outras coisas que impedem os empresários de realizar seu espírito caritativo de ofertar empregos a todo o mundo! E que bom que o novo Código de Processo Civil previa a possibilidade de o juiz rejeitar a ação já ao vê-la pela primeira vez! Ia fazer uso frequente dessa faculdade, ainda mais agora, que estava sacramentado que a nossa bandeira jamais seria vermelha. Pena que não existisse na lei a possibilidade de mandar processar criminalmente quem entrasse com ação trabalhista, manifestando tamanha ingratidão com quem teve a generosidade de lhe dar emprego! Enfim, mesmo a lei sendo branda demais com esses vagabundos, ele realizaria a revolução para banir os restos de comunismo da Justiça do Trabalho.


Primeira ação que lhe chegou ao exame. O empregado dizia que, pelo fato de ser sindicalizado, o patrão determinara que, no ambiente de trabalho, o chamassem de “comunista” e que lhe costumava mandar fazer tarefas mediante ordens contraditórias entre si. Qualquer que fosse sua conduta, estaria sempre errada. Não teve dúvidas. Era o primeiro passo para a revolução:


“Uma visão errada de como se dão as relações sociais fez com que as pessoas esquecessem qual o lugar que, naturalmente, cabe a cada qual.


Vejo neste processo um exemplo evidente de um empregado que esqueceu que o papel do seu patrão é comandar a empresa e o papel dele, empregado, é o de obedecer.


Suscita este conceito esdrúxulo de ‘assédio moral’, construído pelos marxistas, que fingem esquecer que, de acordo com as verdadeiras normas presentes na Constituição, a liberdade de iniciativa é fundamento da República – art. 1º, IV – e da ordem econômica – art. 170, caput, e parágrafo único -, a propriedade privada é direito fundamental – arts. 5º, XXII, e 170, II – que não pode ser suprimido nem mesmo por emenda – art. 60, § 4º, IV -, e invocam pseudotextos que agridem a moral e, por isto mesmo, o próprio direito natural, como as monstruosidades dos arts. 6º e 7º, os tais ‘direitos sociais’, que não merecem ser considerados seriamente como merecedores de acatamento pelos juízes de bem.


Quem se filia a sindicato merece, sim, ser chamado de ‘comunista’, ainda mais quando se rebela contra as ordens que lhe são dadas, ao falso argumento de que são ‘contraditórias’ – a acreditar que o acionante está a dizer a verdade, o que é improvável -, quando seu verdadeiro dever é o de esforçar-se por mostrar ao seu patrão ser conveniente que lhe faça o favor de o impedir de integrar o conjunto dos vagabundos que infestam nosso belo e sofrido país.


Portanto, a ação contra a despedida por justa causa deve ser rechaçada antes mesmo de se ouvir a empresa.


Por outro lado, trata-se de ação que manifesta imprudência e ofende a dignidade da justiça, o que determina que se lhe imponha a condenação no décuplo do seu salário, para aprender a respeitar a honra das pessoas honestas e não perturbar a justiça com futilidades.


Assim, julgo improcedentes, de plano, os pedidos e condeno o autor por litigância de má fé”.


Estava feliz. Protegera quem merecia proteção e punira quem merecia punição. Ainda mais no momento em que o fazia, com a posse de um novo Governo que ia resgatar a dignidade das pessoas de bem, depois de tantas humilhações, de gente inferior fora do lugar que lhe cabe. Quem sabe sua carreira deslancharia. As sentenças seguintes seriam do mesmo tipo. Seria louvado pela rapidez com que julgava, evitando audiências e, certamente, seria promovido rapidamente, por ser tão justo e correto. Ia corrigir tudo o que estava errado na Justiça do Trabalho, finalmente!


O advogado do empregado resolveu, cinco dias depois, recorrer da decisão. O quê! Atacando uma decisão tão perfeita, tão fiel ao direito natural? Isto era uma ofensa à majestade da justiça. Ainda mais um advogadozinho de empregado, sem eira nem beira, sem um sobrenome que valesse respeito! Nenhuma dúvida: “deixo de receber o recurso, porque incabível, pois decisões conforme a Justiça Maior não devem poder ser atacadas”.


Mais uma vez, iria dormir o sono dos justos. Jamais deixaria esses vagabundos atacarem suas sentenças. Só se viesse ordem do Tribunal, ainda cheio de remanescentes do comunismo. Mas, ainda assim, pelo menos ele daria trabalho para esse pessoal que só era chamado de “gente” por uma concessão.


Ah, se houvesse mais juízes como ele! A Justiça do Trabalho não ia mais ser responsável pelo desemprego generalizado; os empregadores iriam dar empregos com mais gosto se soubessem que não lhes iriam impor esses encargos absurdos!


Sim, agora o Estado-juiz, no que dependesse dele, iria deixar de ser o entrave ao funcionamento do mercado! Iria dar a cada qual o que seria seu de direito: às forças vivas que movem a economia, todos os direitos naturais, à ralé, o castigo devido a todos os rebeldes e sacrílegos! Tício Mévio, o homem que empunhava, com orgulho, a bandeira nacional e a espada da Justiça Divina, para fazer o Bem vencer o Mal. O Estado deixaria de atrapalhar o mercado; seria o seu servo, porque, afinal, como dizia Ataliba Nogueira, o Estado é meio, e não fim; deve servir a sociedade, e a sociedade é o mercado.

 

Ricardo Antonio Lucas Camargo é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.

 

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